
Dormir tranquilo, sem o medo de uma crise de hipoglicemia noturna ou fazer uma refeição sem precisar calcular insulina com tanta precisão. Esse futuro, que antes parecia ficção científica, começa a se tornar parte da rotina de quem convive com o diabetes. O avanço de tecnologias baseadas em inteligência artificial, sensores contínuos de glicose e plataformas de monitoramento remoto está transformando não apenas o tratamento, mas a forma como os pacientes se relacionam com a própria saúde.
A endocrinologista Érika Fernanda de Faria, do Hospital Santa Lúcia Norte, explica que a tecnologia tem permitido uma mudança de paradigma no cuidado: o tratamento deixa de ser apenas reativo, aquele que responde às variações de glicemia, para se tornar preventivo e personalizado. "A inteligência artificial já é uma realidade na endocrinologia. Hoje, algoritmos ajustam automaticamente a insulina com base nos padrões individuais de cada paciente — alimentação, sono, atividade física. É um tratamento feito sob medida, em tempo real", afirma.
Segundo ela, a combinação entre sensores inteligentes, bombas de insulina automatizadas e aplicativos de aprendizado de máquina oferece benefícios que vão além do controle glicêmico: "Essas ferramentas reduzem a ansiedade, melhoram o sono e aumentam a autonomia. O paciente passa a confiar no próprio corpo e no tratamento."
Mas ainda há desafios. "A tecnologia precisa ser acessível. Hoje, nem todos os pacientes têm condições de usar esses dispositivos. É fundamental que as políticas públicas avancem nesse sentido, a prevenção é sempre mais barata do que a hospitalização."
Prever para prevenir
Entre os avanços recentes está o uso da inteligência artificial preditiva, capaz de antecipar variações glicêmicas antes que elas aconteçam. O novo sensor Accu-Chek Smart Guide, desenvolvido pela Roche Diagnóstica Brasil, representa um marco nesse sentido. Diferente dos sensores tradicionais, que apenas mostram tendências, ele utiliza algoritmos de machine learning para prever quedas e picos de glicose com antecedência.
De acordo com Vanessa Brito, gerente de marketing da Roche, a tecnologia foi desenvolvida a partir de um estudo em ambiente in silico, um tipo de simulação digital que utiliza "gêmeos virtuais" de pacientes reais. "O sistema aprendeu a reconhecer padrões de comportamento e consegue prever até 86% dos episódios de hipoglicemia noturna com alta precisão. Isso significa que o paciente pode agir antes da crise, evitando riscos e internações", explica.
Vanessa ressalta que a inovação está sendo testada no Brasil com foco em educação médica e conscientização dos pacientes. "Não é apenas um lançamento tecnológico, é uma mudança de mentalidade, entender que dados, quando bem utilizados, trazem liberdade, não dependência."
O alerta dos especialistas
O endocrinologista Márcio Krakauer, diretor regional da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM-SP), chama atenção para o contexto nacional. "O Brasil é o sexto país com maior número de pessoas com diabetes no mundo, cerca de 21 milhões de brasileiros. E muitos ainda não sabem que têm a doença. O grande desafio é fazer com que a tecnologia e a informação cheguem até essas pessoas."
Segundo ele, apesar do avanço das terapias e dos medicamentos, boa parte dos pacientes ainda não atinge o controle glicêmico ideal. "A inteligência artificial e o monitoramento contínuo são ferramentas poderosas, mas precisamos de educação em saúde. Sem isso, o melhor sensor do mundo vira um acessório caro e subutilizado."
Para o médico, a próxima fronteira é a integração de dados: "Imagine cruzar informações de glicemia, sono, alimentação e atividade física para prever crises com dias de antecedência. Esse é o futuro da endocrinologia, uma medicina preditiva, personalizada e cada vez mais próxima do paciente".
Lucas Albanaz, clínico geral e diretor-clínico do Hospital Santa Lúcia Gama, reforça que a tecnologia deve servir como ponte, não como barreira. "A revolução digital tornou o atendimento mais ágil e seguro, mas o verdadeiro ganho está em liberar tempo para o médico olhar o paciente nos olhos. A automação deve libertar o profissional da burocracia, não afastá-lo da empatia."
Ele destaca o papel dos dispositivos vestíveis e dos aplicativos de saúde, que colocam o paciente como protagonista. "Relógios inteligentes e apps ajudam a monitorar batimentos, sono, pressão e glicemia, tornando o indivíduo mais consciente. É o conceito da 'medicina do estilo de vida', em que o cuidado é constante e participativo."
Mas, assim como Krakauer e Érika, ele alerta para o risco da desigualdade digital. "Enquanto alguns têm acesso a sensores avançados, outros não têm sequer internet estável. Inovação de verdade é aquela que inclui."
Para os especialistas, o avanço tecnológico não substitui o olhar humano, pelo contrário, pode torná-lo mais preciso e atento. "A IA não decide nada sozinha. Ela apoia o raciocínio clínico, oferece previsões e dados, mas a interpretação é sempre do médico", lembra Lucas. "O toque humano, a escuta e o vínculo médico-paciente continuam sendo insubstituíveis", reforça Érika
No fim das contas, o que a tecnologia promete não é um tratamento automatizado, mas uma vida mais leve para quem convive com o diabetes. Ou, como resume Márcio Krakauer: "Prever é cuidar antes que aconteça. E cuidar antes é salvar mais do que a glicemia, é salvar o dia a dia, o sono, a tranquilidade e, muitas vezes, a própria vida."
Quem vive com a doença
O ator Babu Santana, diagnosticado com diabetes tipo 2 há cinco anos, é exemplo de alguém que conhecia pouco a doença. "Eu estava em um ritmo muito alucinado após a saída do Big Brother Brasil, era uma correria danada, parando só para comer uma pizza, tomar um refrigerante. E quando descobri a diabetes, precisei mudar tudo."
O ator conta que tinha diversos dos sintomas, mas não relacionava aquilo a diabetes. "Hoje, entendo que falar sobre isso é salvar vidas, especialmente nas periferias, onde muita gente não tem informação nem acompanhamento médico." Para Babu, uma rotina saudável é uma aliada, assim como a tecnologia. "No meu caso, dieta e exercícios resolvem. Mas eu faço peça, sou diretor, gravo filmes e comerciais, quando teria tempo de parar e furar o dedo? Com o sensor, são dois toques no celular e você já fica informado e sabe como agir."
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

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