
A Comissão de Segurança Pública do Senado aprovou, ontem, dois projetos de lei que ampliam as hipóteses legais de legítima defesa no Brasil. As propostas beneficiam civis armados e agentes de segurança pública e seguem, agora, para análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Os textos avançaram em votação simbólica, mas provocaram reações contundentes de entidades de direitos humanos e de especialistas em direito penal.
O primeiro projeto, de autoria do senador Wilder Morais (PL-GO) e relatado por Flávio Bolsonaro (PL-RJ), presidente da comissão, isenta de responsabilização criminal e civil quem usar força letal para impedir invasões a domicílio, imóvel ou veículo, próprio ou de terceiros.
A justificativa dos autores se baseia na "presunção de ameaça grave", com inspiração em legislações de estados norte-americanos que permitem o uso letal em defesa da propriedade. "Ele dá mais segurança jurídica a quem usa arma de fogo para se defender", defendeu Flávio Bolsonaro. Wilder Morais, por sua vez, argumentou que "é de presumir que o invasor esteja portando arma branca ou de fogo".
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As críticas partiram de 148 entidades da sociedade civil, entre elas a Conectas Direitos Humanos. Em manifesto, elas alertam que a proposta pode agravar a violência no país e relatam problemas sociais graves onde ela foi testada: aumento de homicídios, perpetuação das desigualdades raciais e criação de grupos armados.
O segundo projeto, de autoria do senador Carlos Viana (Podemos-MG), também relatado por Flávio Bolsonaro, altera o artigo 25 do Código Penal para incluir como legítima defesa a reação de agentes de segurança em "conflito armado" ou "risco iminente", inclusive em situações com vítimas mantidas reféns.
Para Viana, a proposta "faz justiça e assegura o melhor desempenho da atuação policial". No entanto, entidades de direitos humanos alertam que os termos usados são "genéricos e subjetivos", o que pode abrir margem para interpretações abusivas e práticas de violência sistemática nas periferias.
No Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 6.393 pessoas morreram em intervenções policiais em 2023, quase o triplo do registrado há dez anos.
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O advogado constitucionalista Ilmar Muniz, especialista em direito penal, vê riscos constitucionais nos projetos. "Há risco de inconstitucionalidade se essas mudanças permitirem uso desproporcional da força ou tornarem praticamente automática a exclusão da ilicitude. O Direito Penal brasileiro é fundado em garantias e limites, e não pode ceder a pressões momentâneas", avalia.
Para ele, a proposta inspirada nas leis norte-americanas não é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro. "A Constituição de 1988 consagra o direito à vida como cláusula pétrea. Um modelo que prioriza a propriedade sobre a vida rompe com nossos princípios fundamentais", afirmou ao Correio.
Muniz também critica a redação dos termos "risco iminente" e "conflito armado", utilizados no segundo projeto. "São expressões amplas demais. A tipificação penal exige clareza. O uso vago favorece interpretações subjetivas, enfraquece o controle judicial e pode legitimar abusos, especialmente contra jovens negros, que são os principais alvos da repressão policial no Brasil", explicou. Segundo ele, ao ampliar os excludentes de ilicitude, o Legislativo pode comprometer princípios constitucionais como a proporcionalidade e a razoabilidade, pilares da legítima defesa no sistema penal brasileiro.
Além disso, Muniz alerta para o impacto prático dessas mudanças. "Há uma tendência de relaxamento dos limites legais no uso da força. Isso pode gerar um efeito perverso: agentes de segurança se sentirem autorizados a agir de forma letal sem controle posterior. Isso enfraquece o Estado de Direito e compromete o dever do Estado de proteger todos os cidadãos com imparcialidade", observa.
Estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) analisou 859 procedimentos abertos entre 2018 e 2024 envolvendo mortes provocadas por policiais. Nenhum agente foi responsabilizado. Com a aprovação desses projetos, o temor é de que o número de casos aumente, com ainda menos controle judicial.
O texto aprovado pela CSP também autoriza o uso de cercas elétricas, cacos de vidro em muros, arames farpados, armadilhas e cães de guarda para a proteção de uma propriedade. O dono do imóvel fica isento de responder criminal ou civilmente por eventuais lesões ou pela morte do invasor. (Com Agência Senado)
* Estagiária sob a supervisão de Carlos Alexandre de Souza
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