Ponto a ponto

'Segurança pública se constrói com presença do Estado', diz sociólogo

Sociólogo Arthur Trindade diz que há limitações no modelo baseado no confronto e defende integração de forças policiais

Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o sociólogo Arthur Trindade avalia que o enfrentamento ao crime organizado no Rio de Janeiro exige urbanização das favelas, fortalecimento da investigação e integração entre as forças policiais para romper o ciclo de violência. Ele destacou que operações como as que ocorreram no Rio de Janeiro, com mais de 120 óbitos, são repetidas no estado há mais de 40 anos. "Resultam em muitas mortes e pouca transformação", destacou Trindade, em entrevista aos jornalistas Carlos Alexandre de Souza e Sibele Negromonte, no programa CB.Poder, parceria do Correio Braziliense com a TV Brasília.

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Operação no Rio de Janeiro

"Essas ações de grande porte não são novidade. O Rio repete a estratégia há mais de 40 anos: incursões pontuais, de alto impacto, que resultam em muitas mortes e pouca transformação. O que chamou atenção agora foi o número de mortos e o fato de não haver civis entre as vítimas. Isso gera uma percepção de eficiência e até apoio popular, mas, no fundo, estamos diante do mesmo modelo baseado no confronto. Não é uma política de segurança, é uma resposta imediata."

Atuação das forças de segurança

"A diferença (na operação) é que houve planejamento para reduzir o enfrentamento direto e, com isso, evitar danos colaterais. Mas ainda é uma ação episódica. A polícia entra, realiza prisões e apreensões e depois sai. O território continua dominado. Sem ocupação permanente e presença do Estado, as facções voltam a controlar tudo em poucos dias."

Política de segurança duradoura

"Primeiro, urbanização. Não há como falar em retomada do território sem infraestrutura. As favelas foram construídas sem planejamento urbano, com vielas estreitas que inviabilizam o patrulhamento e favorecem o domínio armado. Segurança começa pelo espaço urbano. Onde há ruas largas, comércio e serviços públicos, há Estado. Onde só há becos e moradias precárias, o poder é paralelo."

Urbanização de áreas com facções

"É difícil, mas é o único caminho real. É um processo longo, caro e que exige coragem política. Urbanizar não é apenas pavimentar — é garantir luz, saneamento, escola, saúde e lazer. Sem isso, o tráfico continua sendo o Estado dentro da comunidade. Em algumas áreas, talvez fosse necessário o apoio das Forças Armadas para permitir que as obras avancem com segurança. Mas o essencial é vontade política e continuidade."

O Estado envolvido com crime

"O Rio tem uma das polícias mais corrompidas do país. Há ligações antigas entre agentes, milícias e tráfico. Isso corrói qualquer tentativa de integração. Como combater o crime se parte da força policial está aliada a ele? É preciso um processo profundo de saneamento interno, com controle externo e investigação. Sem isso, a cooperação entre as forças se torna inviável."

Fortalecimento das investigações

"Investigar custa caro e exige inteligência. Mas o foco no Brasil ainda é o confronto armado. É preciso investir em tecnologia, cruzamento de dados, análise de redes financeiras e inteligência territorial. O Comando Vermelho, por exemplo, opera com estrutura militar, usa drones e tem uma logística organizada. Não se enfrenta isso com caveirão, mas com inteligência."

PEC da Segurança

"A PEC busca constitucionalizar a cooperação entre União, estados e municípios. É uma tentativa de estruturar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), criado em 2018, mas que nunca se consolidou. Hoje, vivemos um apagão de dados e de integração. Cada estado tem seu sistema, suas estatísticas e protocolos. A PEC cria base legal para padronizar informações e procedimentos. Sem isso, o país continuará agindo de forma fragmentada."

Resistência de governadores

"Há um medo de centralização. Governadores alegam que o governo federal quer interferir nas forças estaduais, mas todos enfrentam falta de pessoal e recursos. Muitos falam em formar consórcios interestaduais de segurança, mas isso é inviável: ninguém tem efetivo para enviar a outro estado quando falta polícia em casa. Essa resistência é mais política do que técnica."

Funcionamento da integração

"A ideia é criar um sistema que permita troca de informações em tempo real, banco de dados unificado, cooperação em investigações e formação conjunta. Hoje, por exemplo, uma pessoa pode ter mandado de prisão em um estado e circular livremente em outro, porque os sistemas não conversam. Isso é inaceitável. A integração é o mínimo para um país que enfrenta organizações criminosas de alcance nacional."

Modelos internacionais

"O Canadá tem uma polícia nacional com grande credibilidade e atuação integrada. Nos Estados Unidos, embora o sistema seja descentralizado, o FBI coordena centros de inteligência e padronizar a coleta de informações. A Alemanha também tem uma estrutura federativa, mas com uma lei nacional que define responsabilidades e padrões. O Brasil precisa aprender a coordenar sem tirar autonomia."

Forças Armadas contra crime

"O papel das Forças Armadas deve ser excepcional. Elas podem apoiar em logística, obras ou em operações específicas, mas não podem substituir o trabalho policial. A solução passa por reformar as polícias, não por militarizar ainda mais. Quando o Exército vai embora, o problema continua lá, e, às vezes, pior."

Maior erro no enfrentamento

"Há a crença de que mais armas e mais confrontos significam mais segurança. O Brasil precisa sair dessa lógica. Segurança pública se constrói com presença do Estado, políticas sociais, urbanização e inteligência. Enquanto as ações forem reativas e violentas, o crime continuará se adaptando e se fortalecendo."

Futuro da segurança pública

"Depende da capacidade de repensar o modelo. É preciso integração, profissionalização, controle e transparência. E, sobretudo, planejamento urbano. Sem isso, continuaremos a repetir a história há quatro décadas: operações espetaculares, muitos mortos e nenhum avanço real."

*Estagiária sob a supervisão de Cida Barbosa

https://www.correiobraziliense.com.br/webstories/2025/04/7121170-canal-do-correio-braziliense-no-whatsapp.html 

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