entrevista

"Violência contra as mulheres é uma pandemia no país", diz ministra Cida Gonçalves

Ministra das Mulheres classifica de pandemia a escalada de assassinatos, cada vez mais cruéis e, na avaliação dela, deflagrados pelo ódio e pela intolerância que assolam o país. Ela também critica a falta de maior representatividade feminina na política

Cida Gonçalves:
Cida Gonçalves: "O ódio que foi propagado neste país, independentemente da questão ideológica ou partidária, tem resultado dentro de casa" - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, acredita que o Brasil está avançando na igualdade de gênero, apesar dos ainda inúmeros desafios. Para ela, as principais ações nesse sentido foram a implementação da Lei da Igualdade Salarial, promulgada em 2023, e a ampliação de ferramentas para combater a violência contra a mulher e o feminicídio.

Sobre a representatividade feminina na política, Cida Gonçalves enfatizou que a mudança precisa começar da base, com uma reforma política partidária. "Os partidos não dão espaço para as mulheres crescerem partidariamente. Também não dão oportunidade para as mulheres serem carros-chefes de campanha", argumentou.

Na avaliação dela, houve misoginia da imprensa na maneira como as colegas foram retratadas nas reformas ministeriais, caso da demissão da então ministra da Saúde, Nísia Trindade. Também comenta sobre como as mudanças na Esplanada a afetam.

"A questão é: o cargo é uma prerrogativa do presidente. Ele teve 52 milhões de votos para isso. Eu não tive nenhum. Eu não disputei nem as eleições. Nísia também não tinha nenhuma prerrogativa. Até agora, o presidente não falou comigo, então, enquanto o presidente não me chamar, eu não estou demitida, não estou no processo de exoneração",frisou. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Quais foram as principais ações da sua pasta nesses dois anos?

O que a gente fez primeiro foi organizar a casa. Não tinha recurso. Quando assumimos o ministério, eram só R$ 23 milhões para investimentos nos estados, não dava R$ 1 milhão para cada estado. E considerando que o carro-chefe nosso é a Casa da Mulher Brasileira, uma unidade na capital precisa de R$ 16 milhões, no interior, de R$ 8 milhões. Então, a gente foi buscar recursos para que pudesse, de fato, fazer os investimentos necessários que a demanda exigia. As Casas da Mulher Brasileira, que desde que nós tínhamos saído, em 2016, tinham parado, praticamente não teve nenhuma inauguração. Tivemos três inauguradas em Teresina (PI), Salvador (BA) e Ananindeua (PA). E, agora, fim de março, mais uma em Palmas (TO), com previsão de mais quatro para este ano. Estamos com 16 em obras, em implementação, e com 19 em licitação, que a gente acabou de repassar a verba para o estado. Economicamente falando, os municípios não têm como bancar uma Casa da Mulher Brasileira. Ela tem 3.600 metros de área construída; a do interior é 1.700 metros de área construída. Elas têm todos os serviços que a Lei Maria da Penha propõe: a delegacia, a Defensoria, o Juizado, a Promotoria, a Patrulha Maria da Penha, o atendimento psicossocial, o abrigamento provisório, serviço de autonomia econômica e a central de transporte. São nove serviços, são 440 pessoas dentro da casa. Então, é um valor razoável. 

Quais foram as outras ações principais?

Acho que tem dois feitos estratégicos e fundamentais, que foram pedidos do presidente. Um, a questão da Lei da Igualdade Salarial, a outra, enfrentar a violência doméstica. Conseguimos aprovar, em um prazo de 90 dias, a Lei de Igualdade Salarial, que estava parada havia mais de 30 anos no Congresso. Isso é um passo importante. Uma lei que traz uma questão que para nós é fundamental, do relatório de transparência. Queremos saber de que forma se dá por categoria, embaixo, o gerente, o diretor, esses salários e esses valores. Com isso, você pode estabelecer, com a empresa, um plano que ela fará para conseguir chegar à igualdade salarial, se ela não tem. Se tem, não tem problema. Tem também a multa (caso a empresa não cumpra com o plano acordado).

