Moda

O valor do feito à mão: como o crochê se reinventa ao longo dos anos

Do resgate afetivo ao consumo consciente, o crochê reafirma sua força como peça artesanal exclusiva, sustentável e cheia de identidade visual

A técnica artesanal que atravessa gerações está de volta ao centro da moda mundial. Mais do que um resgate estético, o movimento simboliza um retorno ao feito à mão, ao tempo da criação manual e à busca por exclusividade. Diferentemente de outras técnicas, como tricô e bordado, que podem ser reproduzidas por máquinas, o crochê só existe pelas mãos de quem o tece — o que influencia no seu diferencial.

No Brasil e no mundo, a procura por peças artesanais cresceu nos últimos anos, especialmente após a pandemia, quando atividades manuais ganharam visibilidade como forma de terapia e de conexão com as origens. Hoje, grandes grifes internacionais, como Dior, JW Anderson, Stella McCartney, Bottega Veneta e Louis Vuitton, já incorporaram o crochê em suas coleções; marcas brasileiras, como Farm, Osklen e Nannacay, também são adeptas da técnica artesanal, enquanto artesãs independentes exploram o crochê em criações únicas, tornando-o uma linguagem universal que atravessa gerações e estilos.

A artista têxtil Flávia Duprat, autora do primeiro livro brasileiro sobre fio conduzido, lembra que a exclusividade é inevitável no processo: “Mesmo que duas pessoas usem a mesma ‘receita’, os pontos nunca ficam idênticos. A tensão do fio, o acabamento e até o humor do dia influenciam no resultado. Isso significa que cada peça é única”. Para ela, a valorização do manual é também uma forma de repensar o consumo e dar mais importância ao tempo e ao trabalho investido.

Arquivo pessoal - Para Flávia, a peça não é apenas uma roupa, é também a história de quem a produziu

O protagonismo 

O stylist e produtor de moda Fernando Lackman avalia que o crochê deixou de ser visto como peça restrita ao verão ou à praia. “Ele retorna com força porque traz memória afetiva e, ao mesmo tempo, frescor criativo. Conecta tradição artesanal com o desejo contemporâneo de exclusividade. Não é só tendência estética, mas reflexo de comportamento”, afirma.

Fernando declara que o crochê já se consolidou como atemporal justamente pela sua capacidade de se adaptar a diferentes linguagens: do minimalismo ao futurismo, da passarela internacional ao ateliê de bairro. “Quando o crochê está tanto no ateliê de uma artesã local quanto na Paris Fashion Week, isso mostra que ele é democrático e dialoga com públicos distintos. Essa pluralidade representa maturidade para o mercado.”

Esse amadurecimento também é percebido por artesãs como Alana Nunes, que atua desde 2012 e hoje participa da feira Fennance, um dos maiores eventos de artesanato autoral do país. Expondo peças feitas com fios sustentáveis de resíduos têxteis, ela busca criar roupas que funcionem para todos os corpos e gêneros. “Eu gosto de trabalhar com modelagens amplas e camisas de botão que podem ser usadas como saída de praia, sobreposição ou peça única. Minha inspiração vem muito das redes sociais e das feiras que participo, sempre tentando dialogar com moda circular e com a valorização das tradições locais.”

Fotos: Guilherme Dasmasceno - Alana leva personalidade para suas peças por meio do crochê

Flávia reforça que essa valorização passa também pelo preço justo, um desafio para as artesãs. “As pessoas querem exclusividade, mas muitas vezes não querem pagar pelas horas de trabalho. É um paradoxo: grifes vendem ‘crochê’ a preços altíssimos, mas quem tece no dia a dia nem sempre tem esse reconhecimento financeiro.”

A recognição do crochê como obra autoral tem mudado também a percepção cultural sobre a manualidade. Antes restrito a itens domésticos ou visto como passatempo, o crochê hoje é entendido como manifestação criativa e linguagem estética de alto valor. Cada peça é resultado de escolhas de fio, cor, ponto e tempo de dedicação — fatores que a transformam em algo irrepetível.

Esse caráter único torna o crochê uma forma de resistência à homogeneização da moda. Ao optar por uma peça artesanal, o consumidor não leva apenas uma roupa, mas também a história de quem a produziu. Nesse sentido, as artesãs assumem o papel de protagonistas, trazendo à tona um consumo mais humano e conectado à ideia de identidade e pertencimento.

Guilherme Damasceno - Além de peças de roupas, a técnica é utilizada em bolsas e assessórios para cabelo

Entre memória e futuro

Para Flávia, que aprendeu o crochê ainda na infância, o fio guarda lembranças afetivas. “Comecei a observar minha avó e depois a minha mãe, e aquilo foi virando parte da minha vida”, lembra. Hoje, ela enxerga na técnica uma forma de manter viva a tradição familiar, mas também de reinventá-la em peças que dialogam com a moda atual.

Já Fernando destaca o aspecto de resistência à prática artesanal. Enquanto a indústria prioriza rapidez e repetição, o crochê oferece o oposto: exclusividade e tempo dedicado. “Cada peça é única, e isso faz diferença. Quem compra sabe que ninguém vai ter igual”, afirma. Para ele, esse é o motivo do crescimento da procura entre os jovens.

Para o público mais novo, o crochê aparece como uma estética ousada e cheia de cores, enquanto gerações mais maduras tendem a buscar elegância e conforto em peças clássicas. A diversidade de usos e estilos, somada ao apelo sustentável, torna o crochê uma das técnicas mais versáteis da moda atual.

Arquivo pessoal - Fora do convencional, chapéus ganham destaques entre artesãs

Crochê fora do óbvio

  • Camisas de futebol

  • Bolsas estruturadas

  • Calçados (sandálias e tênis)

  • Acessórios de cabelo

  • Capas para eletrônicos

  • Peças de alfaiataria reinterpretadas

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

 


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