Comportamento

Gaming disorder: quando o vício em jogos se torna um distúrbio mental

Entre streamings diários e maratonas de jogo, jovens enfrentam o desafio de equilibrar performance e saúde mental

Ian Naio Blower joga com os amigos todos os dias, mas tenta manter o equilíbrio entre trabalho, estudo e diversão  -  (crédito: Arquivo pessoal )
Ian Naio Blower joga com os amigos todos os dias, mas tenta manter o equilíbrio entre trabalho, estudo e diversão - (crédito: Arquivo pessoal )

Em 2022, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu o distúrbio de games como um problema de saúde mental. O vício em jogos eletrônicos, conhecido como gaming disorder, foi adicionado à Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, a CID, com o intuito de ajudar a população e as instituições de saúde a identificar riscos e promover tratamentos adequados à condição. 

Segundo a psicóloga com experiência em atendimento a dependentes de jogos Claudia Gomes, o transtorno é um padrão de comportamento disfuncional e persistente. "É quando o jogo deixa de ser uma atividade prazerosa e passa a ser compulsiva, levando a vários prejuízos significativos na vida da pessoa", alerta. 

Entre os principais critérios para o diagnóstico do problema, de acordo com a especialista, estão perda do controle da duração e da frequência das partidas, prioridade crescente do jogo em comparação com outras áreas da vida, como trabalho, estudo, sono, alimentação e vínculos afetivos. "A pessoa prioriza o jogo e deixa de exercer outros papéis sociais, trazendo prejuízos emocionais, sociais e financeiros", salienta. 

Para o diagnóstico existir, ele deve ser persistente por pelo menos 12 meses e "provocar comprometimento significativo ou sofrimento relevante". Esse período é longo porque os critérios de reconhecimento não são sempre negativos, especialmente por ser comum que os jogadores dediquem uma parcela grande de tempo para a atividade. "Muitos jogam todos os dias e, ainda assim, mantêm um bom funcionamento social, familiar e profissional", diz. 

Jogador semiprofissional de Valorant, Ian Naio Blower, 24 anos, afirma que tenta conciliar os momentos de entretenimento com as obrigações diárias. Normalmente, dedica-se a atividades da faculdade e do trabalho durante o período da manhã e da tarde e, à noite, participa de algumas partidas. "Particularmente, sou acostumado a ficar de 10 a 12 horas olhando para a tela, então o único problema que tenho é a questão postural de ficar muito tempo sentado na cadeira", explica. Apesar disso, os familiares do jovem desaprovavam o tempo que ele destinava à atividade, mas se acostumaram. Já os amigos, praticamente todos compartilham o hobby. Assim, nenhum encara como algo negativo.

Mesmo sem grandes prejuízos, o jogador afirma que a saúde mental deveria ser mais discutida nesse meio, pois o vício em jogos é um 'tabu' que quase nunca é citado na comunidade. "No meio competitivo do jogo que pratico, existem organizações que dão a devida atenção à saúde mental e contratam psicólogos esportivos para ajudar os atletas. Mas, infelizmente, ainda é um tabu, e a maioria não se interessa pelo assunto", enfatiza Ian. 

Streamer e jogadora profissional, Stephanie Santos, 28, dedica muito tempo ao jogo, especialmente por transmitir as partidas ao vivo na internet. Por trabalhar com isso, considera essa constância como algo natural. Contudo, percebe que muitos dos seguidores que a acompanham reservam horas diárias em frente às telas — e nem se dão conta.

Ainda que nunca tenha se deparado com casos de vícios em jogos, vez ou outra a streamer aconselha os fãs a buscarem outras atividades, sobretudo para aqueles que costumam se queixar de cansaço mental. "Tudo que se faz em excesso é prejudicial. Trabalho com jogos, mas também tenho outros afazeres e hobbies que me distraem", adiciona. 

Como o gaming disorder não é muito discutido dentro da comunidade, Stephanie Santos acredita que os influenciadores têm um papel relevante na promoção de um uso saudável dos games, pois costumam servir de exemplo para os seguidores. "Como streamer, tento criar uma comunidade acolhedora, conversando com as pessoas para pensarem no jogo como um divertimento e não como algo obrigatório."

Sem pausa

Na avaliação de Claudia Gomes, a grande diferença entre um jogador assíduo e um indivíduo com o distúrbio está no grau de controle. "O jogador com dependência apresenta perda de controle e perda de liberdade sobre o comportamento de jogar, com falhas repetidas nas tentativas de diminuir a intensidade, forte sofrimento emocional, principalmente irritabilidade e ansiedade, insistência no comportamento, mesmo com prejuízos evidentes, e uso do jogo como forma de regulação emocional", explica.

A psicóloga Jéssica Nogueira afirma que, quando não há vício, o indivíduo entende que a vida dele não é os jogos, e que eles são apenas entretenimento. "Um jogador assíduo, ou seja, não dependente dos jogos, consegue enxergar tal atividade com limites, sabendo que existe um período que precisa ser respeitado para sair daquela tarefa." De acordo com a especialista, crianças e adolescentes estão mais vulneráveis à condição, especialmente pela imaturidade e por buscarem validação e pertencimento.

"Uma forma de não demonizar os jogos é enxergá-lo como diversão e que crianças e adolescentes são muito mais vulneráveis a vícios do que os adultos. Jogar não é uma sentença de morte, mas, como tudo na vida, precisa ter limites", salienta Jéssica.

Tratamento terapêutico 

Apesar de cada caso necessitar de um atendimento especializado, as psicólogas Claudia Gomes e Jéssica Nogueira concordam que a abordagem terapêutica não costuma envolver interrupção total do jogo. "Reeducação do uso é a melhor opção. Quebrar um comportamento de uma vez abre espaço para muitos riscos psicológicos, podendo chegar a serem físicos. A reeducação do uso e da forma como o indivíduo lida com os games ajuda a melhorar essa relação e, consequentemente, as outras também", diz Jéssica Nogueira. 

 


  • Stephanie Santos vive da criação de conteúdo gamer nas redes sociais
    Stephanie Santos vive da criação de conteúdo gamer nas redes sociais Foto: Reprodução/Instagram
  • O vício em jogos é conhecido como gaming disorder
    O vício em jogos é conhecido como gaming disorder Foto: Reprodução/Freepik
  • O distúrbio dos jogos eletrônicos pode causar problemas mentais, queda no rendimento escolar ou profissional e problemas de sono
    O distúrbio dos jogos eletrônicos pode causar problemas mentais, queda no rendimento escolar ou profissional e problemas de sono Foto: Reprodução/Freepik/Dragos Condrea
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postado em 10/08/2025 06:00
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