O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal federal (STF), assumiu, nos últimos meses, um papel central no confronto entre o Congresso Nacional e a Corte. Se antes o foco das articulações parlamentares contra o STF era o ministro Alexandre de Moraes, o relator do inquérito das fake news e protagonista dos julgamentos que resultaram na condenação dos envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, entre os quais o ex-presidente Jair Bolsonaro, Dino é o "inimigo principal", especialmente do grupo de parlamentares que controla a distribuição dos recursos do Orçamento da União.
A mudança de alvo decorre do fato de o ministro ter decidido enfrentar o circuito opaco das emendas parlamentares para acabar com as chamadas "emendas secretas", que reapareceram como jabutis em cima da árvore no artigo 10 do Projeto de Lei Complementar nº 128/2025, aprovado pelo Congresso e encaminhado para sanção presidencial. No jargão político de Brasília, a expressão decorre de um comentário de um velho político maranhense, adversário do ex-presidente José Sarney: Vitorino Freire, senador pelo Maranhão de 1947 a 1971: "Meu filho, se você vai por um atalho e vê um jabuti em cima de uma forquilha, não bole nele. Pergunta primeiro quem o botou lá", declarou, em 12 de dezembro de 1968, véspera do AI-5. O deputado Ulysses Guimaraes popularizou a frase para apontar "contrabandos" de última hora, para atender privilégios, nas votações legislativas.
Com formação jurídica sólida e trajetória que transita entre a magistratura federal, a academia e a política institucional, o ministro Dino reúne um repertório incomum no STF. Ex-juiz federal, professor universitário, deputado federal, presidente da Embratur, governador do Maranhão, senador da República e ministro da Justiça, tomou posse na Corte em fevereiro de 2024. Essa biografia híbrida lhe confere compreensão fina tanto da técnica constitucional quanto da lógica de funcionamento do Congresso, especialmente no que diz respeito ao Orçamento como instrumento de poder.
No domingo, Dino suspendeu os efeitos do dispositivo legal que exumava as emendas secretas. O dispositivo previa a "revalidação" de restos a pagar não processados inscritos desde 2019 — inclusive aqueles já cancelados — permitindo sua quitação até o fim de 2026. Na prática, o artigo abria caminho para a reativação das emendas de relator (RP-9), núcleo do chamado orçamento secreto, declarado inconstitucional pelo STF em 2022 por falta de transparência e critérios objetivos. A decisão foi provocada por parlamentares do PSol e pela Rede Sustentabilidade, sob o argumento de que o Congresso tentava driblar decisões já consolidadas da Corte.
Impacto de bilhões
Os números dão a dimensão do jabuti gigante: de um total aproximado de R$ 1,9 bilhão em restos a pagar de emendas parlamentares inscritos desde 2019, cerca de R$ 1 bilhão tem origem justamente nas RP-9. Considerando outros passivos, a estimativa de impacto fiscal do dispositivo suspenso chega a R$ 3 bilhões. Na liminar, Dino foi taxativo: a revalidação desses restos a pagar equivale, na prática, à criação de uma nova autorização de despesa, sem respaldo em lei orçamentária válida. Ou seja, visava "ressuscitar modalidade de emenda cuja própria existência foi reputada inconstitucional". Ao fazê-lo, segundo o ministro, o Congresso violaria o devido processo constitucional orçamentário, a responsabilidade fiscal e até cláusulas pétreas da Constituição, como a separação de Poderes e a proteção aos direitos fundamentais.
Na liminar, Dino criticou práticas como a proliferação de "penduricalhos remuneratórios" no âmbito do Judiciário e das funções essenciais à Justiça, bem como a concessão reiterada e pouco transparente de benefícios fiscais a setores econômicos específicos. A lógica, segundo ele, é única: evitar a criação ou ampliação de despesas abusivas, desproporcionais ou dissociadas da capacidade fiscal do Estado.
A reação do Congresso foi imediata, ainda que muitas vezes disfarçada em críticas institucionais à "interferência" do STF. O artigo suspenso havia sido inserido de última hora em um projeto cujo objeto principal era outro — o corte linear de benefícios tributários, principal aposta do governo para equilibrar o Orçamento de 2026, com potencial de arrecadação estimado em R$ 22,4 bilhões, além do aumento da tributação sobre bets, fintechs e juros sobre capital próprio.
O ministro tenta acabar com as emendas secretas exigindo mais transparência. Em decisão na ADPF 854, determinou que o Tribunal de Contas da União identifique, em 10 dias úteis, os autores e beneficiários de 964 planos de trabalho de emendas individuais não cadastrados entre 2020 e 2024, que somam cerca de R$ 694,7 milhões. As informações devem ser encaminhadas à Polícia Federal para apuração de possíveis irregularidades.
Dino também ordenou a abertura de contas específicas por emenda, bloqueando transferências para "contas de passagem" e saques diretos, além de determinar auditoria da Controladoria-Geral da União sobre repasses no âmbito do Ministério da Saúde. Ao mirar o sistema de emendas, o ministro se transformou no novo alvo preferencial de um Congresso que busca se blindar contra investigações e preservar margens de manobra. A outra face da moeda é simbólica: Dino agarrou a bandeira da ética com as duas mãos. Ela estava órfã.
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