A luta contra a violência doméstica também é um pilar?

A questão da violência tem sido um pouco o carro-chefe. A gente estruturou o 180. Quando chegamos, era o 100 (Disque 100, para receber denúncias). Eram 200 e poucos atendentes para todo mundo. A gente tinha homens que atendiam mulheres em situação de violência. Era uma situação difícil. Fizemos a nova licitação. Colocamos, em agosto de 2024, o 180 para funcionar só com atendentes mulheres. A gente criou também o WhatsApp, que é uma outra forma para denunciar.

Como é a gestão do serviço?

Estamos com um grupo que ajuda a fazer a gestão, saber onde é que está o serviço, como está funcionando, porque o 180 tem de encaminhar a mulher para o serviço. Não pode encaminhar para um lugar errado. Fora isso, conseguimos fazer um protocolo, em 15 estados, em que há uma pessoa de referência no estado — que é (composta por uma pessoa da) Secretaria de Mulheres, uma da Secretaria de Segurança e uma do Ministério Público. São os que recebem as denúncias mais graves do setor 180. E agora, por fim, a gente está criando o sistema de acompanhamento. Aí dá a entrada, o pessoal no estado acompanha, e nós vamos sabendo onde é que está andando aquela mulher, onde é que parou. Acho que isso é uma grande conquista que teremos este ano. O resultado é positivo, porque são 2 mil ligações por dia. A gente começa a recuperar a credibilidade, a recuperar todos os processos do 180 que tinha perdido. São as referências, principalmente, de orientação e informação.

A Lei do Feminicídio completa 10 anos neste domingo, e temos números altíssimos ainda. Um crescimento de 12 mil casos na última década aqui no Brasil. O que ainda precisa ser feito para mudar esse cenário?

Acho que são duas informações. Uma, é que é a primeira década em que a gente tem uma lei, que está tipificando. Então, não tem como comparar com 10 anos atrás. O que tínhamos era assassinato de mulheres, que continuou tendo. Mas o crime de feminicídio tem uma tipificação própria, pelo fato de ser mulher, pela questão da violência sexual, pela violência doméstica, pelo ódio, pela misoginia. Temos um processo muito recente de tipificação e nós não chegamos ao limite da tipificação.

Como assim?
Vou contar o caso da Julieta Hernandes. Ontem (quinta), recebemos a mãe e a irmã da Julieta. O caso dela entrou como latrocínio. Só que, na verdade, tem todas as características, toda a tipificação para feminicídio. Ela foi violada sexualmente, morta, humilhada. A única diferença é que quem matou não tinha uma relação de afeto. Mas a Lei do Feminicídio não diz que tem de ter uma relação de afeto. Portanto esse para mim é o caso mais exemplar. Você vai ter muita subnotificação sobre a questão do feminicídio. Se a gente consegue convencer os 27 estados a tipificar bem, vamos aumentar muito mais do que isso. Porque só podemos dizer que começou a diminuir depois que chegarmos ao limite do dado. Não tem como dizer que diminuiu. Eu quero, estou torcendo. Se diminuir 1%, vou fazer a maior festa. Se diminuir 10%, mais ainda.

A senhora avalia que a violência contra a mulher está mais grave do que os dados mostram?

Ela é um fenômeno. Seis mulheres são assassinadas no crime de feminicídio por dia, segundo os registros oficiais. Se for ver muitos registros que são colocados como tráfico, como droga, são feminicídios. Outra: a cada seis minutos, uma mulher e uma menina vivem um estupro no Brasil. E nós vamos ter, praticamente, entre dois e três minutos, denúncia de violência doméstica familiar contra as mulheres. Pior ainda: quando chega ao Juizado — que teve de passar pela delegacia, pelo Ministério Público, pela Defensoria, e se instaurou o inquérito. São quase 390 mil inquéritos por ano. Então, você tem um fenômeno de violência contra mulheres acontecendo. Eu chamo de uma pandemia acontecendo no nosso país.

