Cidade Nossa

Cidade Nossa: Sobre ser escura e ser Clara

Neste domingo (30/11), Clara comenta sobre como seu nome e sua identidade negra dialogam com racismo, autoestima e pertencimento

Clara Marinho — especial para o Correio

"Como você pode se chamar Clara, se é escura?". Essa frase e suas variantes são tão antigas em minha vida que nem sei dizer quando comecei a escutá-las. Na escola primária privada — localizada num bairro majoritariamente branco da orla de Salvador —, ela tomou uma forma mais contundente: "carvão mineral" e "bombril" foram os apelidos que me acompanharam entre os 8 e 10 anos. O racismo recreativo era tão normalizado que não me recordo de ouvir qualquer repreensão das professoras por ser chamada dessa forma, de expressar raiva pública, ou de minha mãe queixar-se à direção. A mensagem silenciosa era a de que aquilo fazia parte do cotidiano. Mas, pelo menos da parte da minha mãe, não posso afirmar que não houve uma reação: "Seja a melhor", ouvi desde cedo. 

Ao mesmo tempo, veio o alisamento dos cabelos, ritual que não poderia passar mais de dois meses sem acontecer "pra raiz inchada não aparecer", como se a textura natural fosse algo a ser ocultado. Cresci sendo uma aluna aplicadíssima, orgulhosa das minhas notas e do meu saber, mas com baixa capacidade de dizer não, pois esse era o caminho para a (auto)aceitação numa lógica que premiava docilidade.

Com autoestima fragilizada e reduzida capacidade de enfrentamento, eu me lembro de, na 4ª série, com 9 anos, uma professora branca me pedir que eu cedesse o meu lugar na quadrilha da festa junina a uma menina da sua cor, cujo par não foi ao evento — afinal, eu era "tão compreensiva" e ela chorava sem parar. Fiquei no canto sozinha, paralisada, sem suporte, sem qualquer prêmio pela minha "gentileza". Sequer consegui contar para minha mãe. Talvez, por isso, não me lembre de nenhum nome das professoras de então. Se a maturidade me permite, hoje, identificar situações ambíguas e me organizar para respondê-las com altivez, não foram poucas as vezes em que me senti desamparada e paralisada pela sua ocorrência.

Minha existência e dignidade não estão em risco pela pobreza, pela exclusão no mercado de trabalho, pela regressão das políticas sociais ou pela participação política parlamentar. O que também não significa que eu não sofra violência racista. Foram muitas as experiências individuais, desde a infância até agora, que confirmam o que está dito pela literatura: racismo e pobreza não são equivalentes. Ser filha de uma família de classe média e, hoje, estar mais próxima do topo da distribuição de renda no país nunca me salvou do racismo. É certo que ter uma boa condição socioeconômica atenuou a exposição a certas vulnerabilidades sociais, mas não foi — e não é — capaz de neutralizá-lo. Ele se reinventa, adapta-se às circunstâncias e persiste, mesmo diante de conquistas acadêmicas, profissionais ou materiais.

Hoje, eu vivo a ambiguidade de estar na classe média alta e, ao mesmo tempo, me enraizar nos espaços negros, que normalmente estão afastados da primeira. Ciente de que não há receita pronta para enfrentar os dramas da vida, vou me equilibrando como posso, buscando afastar os sentimentos de não pertencimento, de estar fora do lugar, e de me reconhecer como merecedora da minha própria história, inclusive do ponto de vista material. O fortalecimento para tanto vem da psicanálise e do letramento racial crítico, para mim e para os meus afetos. Aliás, o fortalecimento
também vem — principalmente — dos próprios afetos que fui criando nessa trajetória, das alianças e redes de cuidado que me acolheram. Se nem tudo foi fácil, há muitos amores longevos e mãos gentis que me nutriram, me inspiraram e me trouxeram até aqui.

Sobre ser escura e ser Clara, anuncio hoje a origem do meu nome sem qualquer problema. Ele faz uma homenagem a Clara Nunes, a tal mineira guerreira, cantora orgulhosa de suas raízes afro-brasileiras, que se tornou ancestral apenas um ano antes de eu vir ao mundo. Por causa de Clara Nunes e de tantas outras que caminharam e ainda caminham comigo, minha existência, hoje, reafirma que posso ser escura, forte, plenamente visível e, ainda assim, Clara.

Clara Marinho é servidora pública federal, doutoranda em administração pública e governo (FGV) e mulher negra baiana que vive entre São Paulo e o Distrito Federal 

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