
Por Cristina Ávila, especial para o Correio — As chuvas caíram fartas no início deste ano quando fui pela segunda vez à Terra Indígena Cachoeira Seca, na Terra do Meio, no Pará. Eu estava em Uruará, no km 180 da Transamazônica, e me comunicava pelo celular com o cacique Totó Arara que me esperaria de rabeta, uma canoa metálica de motor modesto, em Maribel, povoado incrustado há décadas por madeireiros no território indígena e que até hoje funciona como um porto fluvial de franquia livre para o trânsito no imenso mosaico de unidades de conservação e territórios dos povos originários. Ele me disse que a estrada estava muito ruim e que eu só chegaria no final da tarde no pau-de-arara que, de fato, levou seis horas para percorrer os 80km até a beira do Iriri. Nunca me identifiquei como jornalista nas quatro vezes que passei por Maribel, onde tive que pernoitar algumas noites à espera de transporte. A primeira numa hospedaria de dois andares em madeira atormentada por gritarias de bêbados numa festinha que terminaria só no outro dia às duas horas da tarde. Nunca entrevistei ninguém por ali. Mas no "carro de linha" o caminhão com bancos de madeira cobertos de lona na carroceria ouvi viajantes contarem histórias sobre ossos humanos enterrados na beira do rio. "Meu marido foi escavar pra atracar um barco e encontrou os ossos. Nunca se soube de quem eram. Nunca ninguém vem investigar, não adianta chamar", relatou uma jovem com a filha no colo, conversando com o motorista que contava carregar uma peixeira na cabine.
Há sumiços de pessoas que se transformam quase em lendas na Amazônia por encobrirem realidades nunca desvendadas. Só neste segundo semestre de 2025 duas mortes assustaram a Terra do Meio: a de um ribeirinho, morto numa área de exploração madeireira por um servidor da fiscalização ambiental local, e a de um indígena. "Nosso sobrinho, nosso filho, nosso guerreiro morreu. Estou revoltada", gritou Karato Arara, com o rosto pintado, batendo com uma borduna o solo da aldeia na Terra Indígena Cachoeira Seca, em agosto, acompanhada por parentes com cartazes na mão chorando o luto, à espera de autoridades fazerem justiça.
"Estou cansada de ver pessoas apodrecerem na praia, com o finado Bonitinho foi do mesmo jeito", disse Karato, se referindo ao apelido de seu tio, Tymbektodem, ex-presidente da Associação Kowit, organização do povo Arara. "Meu sobrinho foi do mesmo jeito. Não consigo ficar parada. Onde está a presidenta da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Ministério Público Federal? Tô revoltada com a morte do meu irmão". Presença forte no território, Anakia Arara, 22 anos, era sobrinho de Karato, filho de Jabuti, cacique da aldeia Awy. Daniel Faggiano, indigenista da Kowit, me conta que o corpo ficou três dias na beira do rio, esperando o resgate pela Funai e Bombeiros. "Já estava em decomposição, isso foi muito ruim para os Arara", disse, lamentando o agravamento da dor dos indígenas pela situação do recolhimento dos restos mortais.
Em 2023, Tymbektodem vinha recebendo ameaças de morte por causa de sua luta contra as invasões do território por fazendeiros quando, em outubro, foi encontrado morto na beira do rio; 16 dias depois de ter discursado na Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, em outubro de 2023, denunciando violências contra os Arara e reivindicando "pressão para que o Brasil cumpra a Constituição". Ele citou 2 mil invasores na TI, "em consequência da instalação da hidrelétrica Belo Monte".
A Terra Indígena Cachoeira Seca é a única da bacia do Xingu a apresentar alta nos índices de desmatamento entre 2023 e 2024. Pulou de 795 hectares que sofreram corte raso para 1.149, com crescimento de 45%. Está entre as poucas TI do país com aumento de índices, ficando em 4°lugar no ranking nacional (as primeiras do ranking são TI Sararé, TI Yanomami e TI Uati-Paraná). O desmatamento se deve à demora na regularização fundiária do território, o que exige desintrusão, o que significa retirar invasores.
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"A retirada dos invasores é um imbróglio que ninguém parece se dedicar a resolver, por questões políticas delicadíssimas. Já vimos muitas e muitas vezes grupos organizados vindos a Brasília para fazer lobby e influenciar nas decisões da Funai sobre Cachoeira Seca. São grupos ligados a figuras muito poderosas", revela a coordenadora de Proteção Territorial do Programa Xingu, do Instituto Socioambiental (ISA), Luisa Molina. "Em abril deste ano estivemos com os Arara da Cachoeira Seca com a diretora de Proteção Territorial da Funai, eles ouviram que a publicação da lista de ocupantes de boa-fé aconteceria em junho, e hoje não tem a menor previsão de acontecer". Ela conta que o levantamento desses ocupantes é o primeiro passo para desintrusão da terra indígena, para que sejam feitas indenizações, quando for o caso.
"Sem nexo", refuta Norte Energia
Os sofrimentos dos Arara são intensos. "Profissionais classificam a situação como uma verdadeira emergência em saúde mental. Uma carta da Rede Bem Viver da Cachoeira Seca relatou adoecimentos e sofrimento psíquico que alimentam um ciclo de mortes em circunstâncias dolorosas. Em 2023 e 2025, foram registrados falecimentos de lideranças e jovens em episódios associados ao consumo de álcool. Apesar da gravidade, a concessionária de Belo Monte (Norte Energia) tem negado apoio à saúde, repetindo a frase: "não vemos nexo de causalidade" entre as carências dos Arara e o empreendimento", afirma documento lançado na sexta-feira, 17 de outubro, pelo ISA e as mais importantes organizações que acompanham as questões indígenas: Observatório dos Povos Indígenas Isolados (OPI), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab ) e Conectas Direitos Humanos.

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