E por que está acontecendo?

O ódio que foi propagado neste país, a divisão que está colocada neste país, independentemente da questão ideológica ou partidária, o que foi colocado neste país, plantado, tem resultado dentro de casa, não tem como você fugir disso. Então, se você planta o ódio na rua, a intolerância na rua, essa intolerância, esse ódio vai chegar dentro de casa. Em casa, quem que está? As crianças e as mulheres. E aumentou a crueldade. Porque quando a gente discutiu a lei do feminicídio, eu dizia que as mulheres morrem com 56 facadas. Eu já ficava indignada. Hoje, além das 56 facadas, ela é violentada e, muitas vezes, mata os filhos para depois matá-la, ou ateia fogo com a mulher e as crianças vivas. Isso é a época das bruxas. Então, o feminicídio não tem só a morte do corpo, tem a morte da identidade de gênero da mulher, porque eles matam, eles tiram a identidade do rosto, muitas vezes, tiram o dedo para não ter como dizer quem é. É a identidade da mulher que está sendo morta.

 

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves (foto: Ana Dubeux)

O governo Lula tem sido duramente criticado por trocar mulheres nas reformas ministeriais e também por indicações a cargos de poder em tribunais superiores. O que precisa mudar para termos mais mulheres na política?

Precisamos discutir a reforma política partidária, porque, o que acontece no governo Lula? É um governo de alianças, de uma aliança ampla e que quem indica ministros são partidos. Quando Lula vai falar assim: "Mas eu queria uma mulher". Eles vão falar: "Não tem mulher para o cargo". Isso você pode perguntar para mim, para Simone Tebet (ministra do Orçamento), pode perguntar para Damares. Para qualquer mulher que tem uma visão de concepção política. Os partidos não dão espaço para as mulheres crescerem partidariamente. Também não dão oportunidade para as mulheres serem carros-chefes de campanha. A gente conseguiu a Lei da Cota dos 30%, depois dos 30% de financiamento. Não funcionou, porque a gente não aumentou 30% desde que surgiu a lei até agora. No Congresso, temos 17%; de prefeitas, 12%. E de vereadoras, aumentamos um pouco mais do que na eleição anterior, mas a gente continua na margem dos 15%, 16%.

É muito sub-representado.

É por isso que agora queremos paridade de cadeira, porque com cadeira, todos os municípios deste país têm de ter uma vereadora. E aí você vai formar a liderança, porque ela vai usar a tribuna, vai ter de dar entrevista, vai ter de fazer enfrentamento. Ela vai ter que ir à comunidade, que é assim que os homens se fazem liderança. Portanto você faz com que as mulheres tenham um espaço para poder fazer a disputa, tenham nome para fazer disputa. Se você não é sindicalista, não é presidente de partido, não é de uma família tradicional e não tem muito dinheiro, qual a chance que você tem? Nenhuma.

Para mulher, então...

Se você é mulher, é pior ainda. Como você ainda cuida, porque não é porque ela está na política que ela deixou de cuidar da casa, do filho, do marido, dos doentes. Então, ela vai falar: "Pô, se eu for deputada estadual, eu vou ter que sair do meu município". São três sessões por semana. Para ser deputada federal, pior ainda, tem de vir para Brasília, chegar aqui de madrugada, virar a noite. Aí, só tem três dias para ficar em casa, mas não pode ficar em casa porque tem de fazer base eleitoral. Então, as mulheres optam por serem candidatas a vereadora, elas não vão querer mais. Portanto as condições dadas para as mulheres não são as mesmas dos homens. Eu já estou montando a minha lista. Quando deixar de ser ministra, vou publicar uma lista de mulheres de todos os partidos que tenham condições de serem ministras, em qualquer cargo, de qualquer partido. Estou falando do PL ao PCO, que é o menor. Todos os partidos têm mulheres que têm condições de ser ministra, de estar em lugares de poder. Se você não tem visibilidade, se não tem poder de fala, como é que vai ter voto? A gente quer paridade. É a história do México. O México foi para paridade, hoje está com 60% e elegeu uma mulher presidente.

