
Você, mulher em um relacionamento heterossexual, já sentiu que tem de cuidar constantemente do seu parceiro? Existe um nome para esse esforço que muitas fazem para garantir o bem-estar emocional e social dos homens ao seu redor: mankeeping.
O termo — que pode ser traduzido como “cuidar dos homens” — foi criado por Angelica Puzio Ferrara, pesquisadora de pós-doutorado na Universidade Stanford, e rapidamente viralizou na internet. Ele descreve o trabalho que mulheres realizam para atender às necessidades emocionais e sociais dos homens, desde oferecer apoio em dilemas diários até os incentivar a manter amizades.
“O que venho observando na minha pesquisa é como as mulheres têm sido solicitadas, ou mesmo esperadas, a fazer mais trabalho emocional, tornando-se uma peça central — senão a principal — do sistema de apoio social de um homem” explica Ferrara em entrevista ao jornal O Globo. Ela ressalta, no entanto, que essa dinâmica não se aplica a todos os relacionamentos.
Na ficção, o mankeeping pode ser percebido, por exemplo, no filme Pequena Miss Sunshine, no qual Sheryl segura as pontas da família enquanto o marido é sonhador, imaturo e falido. Ela é a figura racional e responsável — quase maternal com ele e os demais. A animação The Simpsons também evidencia essa dinâmica quando Marge constantemente age como "mãe" de Homer — ela resolve os problemas, cuida da família e releva os erros infantis dele.
Rede de apoio precária
Ferrara pesquisa amizades masculinas no Instituto Clayman de Pesquisa de Gênero da Universidade Stanford e, junto com o assistente de pesquisa Dylan Vergara, publicou um artigo sobre o tema em 2024. O estudo investigou por que tantos homens têm dificuldade em formar laços afetivos próximos — uma questão crescente e bem documentada.
De acordo com uma pesquisa de 2021, 15% dos homens não têm nenhum amigo próximo, em contraste com 3% em 1990. No mesmo levantamento, quase metade dos jovens em 1990 afirmou buscar os amigos diante de um problema pessoal; já em 2021, pouco mais de 20% mantinha esse hábito.
Segundo Ferrara, enquanto as mulheres costumam contar com diversos pontos de apoio ao lidar com dificuldades, os homens tendem a recorrer apenas a elas. Para a pesquisadora, o mankeeping é uma extensão do conceito de kinkeeping — o trabalho de manter os laços familiares, algo que, de acordo com estudos, também recai desproporcionalmente sobre as mulheres.
Sobrecarga emocional
A psicóloga Aline Agustinho da Silva, mestra na área e professora de Psicologia e Medicina no UNICEPLAC, explica que o conceito abrange ações como lembrar compromissos, organizar tarefas domésticas e, principalmente, gerenciar as emoções do parceiro. “Mankeeping é uma expressão contemporânea que reflete papéis de gênero profundamente enraizados. A mulher se coloca como cuidadora e reguladora da vida emocional do casal — muitas vezes em detrimento de si mesma”, afirma.
Esse comportamento está ligado à construção social de gênero, que ensina mulheres, desde cedo, a cuidar, acolher e antecipar necessidades. “Enquanto isso, os homens, em geral, não são incentivados a desenvolver essas competências afetivas. Muitas mulheres ainda acreditam, de forma inconsciente, que seu valor está atrelado à capacidade de manter a harmonia no relacionamento”, diz.
Essa dinâmica, segundo a psicóloga, é recorrente em atendimentos clínicos, especialmente quando a paciente relata exaustão emocional, ansiedade, conflitos conjugais e sensação de solidão. “É muito comum escutar desabafos de mulheres que dizem se sentir como mães dos próprios parceiros. Isso gera frustração, ressentimento e esgotamento”.
