Pingos grossos lambem a janela do quarto enquanto me sento para escrever. Atrás da vidraça, a paisagem cinza ameaça apagar minhas palavras. Mais um dia de cidades devastadas, gente sem casa, com fome, guerras, doenças, perdas. Fecho a página das notícias como quem cerra a cortina. Não preciso ir longe… viver é mesmo tão doído!
Escolho um livro para amainar os olhos embaçados de chuva. Tiro da estante Cartas Perto do Coração (Record), uma coletânea de correspondências entre os escritores Fernando Sabino e Clarice Lispector. Não sei bem o que procuro até achar uma página com a ponta da folha dobrada. Sou arrebatada por uma frase do Fernando, em uma carta escrita em setembro de 1946, quando morava em Nova York.
Naquele mês, após ter operado as amígdalas e deixado o hospital, ele escreve à Clarice comentando um conto dela e um sonho que teve. Nessa carta, presenteia a amiga com o que eu considero uma pérola. Ele diz: “A gente sofre muito: o que é preciso é sofrer bem, com discernimento, com classe, com serenidade de quem já é iniciado no sofrimento”. Dali por diante, me agarro a essa iluminação.
A dor, afinal, atravessa a nossa experiência humana de modo inescapável. Ou como escreve a própria Clarice Lispector no livro Água Viva: “Dor é vida exacerbada”. Se ninguém vive sem sofrer, então, a pergunta que fica é: como lidar melhor com as dores que nos afligem? Como transformá-las e seguir em frente?
Força de vida
A fim de compreender esse algo nosso que é tão humano, fui conversar com mulheres que me ajudaram a ampliar o entendimento de que estamos nesse mundo para aprender e evoluir justamente por meio do que fazemos com o que sentimos. A nutricionista e terapeuta Ana Fanelli é uma delas. Sua história de luto e reconstrução de si me impactou. Há 12 anos, ela perdeu o filho mais novo para uma doença sem cura.
Felipe foi diagnosticado com uma síndrome neurológica rara com a idade de 12 anos. Sofreu um bloqueio elétrico no coração, seguido de complicações. Com o tempo, foi perdendo a mobilidade. “Não consegui aceitar a dimensão da gravidade, mas não tinha o que fazer, a não ser cuidar dos sintomas”, conta Ana. Segundo os médicos, havia uma expectativa de um a três anos de vida. Felipe viveu mais 13.
Mesmo com tantas limitações e dependendo de ajuda para atividades simples do dia a dia, o garoto pintava, cantava e conquistava a simpatia de todos à sua volta. “Ele tinha muita força de vida, e eu sinto que ele ficou mais tempo com a gente para ensinar. Viveu a graça de expressar quem ele era, uma pessoa muito alegre, que já acordava agradecendo o dia”.
Quando o coração congela
Ana não estava preparada para a perda do filho. Dois anos e meio antes, em uma das internações que Felipe enfrentou, ela procurou o primeiro auxílio psíquico. Sentada na poltrona do consultório, no entanto, ficou muda. Não sabia o que dizer. Foi o psicólogo quem jogou as cartas na mesa: “Você veio aqui para se preparar para a morte do seu filho”. Há dores que nem as quase 400 mil palavras da língua portuguesa dão conta de expressar.
Aos 25 anos, Felipe faleceu – 45 dias depois do pai dele, de quem a mãe já estava separada havia muito tempo. A reação imediata de Ana foi mergulhar no trabalho para não encarar o sofrimento sem nome. Sua vida se resumia a acordar, trabalhar e dormir. Na mesma casa, ela e o filho mais velho sofriam isolados.
“Foi um choque, para mim, muito profundo, sinto que eu congelei meu coração”, desabafa. Entrar no vitimismo não é nada difícil em uma situação como essa. Por que isso está acontecendo comigo? Justo eu e quem amo temos de passar por tal suplício? Essas eram perguntas que Ana fazia.
Além da raiva e do ressentimento por se ver naquela situação, tinha também um misto de culpa e vergonha pelos próprios sentimentos. “Eu saía daquele hospital e falava a mim mesma: ‘mas, Ana, você sai andando’… tudo o que eu assisti ao Felipe perdendo, eu podia fazer”.
