
As mulheres conquistaram um espaço de prestígio na literatura. Contudo, pesquisas apontam que ainda existem barreiras a serem enfrentadas pelas escritoras, especialmente a resistência por parte dos homens em ler livros que não tenham sido escritos pelo sexo masculino. Diante disso, as mulheres criam estratégias para impulsionar autoras, mas, mesmo assim, dados mostram que os hábitos de leitura feminino continuam mais equilibrados.
Uma pesquisa realizada no Reino Unido pela Nielsen BookData, empresa que se concentra na medição do mercado de vendas de livros no varejo, analisou quase 54.000 compras durante o ano de 2023 e mostrou que os livros das 20 escritoras de ficção e não ficção mais vendidas, como Agatha Christie, Harper Lee, Colleen Hoover, Taylor Jenkins Reid, Lisa Jewell e a autora de não ficção Rhonda Byrne, tiveram menos de 20% de compradores homens. Por outro lado, 44% das vendas dos escritores de ficção e não ficção mais vendidos, como George Orwell, Charles Dickens, Stephen King, James Patterson, príncipe Harry, Robert Kiyosaki e James Clear, foram feitas por mulheres.
Apesar dos dados serem exclusivamente do Reino Unido, eles mostram uma tendência cultural global e antiga de homens darem preferência para autores. As escritoras brasilienses Maria Amélia Eloi, 51 anos, e Mariana Negreiros, 22 anos, afirmam que questões de representatividade, identificação e outras barreiras de gênero permeiam todo o universo literário. Com quatro livros e outros projetos publicados, Maria Amélia utiliza a literatura para levantar questões sociais, especialmente em crônicas, poemas e livros infantis.
- Leia também: 15 livros nacionais para o Dia do Escritor
- Leia também: Inscrições abertas para o Prêmio Literário Biblioteca Nacional 2025
Em seu livro mais recente, uma coletânea de contos publicada em 2024, Sem Cabimento, ela apresenta diferentes realidades e aborda assuntos como autoestima, etarismo, maternidade, paixão, desejo, dor, violências, injustiças sociais e preconceito. Mesmo a obra não sendo voltada exclusivamente para mulheres, a escritora afirma que seu público é quase completamente feminino. "Comentários, resenhas e menções ao livro e aos textos que publico na internet também são quase sempre feitos por mulheres", conta.
A jovem Mariana Negreiros iniciou a carreira aos 14 anos e, hoje, possui seis livros publicados, entre romances e livros infantojuvenis. De acordo com a autora, as mulheres consomem mais os livros dela. Porém, acredita que isso se deve ao fato de ela escrever majoritariamente romances. Além disso, a escritora nota que, quando crianças, o sexo masculino é aberto para leitura, mas durante a adolescência e a vida adulta, esse hábito se torna mais frequente entre o público feminino. "Acredito que muito da leitura é visto como uma coisa de menininha."
Ciclo vicioso
A mestra em direitos sociais e políticas públicas, especialista em teorias feministas, bacharela em direito e fundadora da editora feminista Blimunda, Bruna Schlindwein Zeni, afirma que o início da adolescência é exatamente a fase em que as meninas mantêm ou aumentam o ritmo de leitura e os meninos abandonam os livros de ficção que os encantaram na infância. "Esse quadro leva o próprio mercado a reforçar estereótipos de gênero, direcionando mais lançamentos de ficção e fantasia ao público feminino, o que pode desestimular ainda mais os leitores homens, criando um ciclo vicioso de afastamento", destaca.
Segundo Bruna Schlindwein Zeni, isso reforça a ideia de que romances e obras ficcionais seriam fúteis ou "melosos", o que conflita com expectativas tradicionais de masculinidade. "Ler sobre as experiências e sentimentos de personagens femininas - ou escritos por uma mulher - poderia expor emoções que alguns não se sentem confortáveis em abraçar", salienta. Isso também é motivo de reflexão para Maria Amélia.
