Cultivar amizades, sejam elas de longa data, sejam as recém-chegadas, é algo que a ciência comprova como essencial. Além da qualidade da relação, a quantidade de amigos também conta para a saúde mental, mas será que existe um número ideal?
Segundo pesquisa da Growth Distillery e do Medibank da News Corp, divulgada pela revista Vice este ano, o número de amigos tem uma conexão direta com o bem-estar. O estudo, feito na Austrália, mostrou que pessoas que relatam ter boa saúde mental costumam ter cinco companheiros de vida, enquanto os que possuem apenas três indicam um pior estado.
O estudo também apontou que quase metade dos australianos não se sente confiante em falar sobre saúde mental, mesmo quando o outro inicia o assunto, pois "não sabem o que dizer". No entanto, a superficialidade e o distanciamento estão exatamente entre os pilares de uma amizade. Mas na prática será que a pesquisa tem respaldo?
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Para o psiquiatra Raphael Boechat, professor do curso de medicina do Centro Universitário Uniceplac, ter parceiros de jornada é um fator de proteção para várias doenças psiquiátricas, inclusive o suicídio. Mesmo assim, ele não acredita que exista um número ideal de amigos, pois a intensidade é mais relevante que a quantidade. "A qualidade das amizades é mais importante que a quantidade, mas a solidão é um fator de risco significativo para a saúde mental."
Traços de personalidade também são fatores relevantes para a quantidade necessária de companheiros para diferentes pessoas. Aqueles com maior extroversão e menor sensibilidade à rejeição tendem a buscar círculos sociais mais amplos, enquanto aqueles com predominância de traços introspectivos e neuroticismo — nível crônico de instabilidade emocional — mostram preferência por vínculos mais seletivos e profundos. Por isso, o critério mais relevante não é a quantidade, mas o grau de sintonia entre o modo de se relacionar e a organização psíquica do sujeito.
A qualidade de uma relação pode ser medida por alguns critérios mínimos de reciprocidade, respeito aos limites e ausência de manipulação emocional. De acordo com o pós-PhD em neurociências e mestre em psicologia Fabiano de Abreu, amizades caracterizadas por cobranças constantes, desqualificação sutil ou necessidade de validação contínua tendem a gerar sobrecarga afetiva e ativação crônica de sistemas de alerta. "Para preservar a saúde mental, é necessário desenvolver a capacidade de observação da qualidade do vínculo, estabelecendo limites funcionais e reconhecendo sinais de desgaste emocional precoce."
Além disso, segundo o mestre em psicologia, a autoanulação, o sentimento de culpa constante e a sensação de obrigação moral sem retorno afetivo são indicadores de relações disfuncionais. Observar esses padrões permite a seleção de amizades que favoreçam a coesão interna e a autorregulação emocional.
Laços também não devem ser forçados, são vínculos criados naturalmente e apenas reconhecidos. Então, é muito difícil criar e manter uma relação com pessoas que pensam radicalmente diferente, especialmente durante a adultez, quando as pessoas se tornam mais criteriosas e menos genuínas. "A chave para manter amizades na idade adulta é também manter um comportamento mais infantil", recomenda Raphael Boechat.
Afinidades inesperadas
Em meio a atribulações, as técnicas de enfermagem Stephany Moreira, 21 anos, e Paulicéia Costa Lacerda, 39, reconheceram uma na outra um ponto de apoio, em que nunca houve um impedimento em falar sobre problemas psicológicos. Elas se conheceram no curso profissionalizante, em 2023, e, mesmo com a diferença de idade, encontram equilíbrio uma na outra. “Um dia, no ônibus, nós estávamos conversando e ela me contou pela primeira vez a causa dos transtornos mentais dela. Nesse momento, vi que não estava realmente sozinha”, conta Stephany.
Apesar de não se verem tanto quanto gostariam e não terem o costume de saírem para fazer coisas novas, como ir ao cinema, as duas estão sempre presentes quando precisam, ainda que virtualmente. Para Paulicéia, o segredo da amizade delas está exatamente nas conversas profundas em momentos difíceis. “Gostamos de desabafar e falar como estamos no momento. Sempre ouvimos e tentamos apoiar uma à outra.”