O comportamento também revela fragilidades emocionais do próprio homem. Aline explica que muitos não têm repertório afetivo suficiente para lidar com suas emoções de forma autônoma, o que resulta em uma postura passiva na relação. “É como se a parceira fosse responsável por sua organização e bem-estar, uma ideia sustentada por padrões patriarcais internalizados”, observa.
Consequências e origem
Essa sobrecarga pode gerar impactos profundos na saúde emocional das mulheres. Entre os efeitos mais comuns, Aline cita o cansaço crônico, a baixa autoestima, os sentimentos de solidão — mesmo dentro de uma relação —, o ressentimento e a dificuldade de estabelecer limites. “Elas sentem que, se largarem o controle, tudo desmorona. E isso reforça um ciclo do qual é difícil sair”, analisa.
A origem desse padrão pode estar nos modelos familiares e culturais que as mulheres vivenciaram. “Em muitas culturas ocidentais, a estrutura patriarcal ainda impera. Mulheres crescem vendo mães sobrecarregadas e homens ausentes ou emocionalmente dependentes — e acabam reproduzindo esse modelo, mesmo sem perceber”, afirma a especialista.
A diferença entre mankeeping e um cuidado saudável, segundo Aline, está na reciprocidade e na autonomia. “Quando há troca, reconhecimento e equilíbrio, trata-se de um cuidado saudável. No mankeeping, o cuidado é unilateral, invisível e exaustivo. Se a mulher sente que precisa dar conta de tudo e o parceiro nem nota, é um sinal de alerta”, resume.
Apesar da complexidade, romper com essa dinâmica é possível — desde que haja disposição mútua. “É preciso diálogo e revisão dos papéis. O homem deve assumir responsabilidade por sua vida prática e emocional. A mulher, por sua vez, precisa reconhecer seus limites e deixar de usar o controle como forma de se sentir válida”, explica. A psicoterapia individual e de casal, nesse caso, pode ser um caminho importante.
Analfabetismo emocional
Ana Suy, psicanalista, professora e doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ, explica que o conceito de mankeeping revela, principalmente, um desamparo emocional dos homens heterossexuais em relação às suas próprias emoções. "Na nossa cultura, as mulheres têm mais incentivo e reconhecimento para lidar com sua intimidade emocional, conversando abertamente sobre seus sentimentos e buscando ajuda terapêutica com maior frequência do que os homens”, argumenta.
Essa diferença cultural dificulta que os homens expressem sua vulnerabilidade. Ana observa que, embora muitos homens tenham amigos, os grupos masculinos costumam focar em temas concretos como futebol, política e dinheiro, e não em emoções. Quando precisam falar sobre sentimentos, muitas vezes só têm a parceira como pessoa de confiança, o que acaba sobrecarregando as mulheres, que ficam responsáveis por carregar o peso emocional da relação.
A especialista destaca que esse fenômeno não é responsabilidade individual, mas uma herança cultural que vem sendo desconstruída. "As mulheres estão percebendo que não faz sentido carregar sozinhas essa sobrecarga". Ela ressalta que muitos homens ainda não reconhecem essa necessidade de autonomia ou sequer sabem como expressar suas emoções, o que evidencia um "analfabetismo emocional".
Ana relaciona a dependência emocional dos homens nas parceiras ao complexo de Édipo e às funções maternas e paternas tradicionalmente atribuídas. Segundo ela, "o menino aprende desde pequeno a buscar amparo na mãe, que é associada ao cuidado e acolhimento", padrão que tende a se repetir nas relações amorosas adultas. Essa repetição faz com que o cuidado emocional fique concentrado na mulher, enquanto o homem permanece em um papel mais infantilizado.
O mankeeping revela uma desigualdade emocional muitas vezes invisível, mas profundamente enraizada nas relações heterossexuais. Ao centralizar nas mulheres a responsabilidade pelo bem-estar dos parceiros, essa lógica perpetua um modelo de afeto baseado na sobrecarga e na renúncia. Como apontam as especialistas, essa tarefa não é uma escolha pessoal, mas um legado cultural que começa a ser questionado.
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