
Cristina Ávila, especial para o Correio — A Reserva Biológica (Rebio) Nascentes da Serra do Cachimbo já tem buracos de 20 a 30 metros de profundidade por obra de garimpeiros, segundo fontes indígenas que não podem se identificar por conta dos riscos que vivem aqueles que fazem denúncias contra crimes ambientais. Essa unidade de conservação abriga as nascentes dos rios Iriri, Curuá e de vários outros da bacia do Xingu.
A Rebio é uma unidade de conservação federal classificada pela legislação como área de proteção integral, administrada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (ICMBio). Está localizada entre os municípios de Altamira e Novo Progresso, entre o Pará e Mato Grosso, às margens da BR-163 no seu limite oeste e vizinha das Terras Indígenas Menkragnoti (Kayapó) e Panará no seu limite leste. Por isso, os Panará estão apavorados. "É muito perigoso", advertem. Eles sofrem com invasões de madeireiros, criadores de gado e soja, mas até hoje nunca foram atingidos por garimpo no território onde vivem hoje.
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Os Panará por muito pouco não foram extintos nos anos 70 pela BR-163. "Mais de 700 pessoas morreram pelo sarampo quando a estrada passou. Não conseguiam nem enterrar os parentes. Só 76 sobreviveram", conta-me um dos descendentes, com quem conversei pelo telefone. Ele relembra que, em 1967, Orlando e Cláudio Villas Bôas começaram a organizar a expedição para contatá-los, já que a rodovia que ligaria Cuiabá (MT) a Santarém (PA) cortaria suas terras ao meio. Os irmãos os transferiram para o Parque Indígena do Xingu, criado no Mato Grosso.
"Plantava, fazia roça, mas a terra era muito diferente. Moraram lá com os Kaiabi, Suiá, Kretire, Kayapó, voltaram pros Kaiabi. Mas a terra não tinha fruta, principalmente não tinha açaí, cacau, essas coisas. Pensavam em voltar para casa, ver se ainda tinha um pouquinho da terra original pra gente habitar e viver como vivia antes. Na região do rio Peixoto de Azevedo chegaram lá não tinha mais mato, era só garimpo, o capim substituiu a mata e o rio ficou sujo. A aldeia velha virou cidade. Sobrevoaram até conseguir achar um pedaço de terra para o Norte, quase na divisa com a terra Mekragnotire, Kayapó. O pessoal do Xingu ficou preocupado com o Panará, que se eles voltassem poderia morrer todo mundo". O indígena conta que os antepassados insistiram e voltaram. E tornaram a viver como era antes. Hoje usufruem de seu território e são conhecidos pelo sofisticado artesanato que comercializam por rede de comércio eletrônico. A terra é tudo para os indígenas.
Fiscalização lenta
O Correio também conseguiu falar com indígenas Kayapó pelo telefone, da Terra Indígena Baú, e do mesmo modo não é possível revelar fontes, por estarem vulneráveis a criminosos. "O nosso Rio Curuá já está doente, já morrendo pelo mercúrio. Há garimpos novos no rio, os garimpeiros estão ficando espertos e escondem aquelas escavadeiras PC embaixo das árvores, mas não conseguem esconder a sujeira. Claro que são muitos, pois a sujeira é grande. O rio virou café com leite, perdeu a cor natural. O Curuá é o mais poluído, é onde pescamos, bebemos e tomamos banho. O rio está só lama.
O Curuá é um dos orgulhos de Castelo dos Sonhos, distrito de Altamira, considerado o maior município do mundo, chega quase na divisa com Mato Grosso. Lá o rio é cristalino e com cenários embelezados por trechos encachoeirados que estimulam empreendimentos turísticos. "No distrito, na cidadezinha, é limpinho, mas desce três ou quatro quilômetros e já se começa ver a sujeira", disseram-me os Kayapó. Eles já fizeram inúmeras denúncias. Não apenas pela erosão causada por retroescavadeiras, mas pelo mercúrio jogado durante o amálgama do ouro. "Os órgãos de fiscalização demoram demais. Temos bases de monitoramento dentro da nossa aldeia Baú, mas só podemos fiscalizar. Precisamos que o governo retire os garimpeiros, que no entorno fazem nossos rios morrerem". Na TI Menkragnoti, o Rio Ptxatxá, que deságua no Curuá, é poluído por diversos pequenos garimpos, alguns com o processo de exploração com pequenos motores.