De acordo com Stephany, apenas falar sobre os sentimentos com outra pessoa já é uma ajuda. “O que eu mais valorizo na Paulicéia é que ela não se deixa derrubar. Enfrenta quem for e o que for, vai atrás do que deseja e não aceita menos do que merece de ninguém. Ela ajuda muito as pessoas e sempre está aberta quando a gente precisa”, acrescenta.
Laços que resistem ao tempo
Amigas desde os cinco anos, as estudantes Marcela Paiva, 21 anos, e Jamile Nogueira, 21, conheceram-se por meio das respectivas irmãs mais velhas, que estudaram juntas. No decorrer dos anos, elas sentiram a necessidade de compartilhar vivências para além do ambiente escolar, estando presentes em diferentes ocasiões e fases da vida uma da outra. “Percebi que nossa amizade era especial quando vi que não me lembrava da vida sem ela”, relata Jamile.
Apesar de fazerem cursos diferentes na graduação, a amizade se manteve na vida adulta e, agora, elas têm o privilégio de trabalharem em prédios próximos, o que favorece o contato. De acordo com Marcela, o amadurecimento fez com que o amor entre elas aumentasse, então existe muito carinho, preocupação e conselhos na relação delas. “O maior jeito que temos de apoiar uma à outra é conversando. A Jamile tornou-se uma pessoa com quem é muito fácil falar dos problemas cotidianos, familiares e amorosos, pois não sinto julgamentos da parte dela.”
Apesar da longa amizade, elas nunca enfrentaram grandes conflitos e, quando surgia algum atrito, o tempo sempre se encarregava de resolver. Marcela recorda que a última vez em que ficou chateada com a amiga foi aos 14 anos, quando Jamile teve uma atitude grosseira, mas o episódio logo foi superado e caiu no esquecimento.
Mais chegados que irmãos
O contador Jhoy Alves, 46 anos e a professora Edilene Dutra, 44, viram-se pela primeira vez em 1990, quando ambos se mudaram para a mesma vizinhança. Durante a construção da casa deles, os pais se conheceram e os dois, ainda crianças, tornaram-se "inseparáveis". De acordo com Jhoy, a conexão foi natural, eles cresceram juntos e sempre dividiram segredos, fases da vida e o amor por dançar em pagodes. "É uma amizade que resiste ao tempo e às mudanças", destaca.
O contador lembra que, na época em que eles se conheceram, as coisas não eram tão fáceis, então passaram por muitos perrengues juntos. Mesmo assim, nunca deixaram de se divertir por saírem apenas com o dinheiro da passagem ou terem que dividir um cachorro-quente com refrigerante, pois sempre tiveram um ao outro.
Durante a adolescência, fase marcante para ambos, gostavam de ir para pagodes e Edilene garante que as danças deles eram sincronizadas. No entanto, com a chegada da vida adulta, eles não se afastaram, mas começaram a compartilhar outros momentos. "Não era mais o pagode, passou a ser família, emprego, estudo, desafios e assim vai. Até hoje, não importa o quão juntos estamos, temos a certeza de que um estará apoiando o outro", celebra Edilene.
Mesmo com a correria, a dupla sempre dá um jeito de se falar e combinar de se encontrar, especialmente em bares "copo sujo". "O que a gente mais valoriza é o cuidado. Em um mundo tão acelerado, parar o dia para dar atenção ao outro virou algo raro, e é justamente esse gesto simples, mas cheio de significado, que a gente mais preza na nossa amizade", ressalta Jhoy Alves.
Entre comunidades
Redes de afeto que nascem de afinidades, muitas vezes na escola, na faculdade ou em hobbies compartilhados, também desenvolvem uma dinâmica própria. A estudante Joyce Versiani, 20 anos, faz parte de um grupo de amigas formado por Leticia Gontijo, 19, Roberta Melo, 20, e Ana Laura Marques, 20, todas estudantes. Joyce, Letícia e Roberta se conheceram ainda na escola, em Unaí (MG), há mais de 10 anos. O grupo, porém, só ficou completo com a chegada de Ana Laura, que entrou para a turma há cinco anos.