O que se seguiu à morte do filho foi uma grande crise existencial. “Eu me dei conta de que estava viva. Mas e o que eu estava fazendo da minha vida?!”. O período de profunda tristeza e isolamento provocou um sentimento crescente de angústia.
No fundo do peito, martelando na consciência, a pergunta do sentido da própria vida não queria calar. E foi aí que Ana buscou novamente ajuda profissional. Chegou inicialmente a um grupo de mulheres e à psicoterapia, passando a se permitir “reconstruir os laços e lamber as feridas”.
A saída do labirinto
“Sozinha é muito difícil, mas com ajuda profissional é mais fácil superar as dificuldades”, atesta a médica e psicoterapeuta Cristiane Marino, com quem também conversei. É como um guia que mostra o caminho de saída do labirinto da dor. Afinal, a gente tem a tendência de achar que o que está sentindo é a totalidade, quando não é. “Se estou triste, é como se eu toda estivesse consumida pela tristeza. Ao perceber que isso é só um aspecto meu, que algo em mim está triste, mas não sou eu toda, a pressão interna diminui um pouco”.
Cristiane explica que, em situações de dores profundas, mas também nas menores e mais corriqueiras, há três papéis com os quais a gente acaba se identificando: o de vítima, agressor ou salvador. Buscamos culpados e justificativas externas, adotamos uma postura agressiva contra o outro ou queremos salvar tudo e todos. Em nenhuma das três posições, assumimos o nosso lugar no mundo como autores da nossa própria vida.
Não se trata de papéis estanques, em que somos apenas uma coisa ou outra. São posturas presentes em todos os seres humanos. “É como se fosse uma dança das cadeiras, em cada momento que a música para, a gente senta numa cadeirinha”, compara Cristiane, que promove um grupo de leitura do livro Abandonar o Papel de Vítima: Viva sua Própria Vida (Vozes), da psicoterapeuta suíça Verena Kast.
Na obra, ela pontua a importância de identificarmos “onde e quando nós mesmos desempenhamos qual papel”. Acabo compreendendo que perceber em qual cadeira estou sentada me ajuda a discernir o que é meu e o que é do outro. Me dou conta de que a responsabilidade de como reajo às situações é apenas minha, embora ainda me pegue culpando o outro pelo que sinto. “Por mais difíceis que sejam as condições externas, a gente escolhe como quer enfrentar as situações”, diz Cristiane.
Indefesa perante a dor e o mundo
Acontece que quem vive a situação nem sempre consegue perceber isso. De acordo com a psicóloga Ilana Roriz, o lugar de vítima é doloroso porque a pessoa acredita não ter condições de agir e paralisa. “Ela se sente indefesa perante a dor e o mundo, considera-se sem condições de lutar pela dignidade de ser agente na vida”.
Quem entra no vitimismo acaba recaindo também na agressividade consigo ou com o outro. Engana-se quem pensa que o efeito disso é meramente emocional, sem grandes repercussões concretas. Como se já não fosse grande coisa, essa dinâmica suga a energia psíquica, provoca a queda da vitalidade e aciona o sistema de luta e fuga, conforme explica Cristiane Marino.
As consequências não são poucas e podem incluir sono agitado ou insônia, estresse e problemas na imunidade, como a suscetibilidade a infecções e inflamações. “Se essas dinâmicas não são cuidadas, prejudicam a saúde física, desequilibram todo o sistema nervoso autônomo e a pessoa não ativa o sistema parassimpático, que é o de restauração”, ensina a profissional.
Algo a contribuir
Assumir a postura de vítima, no entanto, não é uma decisão consciente, mas, uma vez que nos damos conta dela, é importante ter paciência conosco e saber que há sempre uma saída. Segundo Ilana, é necessário reconhecer o quanto já se caminhou até aqui para entender que existe vida além da dor.
Foi isso que Ana Fanelli descobriu na jornada de autoconhecimento na qual embarcou, ao compreender que precisava transformar a dor que sentia e ressignificar a própria vida. Ela fez terapia, participou de roda de mulheres, ingressou na dança circular e fez formação holística de base.