"Na minha opinião, muitos homens só conseguem enxergar e amar o que é feito por homens. Pensam que a literatura feita por mulheres não pode vir a emocionar, surpreender ou fazer refletir. Muitos pensam que só podemos ou sabemos escrever sobre assuntos rasos ou frívolos, água com açúcar", diz a autora. "Mas ainda bem que há, também, leitores homens muito sensíveis que nos leem com respeito, nos reconhecem e apoiam", acrescenta.
Além de serem uma parcela inexpressiva do público alcançado por escritoras femininas, o sexo masculino também é protagonista de casos de desrespeito e invisibilização das autoras. Maria Amélia destaca que um exemplo comum é quando entrevistadores focam mais na vida pessoal do que nas obras das escritoras durante a conversa.
Mesmo ciente desse preconceito, Mariana Negreiros afirma que sempre recebeu muito carinho dos leitores, mas passou por uma situação de desvalorização de um homem, que pediu para ela enviar um dos livros dela digitalmente para ele, alegando que não teve gasto com impressão e produção, então não teria nenhum custo para ela enviar gratuitamente a obra. No entanto, a autora entende a situação como uma desvalorização do trabalho dela como arte, não uma questão de gênero.
Apesar da falta de interesse pela leitura no geral, ambas as escritoras concordam que o cenário atual está mais propício para as mulheres. "Claro que tem preconceito, mas, atualmente, acredito que está bem mais aberto. Creio que a diferença seja mais no reconhecimento de quem é o autor", ressalta Mariana. "Por exemplo, quando um livro fica muito famoso e a autora é mulher, as pessoas não veem tanto quem é a autora, então eu acho que está bem melhor."
De acordo com Maria Amélia, ainda que as mulheres sejam menos lidas e os homens sejam maioria dos jurados nos grandes prêmios literários e nas curadorias em festas literárias, o preconceito estrutural contra a literatura feminina tem diminuído. Essa melhora se dá principalmente após os anos 1980, com estudos acadêmicos de resgate às escritoras pioneiras, estudos feitos por leitoras críticas sobre autoras contemporâneas, por conta da atuação de grupos coletivos e clubes de leitura que leem só mulheres e por conta da divulgação da literatura feita por mulheres nas redes sociais.
"Os debates sobre igualdade de gênero na literatura estão mais presentes, editoras e prêmios literários buscam dar visibilidade a escritoras, e a nova geração de leitores pode vir a ser menos presa a esses preconceitos", concorda a fundadora da editora feminista Blimunda, Bruna Schlindwein Zeni.
A cegueira seletiva
Leitor assíduo, o escritor e mestrando em literatura Lenio Carneiro Jr., 26 anos, está entre os homens que fogem dos padrões de leitura atuais. Para ele, não é preciso fazer esforço para ler mulheres, especialmente porque considera que elas têm “propostas de livros mais interessantes”. O pesquisador acredita que esse desinteresse também se deve à dificuldade da masculinidade com experiências sensíveis que exigem a habilidade de compreender e respeitar a singularidade do outro. “Homens, em geral, leem pouco e leem mal”, afirma.
De acordo com Lenio Carneiro Jr., dos homens que leem, poucos se interessam por ficção ou poesia, pois, segundo ele, não consideram esse tempo de leitura como um tempo útil. “O consumo de mídias por trás da masculinidade tem uma dualidade muito forte: ou nos interessamos por coisas extremamente bestas, em que consumimos com a intenção clara de não tirar nada de proveitoso ou então dedicamos esse tempo de consumo para coisas voltadas ao autodesenvolvimento”, define.
Devido a esse hábito, quando os homens leem, optam por livros que sentem que serão úteis, como A biografia do Elon Musk ou Os Segredos da Mente Milionária. “Esses homens não querem ler nada com nuance, mas sim receitas de sucesso. Em outras palavras, os homens querem ler livros, mas não querem ter a inconveniência de lidar com um texto literário”, destaca Lenio Carneiro Jr.
Além disso, o pesquisador afirma que o público masculino que não lê mulheres não é raro, mesmo com os catálogos das editoras cada vez mais diversos. “Esses homens leitores sentem aversão a livros com temáticas que partem da perspectiva feminina porque não conseguem se apropriar de histórias em que suas próprias questões não são centrais – algo que as leitoras sempre precisaram fazer, uma vez que homens sempre foram publicados e lidos como detentores do discurso universal”, afirma Lenio Carneiro Jr.
