
Famílias podem ter diversas configurações — e dentro da parentalidade LGBTQIA+ os membros são plurais. Para as pessoas queer, a fundação de uma família existe de diferentes modos: adoção, barriga de aluguel e fertilização in vitro, por exemplo.
Adoção tripla
Para Carlos Ruiz e Lucas Monteiro, ser pais sempre foi um desejo, e a adoção foi o que mais tocou o coração do casal. No entanto, na época em que iniciaram o relacionamento, em 2009, a opção ainda não era uma possibilidade real.
Atualmente, eles são pais de três crianças: Kawã, Edgar e Ketlin. Carlos conta que o processo de adoção para um casal homoafetivo é é exatamente igual de um casal heterossexual. Ao visitar a Vara da Infância e Juventude de Araruama (RJ), descobriu ser necessário fazer um curso, entregar documentos e realizar entrevistas com psicólogo e assistente social — processo que durou cerca de 10 meses.
Habilitados, entraram na fila de adoção em 2019. Seis meses depois, em maio de 2020, tiveram o primeiro contato com os filhos por meio de um grupo de WhatsApp chamado de “busca ativa” — cujo foco são crianças “fora da fila” (sem pretendentes parentais), normalmente mais velhas, grupo de irmãos ou com deficiência.
Ao receber a mensagem de que existiam três irmãos disponíveis para a adoção, Carlos narra que sentiu que já eram seus filhos: “Em junho de 2020, em meio a pandemia, fomos conhecer nossos filhos na casa de acolhimento. Um mês depois, em julho, eles puderam vir para casa.”
No início, a adaptação foi difícil devido a demandas escolares, criação de vínculos e pandemia. “Nossos filhos não eram alfabetizados, então, nós dedicamos ao máximo para que eles superassem isso", explica Carlos, que é professor. “Existiram também desafios com o letramento racial, nossos filhos não se reconheciam como crianças negras, e nós como pais brancos não podíamos deixar isso passar.”
O racismo era uma realidade que o casal não tinha ideia do quão presente seria no dia a dia. Com a chegada do trio, os privilégios ficaram evidenciados. “Conversamos muito com nossos filhos sobre todo tipo de preconceito. Nós, como pais, estamos sempre atentos para combater qualquer indício de racismo”, argumenta.
O preconceito por serem dois pais também os atormentou — principalmente na internet, que Carlos descreve a falta de penalidade. Ao início das aulas dos filhos, colegas das crianças fizeram comentários maldosos. “‘Ter dois pais é feio, isso não é de Deus.’ Isso foi falado para nossa filha, que tinha apenas 6 anos na época. Ela mesma retrucou dizendo que não era feio. Foi ela mesma quem nos contou o ocorrido e reclamou na direção”, lembra o pai.
No ambiente escolar, Carlos ainda relata dificuldades: “Apesar de tentarem acolher, são ineficientes. Logo no primeiro contato se percebe isso pela ficha de matrícula, onde ainda se exige o nome da “mãe” para cadastro, sendo que é muito simples incluir o campo “filiação”. Já fizeram nossos filhos produzirem atividades para o Dia das Mães… que mãe!? Acreditamos que todo corpo docente precisa estar preparado para lidar com a diversidade dentro das escolas, afinal, são muitas composições possíveis, e os profissionais da área educacional precisam saber lidar com isso.”
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Para as crianças, o entendimento sobre a composição da família foi um processo natural, “onde o amor é peça fundamental que dispensa qualquer outra explicação”. Desde o início os filhos sabiam que teriam dois pais e chegaram a buscar identificações com um modelo heteronormativo. Ao passar do tempo, entenderam que todos participam de afazeres domésticos e que a única coisa que de fato é necessária é o amor, conforme Carlos.
Carlos celebra que os filhos ensinam muito mais do que imaginam: “Hoje, temos uma visão de mundo muito diferente da que tínhamos antes deles nascerem para nós.” Para os casais LGBT+ que querem adotar, aconselha: “Se a adoção é seu sonho, vá atrás dele! Tome cuidado com as opiniões alheias, elas são cheias de preconceitos! Esteja preparado para muitos desafios, não existe romantismo na paternidade/maternidade, principalmente na adoção, mas também existe muito amor e transformação. Se permita a errar, se permita amar e ser amado incondicionalmente.”
Fertilização in vitro
A fertilização in vitro é uma alternativa para muitos casais — e foi a escolhida pela psicóloga, escritora e criadora de conteúdo Paula Dalalio Frison, 36 anos, e pela gerente comercial Camila Krauss Provenzano, 45 anos. Para elas, o processo foi marcado por ansiedade e incertezas, mas esses sentimentos serviram para uni-las ainda mais e fortalecer o compromisso com o sonho da maternidade.
Desde a chegada de Benjamin, a rotina da família ganhou um novo significado. “Tudo ficou ainda mais especial e gostoso”, relata o casal. A experiência de acompanhar o crescimento e as descobertas do filho trouxe um novo olhar para o mundo e fortaleceu valores como respeito, empatia e amor. “Buscamos ser melhores todos os dias”, afirmam.
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No entanto, o reconhecimento da legitimidade da família por parte da sociedade ainda enfrenta barreiras — algo que se evidenciou já na maternidade. Paula relata que, após o nascimento de Benjamin, ainda no quarto, a equipe médica insistiu, de forma desrespeitosa, em dizer que o doador seria o pai da criança. “É importante dizer que doador é doador e pai é pai — há uma diferença clara. Depois, passaram a se referir ao meu cunhado como o pai do Benjamin. Ou seja, nem se preocuparam em verificar em qual quarto estavam entrando para perceber que ali estavam duas mães”, lembra.
Foi ali que elas perceberam que a jornada da maternidade não seria simples. Em um shopping, o casal foi alvo de homofobia por parte de um idoso que, ao notar que Benjamin tinha duas mães, passou a gritar e xingar. “Infelizmente, a homofobia ainda é muito presente em nossa sociedade”, lamentam.
Para elas, ainda falta representatividade — muitas pessoas ainda têm dificuldade em falar com naturalidade sobre famílias diversas. Diante disso, é movida pelo desejo de promover mudanças, Paula lançou o livro infantil Onde Mora o Amor?. A obra aborda a diversidade familiar e foi pensada para ultrapassar a bolha da comunidade LGBTQIAPN+. “O livro chegou até famílias heteronormativas para que as crianças conheçam diferentes modelos de família. Assim, o preconceito tende a diminuir, já que essas crianças vão crescer em uma sociedade mais aberta à diversidade”, explica.
Elas nunca sentiram necessidade de explicar a Benjamin por que ele tem duas mães. Para o menino, isso é algo natural — assim como o é para filhos de famílias heteronormativas, que não precisam de explicações sobre a presença de um pai e uma mãe. “O que fazemos é apresentar a ele as inúmeras possibilidades de formato familiar por meio de livros. E é isso que desejamos que as famílias heteronormativas também façam”, aconselham.
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Na hora de escolher a escola do filho, optaram por uma instituição não tradicional, que valoriza a diversidade. Para o casal, o ambiente escolar precisa refletir os princípios da família e ser um espaço que acolha e celebre a pluralidade.
A mensagem deixada para outros casais LGBTQIAPN+ que desejam ter filhos — seja por meio de tratamentos ou da adoção — é clara: “Tenham!”. Para elas, exercer a parentalidade é também um ato de transformação. “Precisamos colorir cada vez mais esse mundão. Esse direito também é nosso e merece ser vivido com plenitude”, reforçam.
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