Há cerca de cinco anos, saiu do trabalho corporativo como nutricionista para fazer um retiro sabático. Passou a ser consultora em nutrição, até fazer uma transição de carreira e se tornar terapeuta transpessoal e instrutora de mindfulness. Hoje, une a isso a alimentação consciente e o trabalho com a maturidade. Ana lembra que a dor inicialmente foi tão imensa que a congelou, deixando uma cicatriz.
Uma marca tão funda que pode estar lá quietinha, mas não deixa de existir e, às vezes, até reaviva. “Quando você consegue perceber que não é só você que passa por isso, essa cicatriz se acomoda. O universo do sofrimento está dado na nossa experiência humana. A questão é o que a gente faz com isso”.
A crise existencial provocada pela perda do filho fez com que Ana fosse em busca de se reinventar e expressar sua singularidade no mundo. Para ela, o que se vive hoje também pede isso de nós. “A gente está experimentando situações que estão esfregando na nossa cara que não temos controle da vida; passamos pela pandemia, agora essa emergência climática em vários locais no planeta. O que nos cabe é expressar o que temos a contribuir”.
Distanciamento e recolhimento
Mas onde estão nossos insumos? Ressoam em mim as palavras de Ilana: “Quando a pessoa sai da posição de incompreensão consigo e reconhece que algo de bom já existiu, aos poucos, retorna ao lugar que sempre há em nós, o de protagonista da nossa história”.
Cristiane Marino ensina que distanciamento e recolhimento são muito importantes nesse processo. Para recrutar os recursos internos e renovar as energias, são necessários momentos de pausa e repouso, assim como contato com a natureza e o belo, boa qualidade de sono e alimentação.
Mais uma dica valiosa para quem vive um momento de dor é não se expor desnecessariamente – seja nas redes sociais ou na vida cotidiana. “Veja um animal ferido. O que ele faz? Busca um abrigo onde ninguém o encontre. A gente tem de aprender o valor do recolhimento, que é diferente do isolamento”, afirma.
Outras atitudes de cuidado consigo também são úteis para não se deixar afundar no sofrimento, como movimentar o corpo, tomar sol, cultivar relações que nos dão alegria e incluir no dia a dia atividades que nos alimentam internamente – tocar um instrumento, escrever, pintar, cozinhar, cuidar de plantas, o que mais gostar.
Punhados de fé
“Andar com fé eu vou, que a fé não costuma falhar”… Felipe, que era um rapaz musical, tinha nesses versos do Gil uma das suas canções preferidas e lema de vida. E foi justamente esse sentimento que ficou para a mãe. Além de carregar a dor a tiracolo, Ana aprendeu a levar consigo punhados de fé.
Todo o processo vivido a fez acreditar em algo maior, o que hoje ela chama de Consciência Divina. Apesar de não ter uma religião definida, os ensinamentos budistas a ajudaram a entender melhor a natureza da vida e das emoções. Ela sentiu que, como pessoa, não daria conta, e só assim pôde se sustentar. A teia que une todos nós a amparava.
A psicóloga Ilana Roriz explica que o reconhecimento de que existe algo além do ser humano está na origem da psicoterapia. Para ela, cultivar a espiritualidade é, portanto, fundamental para a cura das dores da alma. “Com essa conexão, há a certeza de que não se está só, e assim desenvolve-se a fé em um processo de restauração da saúde. Com essa ligação refeita, a confiança em si mesmo se torna viável para perceber o seu protagonismo, apropriando-se do legítimo direito de ser único e especial perante Deus e a si mesmo”.
A jornada de Ana é prova disso. Dois meses antes de falecer, Felipe pintou um quadro cuja arte retrata uma orquídea pingo de ouro, de flores miúdas e amarelas. É essa a lembrança que Ana guarda consigo, representando o coração do filho que, enquanto esteve vivo, expressou toda sua força de vida e gratidão por estar aqui. Até hoje, quando se aproxima a data de passagem ou nascimento dele, ela vê florescer orquídeas douradas miúdas por aí. Após ter sofrido muito, Ana aprendeu a sofrer bem. É como se o filho se fizesse perto outra vez, e ela, de repente, sorri.
Por Luísa Sá Lasserre – revista Vida Simples
Escritora e jornalista sensível às dores do outro e do mundo, ela acredita que viver dói, e como, mas também faz sorrir.
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br