
Por décadas, a literatura foi uma das janelas mais potentes para compreender o país, mas nem sempre ofereceu todas as paisagens. A formação escolar, os cânones literários e o mercado editorial reforçaram a centralidade de autores brancos, produzindo gerações de leitores que cresceram sem encontrar nas páginas dos livros rostos, experiências ou afetos que dialogassem com a própria história.
É nesse contexto que a literatura negra emerge como um campo fundamental. A psicóloga clínica comportamental Geane Santos explica que esse é um espaço crucial de validação para a identidade. "A literatura é um espaço onde nós, pessoas negras, podemos nos sentir instigados à reflexão e à desconstrução de conceitos que foram enraizados, nos quais o negro devia ser sempre colocado em um lugar de menos valia", diz ela.
- Leia também: Entre figurinhas e cartas: o encanto do colecionismo que atravessa gerações
- Leia também: Liberdade e conforto: mulheres têm deixado de usar sutiã
Para Geane, ler autores negros ajuda a ressignificar crenças, a estabelecer o sentimento de pertencimento, a desenvolver repertório e autoconhecimento. "A representatividade muda tudo. O sentimento de pertencimento, a percepção de valor como ser humano, a melhora da autoestima, a validação do lugar que ocupamos em vários setores da vida, a relação com o corpo e com nossas particularidades. Entendemos que ser negro, nascer negro, não nos torna menos que os outros."
Ao mesmo tempo, a leitura não transforma apenas quem é negro. Geane lembra que ela desloca visões de mundo e desnaturaliza comportamentos racistas: "Não basta apenas que pessoas negras desconstruam paradigmas. O racismo é estrutural e normalizado em muitos aspectos, e isso precisa ser visto, falado, debatido por todos."
Quando a inquietação vira coletivo
Foi com essa visão — e também com uma inquietude pessoal — que a escritora e artista Bruna Tamires idealizou, em 2017, o Clube Negrita. A iniciativa nasceu de um desejo de preencher uma lacuna que ela sentiu desde a universidade: a ausência de referências negras no ambiente acadêmico, artístico e literário.
"Eu buscava referências que ainda não tinha encontrado nas artes e na vida política", conta Bruna. Após terminar a faculdade e mergulhar em pesquisas, ela foi conhecendo autores de diversos países que tratavam a questão da raça em suas obras, cada um de forma singular e especial.
A experiência de ler em voz alta com um amigo foi o estopim. Bruna decidiu organizar o primeiro encontro com o clássico conto Pai contra mãe, de Machado de Assis. A adesão foi imediata. "O primeiro encontro me mostrou que esse sentimento que estava em mim também vivia em dezenas de pessoas. Percebi que não existiam muitos espaços para que pessoas negras conversassem sobre obras literárias de autoria negra, e decidi me tornar uma dessas pessoas que organizam experiências assim", reflete Bruna.
Assim, o Clube Negrita se consolidou como um polo de leitura, repertório e consciência racial em São Paulo, promovendo encontros presenciais para a troca de impressões. A curadoria das obras segue três critérios simples, mas potentes: Este livro conversa em algum ponto com a nossa realidade de pessoas negras?; Este livro nos coloca para pensar sobre a vida e as relações entre as pessoas? Este livro ou este autor confia na nossa capacidade enquanto leitores?
O clube conta com diversas dinâmicas, incluindo canal no YouTube e podcast no Spotify; reuniões on-line e presenciais que hoje somam mais de 30 encontros; literatura desenhadas — o Clube tem parcerias com artistas visuais negos para a realização de obras relacionadas à leitura. Já são mais de 10 mil pessoas atingidas em oito anos de atividade.
Para os participantes, o clube é um espaço de desenvolvimento pessoal. André Edson, 27 anos, servidor público, foi motivado pela oportunidade de trocar conhecimentos e ter uma margem interpretativa mais ampla. Ele destaca que a participação o ensinou a exercitar o papel de escuta, paciência, curiosidade e, acima de tudo, abertura para poder entrar em contato e tentar entender pontos de vista diferentes dos dele.
Para André, encontro em que houve a leitura do texto Da barbárie colonial à política nazista de extermínio,
de Rosa Amelia Plummelle-Uribe, foi um dos mais marcantes. "A discussão a respeito do texto, no dia do encontro, foi mais enriquecedora do que eu poderia ter imaginado. Tornou possível um caldeirão de ideias, perspectivas e vivências de valor imensurável", lembra.
O clube promove encontros de leitura coletiva, rodas de discussão, conversas com autores e debates temáticos. André avalia que, nesse âmbito, "o protagonismo negro é inclusivo e inovador, ao tratar de temas com sensibilidade, nuance e experiência própria de um povo."