Ampliar o número delas na política é válido mesmo para as que não defendem pautas que beneficiem as mulheres?

É claro que eu prefiro mulheres que defendem a pauta das mulheres. A grande questão é que, quanto mais mulheres tiverem visibilidade, você vai criar, no sentido das meninas, a representatividade para dizer assim, "se ela pode, eu posso". A maioria das mulheres que a gente pede para ser candidata fala: "Ah, não, não sei se eu vou conseguir". Então, acho que é essa construção primeiro que a gente vai fazer, depois a gente faz a disputa ideológica, não tem problema.

Sobre essa falta de sustentação política para as mulheres, avalia que foi o que aconteceu com a ex-ministra Nísia Trindade? E isso se estende à senhora, a respeito dos rumores de ser a próxima a ser substituída na reforma ministerial?

O que eu acho é que falta solidariedade, principalmente de quem quer o cargo. É o problema, na minha avaliação. A questão é: o cargo é uma prerrogativa do presidente. Ele teve 52 milhões de votos para isso. Eu não tive nenhum. Eu não disputei nem as eleições. Nísia também não tinha nenhuma prerrogativa. Até agora, o presidente não falou comigo, então, enquanto o presidente não me chamar, eu não estou demitida, não estou no processo de exoneração. A imprensa que está dizendo. Você tem o processo de queimação durante não sei quanto tempo, até que termina desautorizando o presidente na hora em que ele tem de exercer a função de presidente da República. Acho que precisamos, sim, ter uma mudança de rota nesses dois últimos anos de mandato. Chegamos, arrumamos a casa, organizamos, agora o presidente precisa de outros elementos, de outras coisas. E ele tem toda a legitimidade que 52 milhões de pessoas deram para ele para fazer isso.

Acredita que houve misoginia nesse processo de saída da ministra Nísia?

Acho que por parte da imprensa houve misoginia. Foi onde eu li as informações. Não fiquei sabendo nos corredores do Palácio ou nos corredores da Esplanada. Vou dizer o que eu acompanhei pelas leituras da imprensa e acho que a imprensa foi misógina. Não acho que dentro do governo houve um processo de fritura. Não tenho elementos para analisar isso, então, se houve, não passou por mim, e olha que a gente conversa bastante. O problema é a exposição pública. Fico observando que a imprensa não faz a mesma coisa com os homens. Agora, conosco, gente, é cruel, eu não tenho coragem de ficar olhando. A questão é: você vai ler o tempo todo que uma de nós está na berlinda, ou com problema, ou com não sei o que, ou somos incompetentes. Não sai "porque precisa ter troca no governo", sai porque somos incompetentes. Agora, os homens, não. Para eles, é necessária uma articulação para melhorar o governo, entendeu?

A senhora culparia a falta de divulgação, por parte do governo, dos projetos das pastas, tanto da sua quanto da Saúde, pela má avaliação das duas gestões?

Não sei, não tenho elementos para analisar isso. A forma da análise do que é competência ou incompetência depende de quem tem o olhar, porque pode ser que eu faça uma grande entrega, e para mim é uma grande entrega, mas para o outro não é. Isso é muito relativo. Não tenho condições de falar sobre isso.

Neste tempo à frente da pasta, o que mais a chocou em relação à misoginia, ao ódio, à resistência ou ao desprezo em relação às mulheres?

