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Francisca Gomes de Coura já perdeu a conta de quantas vezes desistiu de ir a uma consulta. Diabética, ela precisa fazer exames e ter acompanhamento constantemente. Mesmo assim, há dias em que, apesar de ter conseguido vaga para encontrar o médico, acaba desistindo de ir, por, simplesmente, não ter como se deslocar.

A viúva de 61 anos é moradora do Buriti Vermelho, no Paranoá, um dos locais visitados pelo Correio para verificar como a falta de transporte afeta a vida da população das áreas rurais do Distrito Federal. No local, os moradores dizem que não passa um só ônibus desde o começo de 2017, quando a principal linha foi desativada. Uma segunda linha, que constava como ativa nos dados do DFTrans, autarquia recém-extinta pelo governador Ibaneis Rocha, é chamada de “fantasma” pelos moradores, pois não funciona.

Assim, quando marca consulta, Francisca se prepara para uma via-crúcis. O primeiro passo é chegar a Planaltina, onde ela costuma ser atendida. Vai na véspera, para dormir na casa de parentes e chegar de manhã ao hospital. Mas, como não pode contar com ônibus, tenta fretar um carro, prática muito comum nas áreas rurais de Brasília. 

"Tem que rezar"

No frete, um morador da região que tem carro cobra para levar quem precisa até a cidade. Com a falta de transporte público, o “serviço” praticamente se institucionalizou nos núcleos rurais, com o mesmo preço cobrado nos diferentes locais onde a reportagem foi: R$ 150. No dia que antecede a consulta, então, a moradora precisa, primeiro, ter o dinheiro para o frete. E, depois, conseguir alguém que esteja disponível.

“Esse dinheiro é o valor de uns quatro, cinco pacotes de arroz. Muitos  aqui não têm condições. É o leite das crianças?”, questiona Francisca. “Aqui, você perde muita consulta marcada no hospital porque não tem como ir. Você tenta pegar o carro fretado, mas, às vezes, não tem motorista, porque todos trabalham dia de semana”, completa.

Vizinha de Francisca, Inês Jacinta, 60 anos, lamenta a situação. “Pagar esse valor é difícil, nem que seja uma só vez por mês. Com esse dinheiro, já dava para fazer compras. Você recebe um salário, tira uma parte, e tem que deixar R$ 150 para a passagem”, afirma. “Tem que rezar para não ficar doente.”

Diante da situação precária de mobilidade, no entanto, há moradores desses núcleos que já naturalizaram a convivência com o frete, a ponto de considerá-lo justo. “Tem gente que acha caro. Mas, no fim, não é. Porque se o carro deles quebra na estrada, por exemplo, ou estoura o pneu, o dinheiro que eles ganham não paga o conserto”, opina o agricultor Manoel Gomes de Lima, 58 anos. 

Atenção primária

A Secretaria de Saúde do DF (SES-DF) afirma que a rede pública é organizada para que os moradores tenham de se deslocar o mínimo possível para receber atendimento médico. No entanto, para alguns procedimentos, como exames e atendimentos especializados, não há como evitar que o paciente precise ir até os hospitais, localizados em centros urbanos.

A construção de hospitais nessas áreas, embora seja uma reivindicação considerada justa, na prática seria inviável, explica o coordenador de Atenção Primária da SES-DF, Elissandro Noronha. “Há algumas áreas em que a unidade básica de saúde (posto de saúde) atende 1,8 mil pessoas. Se você constrói um hospital ali, a população, que obviamente merece, vai subutilizar o equipamento, que tem custos muito altos”, explica.

Segundo Noronha, o DF não tem uma característica rural grande quando comparado a outras unidades da Federação. Por isso, a política da pasta se volta para a atenção primária nestas regiões. “A maior parte das unidades de saúde são de atendimento familiar, que teoricamente cuida da população de até 4 mil pessoas. A gente nem sempre consegue colocar perto da casa de cada pessoa, mas tentamos ir o mais longe que conseguimos”, diz.

 

De acordo com o GDF, hoje há 33 unidades básicas de saúde rurais, 10 a mais do que constava no Atlas do DF, publicado pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) em 2017. Nesses locais, a população pode resolver casos como gripe, dengue, dores de cabeça e problemas considerados mais rotineiros.

“Na unidade básica, a gente tenta fazer esse atendimento a fim de evitar o deslocamento (maior). Mas caso a pessoa precise de um serviço mais profundo, ela entra no sistema, que vai lhe dar o dia da consulta. E aí vai ter que se deslocar, usar transporte para ir até o local”, explica Noronha. Em casos de emergência, completa o coordenador, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) vai às áreas rurais. 

Sensação de abandono

Se parte da população, porém, não tem formas de chegar até os equipamentos de saúde disponíveis, a sensação que surge é a de abandono. “Tenho diabetes e pressão alta, então preciso sempre retornar ao médico. Cada vez, tem que deslocar família de longe para vir me buscar. Ou pagar o frete de R$ 150”, protesta Maria de Fátima, 54 anos, produtora rural.

Maria conta que a maior renda da família vem do marido, que ganha um salário mínimo. Como ele sofre de enfisema pulmonar, o casal também tem um gasto mensal com remédios, o que torna o frete uma opção que sacrifica o orçamento familiar. Diante da situação, Maria faz um apelo: “Eu não peço muito. Só estou pedindo um transporte”.

O que diz a Semob

A secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob) afirma, por meio de nota, que o serviço de transporte público das áreas rurais precisa ser “repensado e reestruturado para melhor atender as áreas rurais de todo o DF”. A pasta hoje se debruça sobre alternativas que têm sido avaliadas por técnicos para se chegar, “o quanto antes”, a uma solução para a população.  

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