
A regulamentação do uso medicinal da cannabis para animais, aprovada em outubro de 2024, representa uma virada histórica na medicina veterinária brasileira. O que antes era feito em uma zona cinzenta legal agora ganha respaldo jurídico, segurança para veterinários e esperança para tutores que buscam qualidade de vida para seus pets.
A médica veterinária Rebeca Londucci, especialista em medicina canábica, presenciou de perto os efeitos positivos da terapia. "Já consegui tratar e cuidar de várias condições com ela, como dermatite, doença inflamatória intestinal, ansiedade, apetite seletivo, além de ser muito útil em cuidados paliativos, doenças osteoarticulares, no controle da dor em pós-cirúrgicos e também em sequelas de doenças como cinomose", relata.
O segredo está no sistema endocanabinoide, presente em todos os animais vertebrados. Ele regula funções como sono, apetite, dor, humor, inflamação e defesa do organismo. A cannabis age diretamente nos receptores CB1 e CB2, ajudando o corpo a voltar ao equilíbrio. "É por isso que conseguimos tratar diferentes doenças e sintomas de forma mais natural e focada no bem-estar", explica Rebeca.
Estudos brasileiros e internacionais já demonstraram a eficácia dos fitocanabinoides em epilepsia refratária, dor crônica, inflamações e ansiedade. Segundo o médico veterinário e pesquisador Lucas Cardoso, diretor da Associação Brasileira do Pito do Pango (Abrapango), a cannabis pode ser utilizada até mesmo em pacientes saudáveis, como modulador da homeostase celular. "Ela se soma a protocolos já existentes, sem substituir medicamentos tradicionais, mas oferecendo sinergia e reduzindo efeitos colaterais", afirma.
O diferencial em relação a fármacos clássicos, como o fenobarbital, é significativo. Enquanto esse anticonvulsivante pode causar sonolência excessiva, alterações hepáticas e renais, a cannabis apresenta efeitos adversos mais leves e transitórios — geralmente sonolência inicial ou alterações gastrointestinais. Além disso, sua ação é multimodal, atuando não só em convulsões, mas também em dor, ansiedade e doenças inflamatórias.
Histórias que comprovam resultados
De acordo com dados levantados pela Associação Brasileira de Apoio Cannabis Medicinal (Abracannabis) e pela Abrapango, a procura por tratamentos à base de cannabis para animais no Brasil aumentou mais de 250% nos últimos três anos. Só em 2024, foram mais de 10 mil tutores que buscaram informações sobre a terapia junto a associações e clínicas especializadas. A maior parte dos pedidos está ligada a casos de epilepsia, dor crônica, inflamações e distúrbios de comportamento. Essa procura crescente mostra não apenas a eficácia do tratamento, mas também um movimento social de quebra de preconceitos em relação ao uso da planta.
Para os tutores, os relatos são de transformação. A servidora pública Sandra Oliveira, tutora de Theo, da raça Jack Russell, um cão epilético de pequeno porte, viu a vida do animal mudar em apenas três meses de tratamento. "Meu cão apresentava até três crises por semana. Com a cannabis, ele está há 90 dias sem convulsões. A qualidade de vida dele voltou e a nossa rotina em casa se tornou muito mais tranquila", afirma.
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Já o adestrador José Donizete, tutor da golden retriever Lindoia, via sua cadela enfrentar um cenário de ansiedade extrema e problemas intestinais. Depois de iniciar o uso de óleo full spectrum, rico em CBD e THC, a melhora foi evidente. "Lindoia, hoje, é uma cachorra calma, regulou a questão intestinal e está muito mais equilibrada. Foi uma transformação para ela e para toda a família", conta.
Os resultados, segundo Lucas, não se restringem a cães e gatos. Há registros positivos em aves, roedores, cavalos e até bovinos. Em muitos casos, a cannabis tem sido determinante em cuidados paliativos, reduzindo dor, náuseas e inflamações em pacientes oncológicos.
Avanços e desafios
Apesar do avanço regulatório, ainda existem entraves. O alto custo, a burocracia para importação e a ausência de manipulação em farmácias veterinárias dificultam o acesso. "As associações desempenham papel fundamental ao fornecer produtos de qualidade e orientar veterinários e tutores. Sem elas, muitos animais ficariam sem acesso ao tratamento", observa Rebeca.
Outro obstáculo é o preconceito. Muitos profissionais ainda não receberam formação adequada sobre o sistema endocanabinoide, e parte dos tutores associa o termo "cannabis" à maconha recreativa. Para Lucas, o caminho é a informação. "Estamos vivendo um avanço cultural e médico. Assim como os antibióticos mudaram a história da medicina no século 20, acredito que a cannabis será o divisor de águas do século 21", projeta.
No horizonte, a expectativa é de que mais pesquisas ampliem o uso clínico da planta, consolidando o Brasil como referência científica na América Latina. Para tutores como Sandra e José, entretanto, os benefícios já são concretos. "Sei que ainda há preconceito, mas ver meu cão saudável e sem crises me dá certeza de que vale a pena buscar essa alternativa", resume a servidora pública.
Especialistas também apontam que a regulamentação pode movimentar a economia e a produção científica brasileira. Estima-se que, com maior incentivo à pesquisa e ao cultivo regulamentado, o mercado veterinário da cannabis possa atingir cifras milionárias em poucos anos, gerando empregos e consolidando o país como polo de inovação na área. "O Brasil tem potencial de liderança, não apenas no consumo, mas também na produção de conhecimento e desenvolvimento de medicamentos seguros e acessíveis", destaca Lucas Cardoso.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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