"Em épocas de seca, a poluição maior são os agrotóxicos. Pelo que se vê de peixes mortos no Ptxatxá, com certeza é agrotóxico. Na seca, o rio não tem correnteza, joga veneno na água parada. Mata todo o tipo de peixe de água doce. Pacu, piau, matrinxã, pintado, piranha. O indígena também cita a piraraia, conhecido predador dos rios da Amazônia, com espécimes em torno de 1,20m ou mais, com cerca de 60 quilos. Tudo isso é nossa sobrevivência que está em risco". O Ptxatxá delimita a reserva e se atravessado se chega a comunidades não indígenas de Novo Progresso.
Combate não impede crime
O garimpo na Bacia do Xingu “é bem preocupante”, admite o analista ambiental Hugo Loss, do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Ele é considerado um dos maiores especialistas em combate a garimpos e chegou a ser alvo da chamada Abin paralela (Agência Brasileira de Inteligência), exonerado pelo Governo Jair Bolsonaro por causa das operações de fiscalização que fez na Amazônia. Loss é chefe de Serviço na Diretoria de Licenciamento Ambiental do órgão ambiental.
“O Curuá acaba impactando muito o Iriri. A gente tem observado o aumento de garimpo na Terra Indígena Kuruaya e ao longo do Curuá a partir de Castelo dos Sonhos e em alguns outros afluentes do Rio Curuá, naquela região de Novo Progresso. Vai afetando a Terra Indígena Baú, Kuruaya e todas as unidades de conservação que ficam naquela região do Rio Iriri. Isso é bem preocupante porque o Rio Iriri, por ser bem circundado por áreas protegidas, acaba sendo um rio muito preservado, não tem muita atividade predatória, de caça, de pesca, de garimpo.
”São feitos esforços, mas não são suficientes. “O Ibama tem feito operações de combate ao garimpo. Foram feitas nos afluentes do Rio Ptxatxá, na região de Castelo dos Sonhos, em algumas fazendas onde estava sendo feita mineracao ilegal e com descarte de resíduos nos afluentes do rio e afetando aldeias da Terra Indígena Baú. Houve ações também na Terra Indígena Kuruaya”. Hugo Loss estima que um dos motivos é a alta no preço do ouro (no mercado internacional). Segundo a nota do ISA, o preço do ouro atingiu sucessivos recordes históricos em 2025, registrando alta de 40% apenas este ano, podendo chegar ao maior ganho anual em 46 anos.
Segundo observa Hugo Loss, a menor parte dos alertas de desmatamento do Brasil ocorrem em terras indígenas e unidades de conservação. “Assim pode-se perceber que a política pública mais eficiente para conter o desmatamento é a instauração de áreas protegidas”, comenta.
Síntese dos estragos
O garimpo ilegal avançou na Bacia do Xingu significativamente a partir de 2018, provocando até 2022 perda de 9,9 mil hectares de floresta em áreas protegidas da região, com 85% somente na TI Kayapó. A destruição continuou em 2023 (880 ha) e 2024 (763 ha), com avanço também nas TIs Baú, Kuruaya e Trincheira Bacajá e nas unidades de conservação Floresta Nacional de Altamira, Floresta Estadual do Iriri, Resex Riozinho do Anfrísio e Rebio Nascentes da Serra do Cachimbo.
A pressão se intensificou em 2025. Nos primeiros nove meses do ano, o garimpo ilegal foi responsável por 81% dos polígnos de desmatamento detectatos pelo Sirad X, resultando na derrubada de aproximadamente 403 hectares de floresta. De janeiro a setembro, a atividade garimpeira permaneceu ativa, por todos os meses, em diversas áreas protegidas, incluindo as TIs Kayapó, Baú e Kuruaya, a Flona Altamira e a Rebio Nascentes da Serra do Cachimbo, com mais de uma frente de atuação em algumas delas.
Também foram abertas frentes novas ao longo do ano: em abril, foram identificadas atividades nos garimpos Jabuti (Resex Rio Iriri) e Limão (FES do Iriri); em maio, iniciou-se a exploração no garimpo da Pesquisa (Resex Riozinho do Anfrísio); em junho, no garimpo Manelão (Trincheira Bacajá); e em agosto, na região centro-oeste da TI Apyterewa. Fonte: Observatório Rede Xingu +
MPF provocou 38 processos contra crimes
A pedido do Correio, a assessoria do Ministério Público Federal fez uma busca por palavras-chave no banco de dados da instituição para se ter uma ideia das ações que se encontram em trâmite, desde 2020, contra crimes ambientais relacionados à exploração ilegal de minério nas áreas descritas pela nota técnica do Instituto Socioambiental. Encontrou 38 casos, em 14 processos judiciais e 24 inquéritos policiais, que correm sob sigilo.
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