Após viverem o último ano do ensino médio juntas, no qual aproveitaram cada segundo, elas seguiram caminhos diferentes, mas continuam unidas. Atualmente, Joyce e Leticia moram em Brasília, enquanto Roberta e Ana Laura continuam em Unaí. No entanto, elas conversam todos os dias e, sempre que existe a possibilidade, encontram-se. Além de falarem sobre tudo, elas têm o hábito de preparar novas receitas juntas e abrir um vinho enquanto compartilham novidades. “O que torna a nossa amizade especial é que a gente sempre faz de tudo para estarmos juntas”, salienta Joyce.
Embora tenham interesses e planos diferentes para a vida adulta, as amigas fazem questão de apoiar os sonhos umas das outras. Joyce e Ana Laura estudam para ingressar em medicina e trocam experiências sobre o tema. Já Letícia optou por direito, enquanto Roberta escolheu psicologia. Em meio a realidades distintas, o que permanece como ponto comum é o companheirismo, que todas dizem ser o que mais valorizam.
Tipos de amizade
De acordo com o Pós-PhD em Neurociências e mestre em psicologia Fabiano de Abreu, nem todo vínculo tem o mesmo peso, e as amizades podem ser classificadas conforme a profundidade emocional, a função social e a reciprocidade afetiva. Por isso, para o especialista, enquanto relações de qualidade promovem sensação de pertencimento, validação emocional e previsibilidade afetiva, elementos fundamentais para a regulação do sistema nervoso autônomo, as superficiais ou excessivamente numerosas podem gerar uma falsa sensação de integração, frequentemente associada à manutenção de máscaras sociais e aumento da sensação de vazio.
Utilitárias: aquelas baseadas em interesses ou trocas práticas, geralmente associadas a ambientes profissionais ou circunstanciais. Embora não sejam necessariamente negativas, não oferecem suporte emocional profundo.
Afetivas: são vínculos baseados em confiança, escuta e empatia. Essas relações tendem a promover estabilidade emocional, ativando circuitos neurológicos de recompensa e regulação afetiva.
Circunstanciais de convivência: comuns em grupos sociais ou acadêmicos, podem gerar vínculos afetivos temporários e menos estruturantes. O impacto emocional de cada tipo está diretamente relacionado à coerência entre o vínculo estabelecido e as necessidades psicológicas do indivíduo.
Simbióticas: em que há dependência emocional e fusão de identidade. Este tipo de relação pode gerar sobrecarga afetiva e dificultar o desenvolvimento da autonomia psíquica, sobretudo quando a reciprocidade é assimétrica.
Amizade na tela
Amigas para sempre (série): acompanha duas amigas inseparáveis desde a pré-adolescência, Tully e Kate, que enfrentam altos e baixos. Divertida e emocionante, a série tem romances coadjuvantes, mas o destaque é a grande amizade das personagens.
Sex and the city (série/filme): segue quatro amigas em Nova York enquanto exploram carreira, amor, sexo. A série mistura humor, drama e temas contemporâneos da vida feminina.
Quatro amigas e um jeans viajante (filme): Quatro amigas compartilham um jeans que misteriosamente serve a todas, mesmo tendo corpos totalmente diferentes. Cada uma vive experiências pessoais diferentes, mas a amizade e a peça de roupa as mantêm unidas durante as férias.
Friends (série): um clássico sobre a amizade, Friends acompanha seis amigos que moram em Nova York e lidam com trabalho, amor e situações cotidianas com humor.
Thelma & Louise (filme): vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original em 1992, Thelma & Louise segue duas amigas em uma viagem de fim de semana que se transforma em fuga após um incidente.
Um senhor estagiário (filme): Um viúvo de 70 anos se torna estagiário sênior em uma startup de moda, e transforma o ambiente ao compartilhar experiências e criar laços afetivos.
Clube dos cinco (filme): Cinco adolescentes de diferentes classes sociais passam um sábado de detenção juntos, e criam uma conexão inesperada.