O fortalecimento da autonomia leitora
Ao longo dos anos, o Clube Negrita testemunhou transformações significativas: leitores que chegam com poucas referências passam a montar suas próprias bibliotecas e a criar seus próprios espaços de leitura coletiva. "A principal transformação é o fortalecimento da autonomia das pessoas enquanto leitoras", afirma Bruna. "Os participantes chegam com poucas referências literárias e, em algum momento, passam a ser curadores de sua própria biblioteca, lendo e recomendando livros que ainda não abordamos no clube."
Essa autonomia tem um efeito direto na saúde emocional, conforme avalia a psicóloga Geane. Espaços de troca — como clubes — são fundamentais porque permitem que pessoas negras existam e sejam validadas em sua humanidade. "O racismo estrutural e a falta de representatividade nos afeta justamente em não termos onde nos sentirmos validados como pessoas pertencentes a um mundo," explica Geane. O clube, portanto, torna-se um contraponto ativo a essa realidade.
Bruna observa que, embora novembro costume concentrar eventos, essa lógica vem mudando. "Eu sinto que o interesse aumentado no mês da Consciência Negra tem diminuído e se espalhado para os outros meses do ano, porque os debates raciais estão mais frequentes e acessíveis," analisa.
O Clube Negrita, inclusive, não realiza programações temáticas específicas para a data, mantendo o ritmo de suas leituras. Ainda assim, manter o clube vivo exige o enfrentamento a um desafio concreto: o apoio institucional. Bruna, Carla, Ingrid e Thiago, os quatro responsáveis pelo coletivo, dividem o tempo entre trabalho, estudo e a manutenção do grupo, nem sempre dispondo de recursos para alimentação nos encontros ou remuneração pelas pesquisas necessárias.
"Quando tivemos a consciência de que todas as nossas ações fazem parte de uma política pública, passamos a tratar o clube como uma ferramenta para o incentivo à leitura na cidade," diz Bruna. "Queremos fomentar mais leitores. Para isso, buscamos unir forças com instituições públicas e privadas engajadas no incentivo à leitura."
Por onde começar na literatura negra
Acessíveis para a porta de entrada:
- Conceição Evaristo — Olhos d’água; Ponciá Vicêncio (escrita poética, política e profundamente humana, ideal para quem busca emoção e reflexão).
- Eliana Alves Cruz — O crime do Cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja (romances históricos que resgatam memórias apagadas da população negra).
- Itamar Vieira Junior — Torto arado, Salvar o fogo (narrativas que misturam tradição oral, misticismo e crítica social).
Clássicos indispensáveis
- Machado de Assis — Dom Casmurro; Memórias póstumas de Brás Cubas; Quincas Borba (sua presença no cânone evidencia como a história embranqueceu autores negros para caber no conforto das elites).
- Lima Barreto — Triste fim de Policarpo Quaresma; Recordações do escrivão Isaías Caminha (crítico feroz da República e do racismo estrutural brasileiro).
- Carolina Maria de Jesus — Quarto de Despejo (um dos maiores testemunhos da desigualdade no Brasil, escrito com força documental e sensibilidade literária).
Literatura negra contemporânea brasileira
- Jeferson Tenório — O Avesso da Pele (um mergulho potente em masculinidade negra, trauma e afeto).
- Sueli Carneiro — Escritos de uma Vida (intelectual central no pensamento racial brasileiro, unindo filosofia, política e memória).
- Cidinha da Silva — Um Exu em Nova York (contos que misturam oralidade, humor, crítica e espiritualidade).
Autoras e autores das diásporas africanas
- Toni Morrison — Amada; O olho mais azul; Song of Solomon (romances que abordam trauma, ancestralidade e sobrevivência).
- James Baldwin — O Quarto de Giovanni; Se a Rua Beale falasse; Notas de um filho nativo (uma das vozes mais lúcidas sobre raça, moral, amor e política nos EUA).
- Chimamanda Ngozi Adichie — Americanah; Hibisco roxo; No seu pescoço (escrita envolvente para jovens leitores).
Poesia, afeto e identidade
- Sérgio Vaz — Flores de Alvenaria; Coletivo perifatividade (poesia da periferia, sobre resistência, cotidiano e comunidade).
- Jarid Arraes — Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis (reconta histórias de mulheres negras apagadas pela história oficial).
Para quem gosta de teoria, crítica e pensamento racial
- Angela Davis — Mulheres, raça e classe (fundamental para compreender intersecções entre gênero, raça e capitalismo).
- Frantz Fanon — Pele negra; Máscaras brancas (clássico sobre colonização, subjetividade e identidade racial).
- Achille Mbembe — Necropolítica (reflexão sobre poder, morte e controle do Estado, muito discutido nas ciências sociais contemporâneas).
Coletivos e antologias
- Cadernos Negros (desde 1980) — Contos e poesias de autores negros de todo o Brasil. Porta de entrada para conhecer novas vozes.
- Pretas que escrevem; Quilombhoje; Afrolit — Coletivos que reúnem autoras e autores contemporâneos, ampliando a diversidade de estilos e temas.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

Revista do Correio
Revista do Correio
Revista do Correio