Esse boicote das autoras por parte dos homens também pode ser explicado pelo pensamento de que as mulheres podem tirar um espaço masculino na medida que crescem no mercado editorial. Apesar de ser apenas uma expansão, o pesquisador diz que alguns consideram que isso fere a produção literária de autores. "Muitas dessas obras tocam em questões que são da experiência feminina, de um discurso feminista, ou de alguma especificidade das mulheres, e sinto que o leitor masculino tem essa dificuldade de se relacionar com uma experiência diferente ao ler", evidencia o mestrando em literatura.
Para ele, um texto literário, seja de quem for, é assim definido por explorar a condição humana, as complexidades sociais e a pluralidade de vidas e existências de todo tipo de gente. Com isso, os homens têm dificuldade em reconhecer a experiência feminina como uma experiência potencialmente universal, porque não costumam exercer esse deslocamento. “São capazes de encontrar universalidade nos textos clássicos, mas não nas autoras contemporâneas.”
Dicas de Lênio Carneiro Jr.
Pessoas normais, de Sally Rooney
Se Deus me chamar não vou, de Mariana Salomão Carrara
Uma outra ciência é possível: Manifesto por uma desaceleração das ciências, de Isabelle Stengers
Uma exposição, de Ieda Magri
Diorama, de Carol Bensimon
O clube dos jardineiros de fumaça, de Carol Bensimon
Um teste de resistores, de Marília Garcia
Perfil dos leitores
Embora não tenha focado diretamente na escolha por gênero dos autores, a 6ª edição do Retratos da Leitura no Brasil, realizada em 2024 pelo Instituto Pró-Livro, demonstrou que as mulheres leem mais que os homens, com maior frequência e por mais motivações afetivas. O estudo apresenta os livros e os autores favoritos no Brasil, dados que escancaram o apagamento de figuras femininas no universo literário, especialmente na lista de escritores mais admirados pelos brasileiros, onde predominam nomes masculinos clássicos. Esses números sugerem que os leitores tendem a preferir livros escritos por homens, mas também podem significar que eles leem menos obras de escritoras.
10 LIVROS CONSIDERADOS MAIS MARCANTES
Bíblia
O pequeno príncipe
Harry Potter
Diário de um Banana
A culpa é das estrelas
Sítio do pica-pau amarelo
A cabana
Crepúsculo
Violetas na janela
O menino maluquinho
Fonte: Dados da 6ª edição do Retratos da Leitura no Brasil
10 AUTORES FAVORITOS NO BRASIL
Machado de Assis
Monteiro Lobato
Maurício de Sousa
Augusto Cury
Paulo Coelho
Jorge Amado
Zibia Gasparetto
Clarice Lispector
Carlos Drummond de Andrade
Chico Xavier
Fonte: Dados da 6ª edição do Retratos da Leitura no Brasil
Professora de literatura da Universidade de Brasília (UnB) Luciana Barreto afirma que a produção, a circulação e a recepção da literatura de autoria feminina historicamente são moldadas a partir de estruturas ideológicas que determinam os papeis sociais, a representatividade política e as valorações morais das mulheres. “Na forma de organização das relações sociais, o patriarcado e o capitalismo ancoram, subsequentemente, as desigualdades de gênero – daí a exclusão histórica das mulheres no cânone literário”, salienta.
De acordo com Bruna Schlindwein Zeni, a exclusão do sexo feminino no cânone literário se deve a um conjunto de fatores sociais, culturais e institucionais, especialmente à falta de modelos de leitura masculinos para meninos. “Educadores notam que, no Brasil, os meninos crescem vendo menos homens próximos que sejam leitores assíduos, enquanto as meninas frequentemente têm exemplos de mães, professoras ou outras figuras femininas que leem.”