É difícil fazer essa escala, porque os casos que eu me deparei são terríveis. Teve um em Mato Grosso que o cara matou a mulher, cortou o pescoço dela e andou a cidade inteira arrastando-a com a moto, para todo mundo ver o que ele tinha feito. O que me assusta, primeiro, é a certeza da impunidade para fazer algo assim. Segundo, é o desprezo. Quando você fala em ódio, as pessoas acham que você está brincando, mas quem mataria uma pessoa, tiraria a cabeça dela e ainda sairia com o corpo pela cidade inteira para mostrar, se não por ódio? E não a doença, é ódio. A segunda que me choca é o dado de crianças de 0 a 4 anos sofrerem estupro. Isso para mim é inconcebível. As pessoas dizem que a gente é estuprada porque está na rua às 2h da manhã, de minissaia, ou no bar. Mas uma criança de 0 a 4 anos, ela não sai nem da cama, mal está andando ainda. Isso para mim foi uma coisa que me chocou, e foi o que mais me motivou a ir para o Feminicídio Zero. E terceiro, o caso da Maria da Penha, o caso da Mariana Ferrer, o caso de muitas outras mulheres que estão aí sendo perseguidas pelas redes sociais, ameaçadas. Maria da Penha fez uma denúncia. Denunciou o Brasil, ganhou na Organização dos Estados Americanos (OEA), o Brasil foi condenado, fizemos uma lei com o nome dela, que está sendo implantada no país. Aí você vê, 40 anos depois, essa mulher está trancada dentro de casa sem poder sair, porque ela está sendo ameaçada de novo. Isso é estarrecedor, choca.

Causa espanto à senhora o fato de algumas mulheres pensarem igual a homens, não só em relação ao feminicídio, mas a outros problemas relacionados ao gênero?

Primeiro, acontece. Segundo, não me espanta. Porque o machismo e o patriarcado foram espalhados na sociedade. Não são os homens que são machistas, a sociedade é machista. Por isso não me espanta que algumas mulheres sejam mais duras do que alguns homens para algumas coisas. Somos filhos e filhas dessa sociedade. Sempre digo duas coisas na questão da violência: se você tem uma criança que é criada em um ambiente de violência cotidiana — porque é todos os dias que a mulher sofre violência —, você não quer que essa criança tenha uma outra relação com a sociedade que não seja de violência. Somos fruto de onde viemos. Não tem como querer criar um cara humanitário, cheio de paz, e uma mulher que não seja submissa, se eles convivem nesse ambiente, nessa relação a vida inteira. A mesma coisa vai servir para a questão do que pensa a sociedade, homens e mulheres, sobre a questão das mulheres. Espero, sinceramente, que um dia a gente consiga não ter mais esse tipo de pensamento, esse tipo de julgamento. Espero não ter mais uma Paolla Oliveira sendo julgada e condenada pelos padrões de beleza estabelecidos que cabe a uma mulher, ou uma Janja calada porque o papel de mulher é calada. Não é do lado do marido, é atrás do marido. Estou falando da Janja, que é a primeira-dama, mas qualquer mulher sofre com isso. Há um estereótipo que é colocado e pensado para as mulheres, que não nos permite ultrapassar esse estereótipo. Até chegar ali pode, depois dali, não pode mais.

Avalia que o papel da primeira-dama está mudando nos últimos anos? Isso incomoda?

A maioria dos municípios a que vou, quando eu vou falar com os prefeitos, eu sempre pergunto para as mulheres dos prefeitos o que elas fazem. E elas respondem: eu sou dentista, tenho meu consultório; a outra, eu sou médica, sou cirurgiã; a outra é professora. Cada uma continua trabalhando e tendo a sua vida, a sua autonomia. Isso é um novo perfil de primeira-dama. Precisamos entender isso. Não é a mesma primeira-dama que servia chazinho 5h da tarde há algumas décadas. A questão da Janja é que ela é uma socióloga. Quando você é socióloga, tem a inquietude do questionamento, do mudar, do refletir, do fazer. Como é que você pede para uma socióloga ficar quieta? Porque antes de ela ser mulher do Lula, ela já era socióloga.

Como é a relação com Janja?

