MEDICINA

Dormir bem ajuda a "limpar" o cérebro e evita doenças

Mais que descansar, o sono se estende para a prevenção de doenças neurodegenerativas e cardiovasculares. Entenda como o sistema glinfático, descoberto recentemente, é responsável por boa parte desse processo

Giovanna Fischborn
postado em 12/06/2022 08:26 / atualizado em 13/06/2022 15:31
 (crédito: kleber sales)
(crédito: kleber sales)

Ao contrário do que se pensa, o sono é um processo ativo, não passivo. Como se uma parte de nós fosse diurna e a outra, noturna, há funções que só ativamos de dia e outras, somente à noite. É no período noturno, por exemplo, que o fígado processa o colesterol, o cérebro trabalha pontos específicos e alguns hormônios são sintetizados. Essas são descobertas dos últimos 50 anos, que foram possíveis a partir do uso do eletroencefalograma, exame usado para avaliar a atividade elétrica do cérebro. Antes disso, só se conhecia a medicina do dia. Estudar o sono traz questionamentos biológicos e filosóficos e cada vez mais áreas médicas procuram entender a interferência dele na saúde.

Não é por acaso que o tema se fez tão presente no Brain Congress 2022, realizado em Gramado (RS), no início do mês, e que contou com a presença da Revista. Einstein Francisco de Camargos, médico do idoso do Hospital Universitário de Brasília (HUB), apresentou o sistema glinfático, sobre o qual se tomou conhecimento nos últimos 10 anos. Esse sistema é responsável por "limpar" o cérebro e é acionado justamente no sono profundo. Funciona como uma rede perivascular (que fica ao redor dos vasos) que drena toxinas e resíduos metabólicos do sistema nervoso central.

Estudos sugeriram que há maior taxa de purificação da beta-amiloide, proteína encontrada em pessoas com doença de Alzheimer, quando o sistema glinfático está em pleno funcionamento, ou seja, quando se dorme. "Essa descoberta ainda vai mudar muito os paradigmas das doenças cerebrais. É provável que o sono guarde algumas respostas", afirma Einstein.

Da mesma forma, dormir bem protege de distúrbios do sono. Segundo o médico, uma pessoa que altera o padrão natural de vigília durante o dia e sono à noite, dormindo menos de quatro horas e sentindo-se exausto com frequência, tem grandes chances de virar um insone crônico. "Sem citar a tendência a desenvolver depressão e ter um acidente vascular cerebral (AVC), devido a fatores estressores", aponta.

Nos animais circadianos — nome dado aos seres cujo organismo é regulado pelo dia e pela noite —, o sono tem três estágios. É o caso dos seres humanos. As fases podem ser divididas em vigília (indivíduo acordado), sono NREM (vai da sonolência ao sono profundo) e sono REM (fase mais profunda). Essa última é marcada por sonhos vívidos, movimentos musculares e atividade cerebral intensa. Tanto é que REM é a sigla para Rapid Eye Movement, que significa "movimento rápido dos olhos".

Na comunidade médica, ainda muito se busca entender sobre o sono, como vimos. Entre conflitos e convergências, os especialistas concordam que o ideal é não dormir de menos nem dormir demais, sendo a janela ideal de seis e 10 horas diárias. O que se sabe é que o sistema glinfático pode ter sua atividade reduzida também quando se extrapola esse tempo. Em relação aos dormidores curtos, que dormem cinco horas ou menos sem prejuízo aparente, ainda há dúvidas se eles teriam mais riscos de doenças cardiovasculares, como AVC.

Einstein chama a atenção para o medo social do uso de medicação: "Hoje, o que se defende é que você precisa dormir, mesmo que seja com medicação. O problema é que muitos pacientes buscam no remédio uma solução rápida, quando 70% a 80% dos casos poderiam ser resolvidos com higiene do sono", explica. A mudança de comportamento deve ser o primeiro caminho para tratar transtornos de sono. "Se não, vira um ciclo. Você toma medicamento à noite para dormir e, depois, toma de dia para ficar acordado e sentir-se produtivo", completa.

Cochilar faz bem?

Não se conseguiu provar que a siesta — como ficou conhecida, na Europa, a tradição de dormir após o almoço — faça mal. Quem já é adepto do hábito pode mantê-lo. No entanto, quem não tem o costume e já apresenta alguma dificuldade para dormir à noite não é bom que comece. Além disso, alguns horários devem ser evitados para não interferir no sono principal. Não é uma boa ideia tirar a soneca pela manhã e, principalmente, no final da tarde, pois adianta o pico de melatonina (hormônio do sono).

Vale dizer que compensar uma privação, dormindo poucas horas algumas vezes no dia ou tirar um dia inteiro para regular o sono, não faz sentido. Segundo o médico, eventualmente, não há problema. Mas a indicação geral é que isso não é sustentável.

Rotina de sono deve ser ensinada na infância

E é preciso ensinar as crianças a ter regularidade. Os fins de semana até podem ser uma exceção, desde que, no dia a dia, ela saiba diminuir os estímulos perto da hora de dormir e vá para a cama cedo. "A qualidade de sono impacta a criança para sempre, porque essa é a fase de maior desenvolvimento da vida, organização, fortalecimento da imunidade e construção do próprio corpo", instrui a médica Ana Bárbara Jannuzzi, pós-graduada em pediatria.

Os avanços nos estudos sobre sono vêm estimulando mudanças na sociedade. Um dos grupos que mais sofre são os trabalhadores de turnos não convencionais, que precisam passar muitas horas seguidas ativos ou vão madrugada adentro em alguma função.

Nesse mesmo sentido, sabendo que a inércia não ajuda no aprendizado, algumas escolas vêm repensando o horário de entrada de pré-adolescentes e adolescentes para meia hora mais tarde, como parte de uma medida pedagógica. Isso se justificaria, primeiro, porque nessa faixa etária a melatonina começa a ser produzida mais tarde e, consequentemente, o jovem passa a sentir sono mais tarde. Um outro motivo é que o uso de telas, cada vez mais cedo na vida, também joga o sono para frente.

"Estamos falando do tempo de tela, mas há também a questão do conteúdo. O que essa criança está assistindo? Aí, no dia seguinte, é difícil acordar às seis da manhã", lembra Ana Bárbara. A privação crônica, ou seja, que persiste, torna a pessoa mais propensa à agressividade e à dificuldade de concentração. A insônia, inclusive, acaba sendo um caminho natural. Esses hábitos desajustados se materializam em parassonias, como a síndrome das pernas inquietas, terror noturno e sonambulismo — esse último comum dos quatro aos sete anos —, além de pesadelos frequentes.

Por isso, a especialista reforça alguns pilares quando se fala do sono dos pequenos. É necessário ter uma boa rotina ao longo do dia, com atividades interessantes, brincadeiras, boa alimentação e exercícios. E os pais devem se atentar. O hábito deles com as telas espelham o comportamento dos filhos dentro de casa. "De repente, nota-se que a criança não se exercita como deveria ou tem muito medo à noite. Mas, assim como os pais, vai até a madrugada com o celular em mãos, o que mostra como eles refletem os exemplos que têm", reforça.

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