Entrevista

"A fé nos faz perceber que há uma presença maior", diz Dom Paulo Cezar Costa

Na primeira matéria da série Um novo olhar para 2022, o arcebispo de Brasília, Dom Paulo Cezar Costa, fala sobre o poder da fé e a necessidade de reflexão da população sobre a vida em comunidade, a relação com as pessoas e as injustiças sociais

Ana Maria Pol
postado em 25/12/2021 06:00
 (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press)

A pandemia da covid-19 produziu inúmeros efeitos e consequências nos mais diversos setores da sociedade brasiliense. A gravidade dos impactos ocasionados pela chegada do vírus ao Brasil, em março de 2020, colocou em pauta temas como a retomada econômica do país, o aumento de casos de violência doméstica, o surgimento de doenças mentais e casos de doenças sexualmente transmissíveis em adolescentes. Diante de circunstâncias tão penosas que fizeram parte da vida em comunidade e testaram a perseverança de muitos brasilienses, a fé e a religião passaram a ser alento para aqueles que aguardam, com esperança no coração, que o ano de 2022 seja melhor.

A contagem regressiva para o novo ano exige reflexões e disposição para mudanças diante dos desafios. Em especial de fim de ano, o Correio entrevista representantes de diferentes religiões para saber como encarar o atual momento, além da transição para 2021 e como pretendem trabalhar as consequências da pandemia em suas comunidades. Na primeira matéria da série Um novo olhar para 2022, o arcebispo de Brasília, Dom Paulo Cezar Costa, fala sobre o poder da fé e a necessidade de reflexão da população sobre a vida em comunidade, a relação com as pessoas e as injustiças sociais.

A partir da experiência que o senhor teve com sua comunidade, qual a avaliação faz da situação pela qual passa o país, no contexto social e político?

A avaliação que faço é de que a pandemia esgarçou bastante o convívio social. Cresceu o número de pessoas pobres. A polarização tomou uma forma cada vez mais concreta no nosso país, algo que já vinha atingindo a vida da população. Tivemos momentos difíceis no país. Então, é um cenário um pouco difícil, de um país dividido, com um grande número de pobres, necessitados. Um cenário que, talvez, os mandatários do poder não tenham sabido conduzir as coisas com a inteligência que o momento necessitava. Mas, agora, precisamos ter um olhar de esperança para o próximo ano, com fé de que será melhor, de que possamos vencer a situação de pandemia. É preciso olhar para frente com esperança. O que nunca pode nos faltar é esperança.

Qual o papel da religião e da fé diante do que estamos vivendo?

Para nós, católicos, a religião nos conduz à experiência da fé. A fé nos faz perceber que há uma presença maior que nos acompanha na história, que é a presença de Deus. E que, mesmo nos momentos de crise, não estamos sozinhos. Por isso, a fé, a religião, nos traz esperança, nos faz olhar para os problemas de uma forma aberta. A fé sempre nos projeta no caminho da esperança. É claro que a religião deve sempre conduzir as pessoas à prática do bem, de valores. Nós falávamos de uma sociedade polarizada, em que o grande perigo é sempre a outra pessoa. E a religião nos aponta sempre ao caminho da irmandade, da prática do bem, da solidariedade. Deve criar entre nós correntes de solidariedade. Numa sociedade com tantas pessoas necessitadas, devemos ser solidários e fazer com que o outro seja um irmão ou uma irmã que tenho obrigação de socorrer, de ir ao encontro, de auxiliá-lo. De ser dom de amor para ele.

O ano de 2021 foi marcado pela retomada de atividades, mas ainda há muito para ser trabalhado. Qual a sua projeção para 2022? O que esperar no campo social e político?

Espero que continuemos nesse caminho de superação da pandemia, que a vacinação chegue a 100% da população, de forma que a sociedade possa retomar sua vida. Que seja um ano de recuperação econômica e, com isso, novos empregos possam surgir. Que possamos superar, de pouco em pouco, essa situação difícil de tantas pessoas que perderam sua condição de vida e pararam de ganhar seu pão. Espero, também, que haja políticas concretas por parte dos governantes e que cada vez mais sejam implementadas políticas voltadas à assistência aos pobres, aos necessitados, a todos aqueles que precisam do nosso amor. Que a sociedade se manifeste cada vez mais como uma sociedade solidária. Que igrejas e instituições ajudem a criar redes de solidariedade, de ajuda aos necessitados, e que não deixemos nossos irmãos desamparados.

Para o próximo ano, quais questões acredita que deverão ser trabalhadas dentro da sua comunidade?

Dentro da comunidade católica, terminamos de montar um plano arquidiocesano pastoral, quer dizer, um plano que deve nortear a vida da nossa arquidiocese. A gente espera que a vida da comunidade seja retomada, as atividades, a catequese, as diversas pastorais e os movimentos. Esse plano pastoral está centrado na palavra de Deus, com o intuito de que essa palavra, a Bíblia, esteja cada vez mais na vida das pessoas. Que as pessoas meditem, que elas percebam a importância da palavra de Deus em sua vida e caminhada. É claro que esperamos que a igreja católica continue, cada vez mais, atuando na dimensão social da fé, que a gente continue criando redes de solidariedade, assistindo os pobres e necessitados. Que ela vá ao encontro daquilo que o papa Francisco chama de periferias urbanas e existenciais, onde estão os necessitados. Que seja dom de amor e presença na vida dessas pessoas. Pretendemos, ainda, ir além. Tem paróquias em que acontecem feiras de solidariedade, por exemplo. Então, pretendemos criar, cada vez mais, projetos de auxílio às pessoas desempregadas, de forma que possam começar empreendimentos e que possamos dar auxílio para que sejam levados adiante. Temos projetos interessantes, e tenho o intuito de criar um banco de solidariedade, projeto que já foi conversado com o papa. Agora, estamos correndo atrás de fundos. Espero que a comunidade católica viva bem a sua fé e testemunhe beleza no mundo e na sociedade hoje.