Eu convivo muito com a Janja. Ela não dá um palpite no meu ministério, mas a gente discute muita coisa juntas, porque ela é feminista, é parceira, mas ela não diz quem eu tenho de contratar, quem eu não tenho de contratar, quem eu tenho de tirar, quem eu não quero tirar. Estabelece-se parceria, do mesmo jeito que deve ser na área social. E eu tenho discutido uma coisa: onde é que a Janja está jogando energia? Está jogando na Aliança Global contra a Fome. Vamos discutir o papel da primeira-dama? Antigamente, era dar sacolão, agora é fazer política pública da assistência social. A Aliança Global contra a Fome e a Miséria é isso. Mas é uma posição política. Ela não é um sistema de caridade, como era antigamente e de troca de voto. Então, acho que isso incomoda. O que incomoda não é o fato de ela ser uma mulher diferente, que fala, é o fato de que tipo de política, nesse espaço que ela tem de poder, de ser primeira-dama, está implementando no país. Para mim, o que ela está revolucionando é exatamente o olhar sobre as mesmas pautas que tradicionalmente foram tratadas. O que incomoda não é a mulher Janja, é a socióloga Janja cumprindo um outro papel estratégico e fundamental no mundo e no Brasil.

O que pensa ser o feminismo hoje?

Penso que o feminismo são as pessoas que lutam pelo direito das mulheres. Isso é feminismo. Agora, você tem os diversos feminismos. Não vou entrar nesse debate. Mas se você tem uma pessoa que não quer que a mulher perca direito nenhum, ela tem uma posição política. Você dizer que é para garantir os direitos das mulheres, avançar nos direitos das mulheres, é essa perspectiva que eu trabalho. Eu não trabalho com o conceito, que a gente sempre teve no Brasil, da feminista de carteirinha. Não tem carteirinha. Você tem o desejo, a necessidade e o sonho de que as mulheres sejam diferentes. Só isso te torna feminista. Agora, como vai tornar isso realidade? Estudando, fazendo doutorado, fazendo militância, ou num espaço de poder, garantindo lugar de falar para a mulher, garantindo espaço para elas.

O que é ser mulher no Brasil de hoje?

Acho que ser mulher hoje no Brasil é você conquistar algo, as pessoas acharem que você conquistou tudo, e você não conquistou muito. É ir para o mundo do trabalho e ter que trabalhar três meses a mais para ganhar o mesmo salário que um homem. É andar na rua com medo de ser estuprada todos os dias. É querer ser uma vereadora e te chamarem de vagabunda, dizerem que você quer esse lugar porque você é amante do fulano ou do beltrano. Acho que ser mulher no Brasil hoje é desafiador. Primeira coisa. A segunda, por outro lado, ser mulher no Brasil hoje com o governo que nós temos, e aí eu vou falar uma coisa aqui: o Congresso tem aprovado muitas leis a favor das mulheres. Eu posso questionar, falar um monte de coisas, mas o Congresso tem ajudado a avançar muitas pautas para as mulheres. Por fim, diria que ser mulher no Brasil hoje é a coisa mais legal que tem no mundo, porque a gente briga, xinga, chora, vive essa situação toda, mas você nunca viu uma mulher fugir da luta. Seja o movimento de mulheres, seja jornalista — quando vocês foram humilhadas pelo governo anterior, vocês estavam ali ainda colocando o microfone na boca dele e resistindo. Isso é ser uma mulher no Brasil. Isso é exemplo para o mundo. Tem os desafios e as tristezas, mas tem os prazeres das conquistas.

Para fazer as ações no ministério que melhoram a vida das mulheres, é necessário orçamento. Já sabe quanto recurso a sua pasta vai receber neste ano?