Além disso, a arte e a literatura são ferramentas de visibilidade e de reescritura da história, pois, segundo Luciana Barreto, denunciam as mais distintas formas de violência contra a mulher, derivadas da aliança entre o patriarcado e o capitalismo. “O preconceito que contorna, ainda, narrativas consideradas ‘femininas’ deriva, portanto, do que atravessa um imaginário, ainda, alicerçado no patriarcalismo, nas relações privadas e públicas, na dominação de sexo/gênero e nos padrões culturais e comportamentais”, defende ela.
De acordo com a professora da UnB, essa especificidade discursiva na literatura de autoria feminina, com experiências culturais e relações sociais peculiares, faz com que as obras escritas por mulheres não sejam consideradas universais. Bruna Schlindwein Zeni acrescenta que o machismo estrutural influencia significativamente o gosto literário dos leitores por meio de práticas, expectativas e preconceitos enraizados na cultura, afetando desde a formação dos hábitos de leitura até as preferências por determinados autores, gêneros ou temas. “Ele opera de forma sutil, mas profunda, moldando preferências literárias e perpetuando desigualdades culturais que limitam a experiência literária dos leitores”, destaca a especialista em teorias feministas.
Nesse cenário, atualmente as editoras incentivam a publicação, a leitura e a citação de mulheres, resultando em uma certa prevalência de escritoras no mercado editorial. A editora Blimunda, inclusive, conta com uma produção editorial inteiramente feminina, que busca reconhecer a sobrecarga das autoras, oferecer acolhimento e incentivar a escrita feminina. "A boa notícia é que há movimentos de mudança: os debates sobre igualdade de gênero na literatura estão mais presentes, editoras e prêmios literários buscam dar visibilidade a escritoras, e a nova geração de leitores pode vir a ser menos presa a esses preconceitos", celebra.
Incentivo à literatura feminina
Com o intuito de incentivar a leitura feminina e tentar equilibrar o cenário de visibilidade e leitura entre autores e autoras, foi fundado o clube do livro Lendo Mulheres Brasília, mediado pela internacionalista e professora Renata Sanches. O grupo é formado majoritariamente por mulheres com idades variadas que queriam ler mais autoras, mas alguns homens também participam. Segundo ela, existe uma resistência maior por parte dos homens em ler obras escritas por mulheres. “No contexto geral, todo mundo lê pouco as mulheres. Por falta de acesso e por terem sido, as autoras, invisibilizadas desde sempre”, destaca a representante da comunidade de leitura.
Renata Sanches afirma que essa desvalorização pode ser notada como apagamento de Maria Firmina e Carolina Nabuco e com a criação da Academia Brasileira de Letras, que deixou Julia Lopes de Almeida de fora. "Além disso, foi criada por este mesmo caldo cultural patriarcal uma separação do que seria a boa literatura e a literatura feminina", diz. "Nessa divisão, fica claro que nossa categoria pertence à 'literatura popular', de menor qualidade, e restrita a temas como família, crianças, maternidade, a vida doméstica e correlatos."
No entanto, segundo a internacionalista, a literatura escrita por mulheres traz narrativas que muitas vezes são excluídas, minimizadas ou distorcidas na visão patriarcal dominante. De acordo com ela, enquanto autores homens, mesmo os mais talentosos, muitas vezes escrevem personagens femininas sob clichês e estereótipos, como a musa, a mãe sofredora e a sedutora, mulheres inovaram na forma da escrita e foram ignoradas por muito tempo. "Podíamos ter perdido a chance de conhecer a 'escrevivência' de Conceição Evaristo, a prosa experimental e provocadora de Hilda Hilst, a escrita confessional de Sylvia Plath, ou os fluxos de consciência de Virginia Woolf", reflete.
Apesar disso, Renata Sanches afirma que recentes movimentos feministas e pós-coloniais têm questionado o cânone, reinscrevendo autoras como Toni Morrison, Virginia Woolf, as irmãs Bronte, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Ana Cristina Cesar e Hilda Hilst no centro de uma 'literatura dita universal'. “Ainda assim, o rótulo de ‘literatura feminina’ persiste como forma de segregação implícita, o que só expõe que a hierarquia de gênero ainda não foi superada”, enfatiza.
Saiba Mais
Revista do Correio
Revista do Correio
Revista do Correio