Não, o relator é o sigilo em pessoa. Eu nunca vi um negócio daquele. Mas, vou ser sincera, eu não deixei de andar naquela Casa. A bancada feminina é muito importante, e eu quero registrar que a bancada feminina, tanto da Câmara dos Deputados quanto do Senado, tem tido uma atuação incrível. E aí eu quero dizer de todas. Tem umas que não gostam muito da minha cara. Às vezes, elas não vão, mas elas mandam as outras em apoio. E aí eu acho que é importante dizer isso, porque assim, isso significa que a causa é ainda maior do que está colocado. Acho que é importante dizer isso, porque significa que a causa é ainda maior do que está colocado. As bancadas femininas — na Câmara, liderada pela Benedita (da Silva), e no Senado, liderada pela Leila (Barros) — têm sido fundamentais para todas as nossas conquistas. É verdade que os homens ajudam bastante, né? Mas elas são protagonistas. E é por isso que eu quero muitas mulheres no Congresso.

Na segunda-feira, a deputada Gleisi Hoffmann tomará posse na Secretaria de Relações Institucionais. Como avalia a entrada dela para fazer a articulação com o Congresso?

Sou suspeita para falar, porque a Gleisi foi chefe da Casa Civil da Dilma Rousseff, e eu era secretária nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres. Sei a capacidade de articulação, de desempenho que essa mulher tem naquilo que ela se propõe a fazer. Acho que vai ser muito bom, inclusive, dentro do Congresso, porque ela tem uma habilidade política de conversar com todo mundo. Ela tem uma coisa que é fundamental na política: ela cumpre acordo. Isso é fundamental. E eu também acho que a Gleisi vai dar uma serenidade para esse processo, não é serenidade do processo da mulher serena, mas de continuidade dos processos. Eu acho que ela já provou quando foi chefe da Casa Civil. Outra coisa que é super importante, que na política é fundamental, é a questão da lealdade. Quando o partido estava passando por maus lençóis, foi ela quem segurou, correu o país, deu força. Quando o presidente Lula foi preso, ela que ajudou a segurar, ajudou a tocar. Ela tem uma força e uma energia que mesmo quem não é do nosso campo respeita. Acho que isso ela vai trazer para o governo, vai trazer para o presidente Lula. Fora que, finalmente, nós temos uma mulher, além da Miriam Belchior (secretária-executiva da Casa Civil) no centro do poder.

Sobre a Conferência das Mulheres, como vai ser?

A gente vai lançar agora, em março, a quinta Conferência Nacional de Política para as Mulheres. O encontro vai ser em setembro, 29 e 30, e 1º de outubro. Vamos trabalhar dois temas: a questão da democracia e a questão da igualdade. Queremos trabalhar dentro de uma perspectiva da igualdade, buscando a diversidade e a diferença que tem no país. As mulheres da Região Norte não são as mulheres da Região Sul. As mulheres da Região Sul não são as mulheres do Centro-Oeste. As do Pantanal não são as mulheres da floresta. Então, nós temos no Brasil uma diversidade de mulheres que precisamos colocar na roda. Quero saber como que essas mulheres pensam, como agem, pelo que lutam, qual é a pauta, quais são os desafios. Vamos buscar construir uma conferência pautada, principalmente, a partir das conferências livres, para que essas mulheres possam participar e estar juntas. Estamos esperando três mil mulheres. Não existe democracia com sub-representação, porque sem democracia as mulheres não vão poder falar. E a extrema-direita, a primeira coisa que faz é atacar as mulheres. Estamos vendo o que está acontecendo do outro lado do mundo. E a questão da igualdade nessas diferenças, nessas diversidades. Nós queremos as mulheres do agro, mas queremos as sem-terra. Todas nós somos mulheres e queremos estar com elas nessa conferência, porque, com isso, a gente cria um retrato das mulheres brasileiras e, talvez, responda essa pergunta: o que é ser mulher no Brasil? Talvez, essas diversas faces, essas diversas mulheres, esses diversos rostos nos respondam o que é essa mulher no Brasil. Onde a gente possa ter uma visão de quais são as ações, o que as mulheres fazem.

 

 

Mayara Souto
Ana Dubeux
Carlos Alexandre de Souza
Eduarda Esposito
postado em 08/03/2025 03:55
x