Como disse, a pandemia deixou rastros, e alguns temas passaram a ser fortemente debatidos neste ano. Uma das preocupações em nossa sociedade foi o surgimento de doenças mentais, principalmente depressão e ansiedade. Como a sua religião enxerga o surgimento dessas doenças? O que impactou o surgimento desses problemas?

A pandemia adiantou processos que já estavam latentes em nossa sociedade, e desencadearam doenças. A fé ajuda a pessoa a superar, mas, diante dessas doenças, é sempre necessário a busca de profissionais qualificados, pessoas que possam ajudar. Sempre pensamos que a fé ajuda, mas também apontamos na direção do mundo da ciência, de profissionais qualificados para cuidar dessas doenças mentais. Nós sabemos que a fé ajuda, mas é importante o auxílio de profissionais.

O próximo ano será importante para ajudar essas pessoas que foram impactadas pelas doenças. Como esse tema deverá ser conduzido? Para o senhor, qual a responsabilidade das comunidades religiosas no combate a essas doenças?

A gente quer ajudar as pessoas, a fé tem um papel importante nisso, mas é preciso auxílio de profissionais qualificados que ajudem a pessoa a sair dessa situação a qual se encontra. A fé ajuda, mas é imprescindível o auxílio de profissionais. Nós fizemos uma formação com o clero sobre a importância da formação espiritual e de que forma o aconselhamento deve ajudar as pessoas a se reencontrarem. Mas, percebendo a necessidade de um profissional, sempre aconselhamos. Os médicos, profissionais, psicólogos devem ser respeitados na sua competência, no trabalho que fazem na sociedade.

Nas instituições familiares, a violência também tem aumentado ao longo dos últimos anos. Como combater isso? Qual o papel da sua religião perante casos de violência doméstica, algo que tem sido comumente visto, principalmente no DF?

A religião deve ser depositária do bem, nunca deve conduzir à violência ou à intolerância. Nós pensamos na família como comunidade de amor, de fé, de vida. Mas, infelizmente, existe a violência doméstica dentro da família. É claro que a violência contra a mulher não deve ser tolerada de forma alguma. Situações como essas devem ser denunciadas, devemos fazer de tudo para proteger os mais frágeis nessa relação de violência. As pastorais familiares, os movimentos, procuram trabalhar a realidade da família como comunidade de fé e de amor. Mas quando a gente se depara com essa realidade, não tem outro caminho a não ser a denúncia, ajudar aquela pessoa que está sofrendo. A violência não pode ser tolerada, principalmente contra os mais fracos.

A expectativa é otimista para 2022, uma vez que tem sido visto como um ano de mudança para os brasileiros. E a mudança é prevista na política também, uma vez que haverá eleições gerais. Qual o papel das comunidades religiosas nesse momento? Política e religião devem caminhar juntas?

A igreja não é partidária, ela não se envolve com a política partidária. Ela se envolve com a política enquanto promoção do bem comum em uma sociedade. Nós estamos em uma sociedade polarizada, e isso pode nos conduzir a uma visão mais ideológica, o que pode ser um perigo. É preciso vencer essa polarização, e como? Olhando a realidade. A realidade da vida do povo, dos sofrimentos, é maior que ideias e ideologias. Então, devemos olhar o concreto da vida em sociedade, enfrentando os problemas, onde a política não se torna ideologia, mas, sim, construção do bem comum e promoção dos mais necessitados.

Qual seria a postura aconselhável de líderes religiosos para 2022, momento em que milhares de brasileiros discutem e argumentam sobre isso?

A postura do líder religioso deve ser de diálogo. Mas não o diálogo vazio, e sim aquele que parte da percepção do bem comum, de uma sociedade de valores, de princípios. O líder religioso deve sempre procurar construir pontes em uma sociedade que está cada vez mais construindo muros. Ele deve conduzir as pessoas sempre a uma visão mais profunda, que integra. Em busca de vencer a intolerância, o ódio presente na nossa sociedade. 

Recentemente, uma pesquisa da Codeplan, que aborda as notificações de infecções sexualmente transmissíveis entre jovens do DF, apresentou dados preocupantes: casos de infecções sexualmente transmissíveis aumentaram entre jovens do DF. Qual é o papel da religião perante isso?

A religião tem um papel fundamental na questão da educação sexual, para o equilíbrio de valores, em que a pessoa percebe seu próprio valor. O grande perigo do liberalismo sexual é, exatamente, uma visão do outro, da outra, como objeto. Uma visão que traz uma antropologia frágil, deficitária, porque você vai coisificando o outro. A religião deve sempre conduzir o outro a valores, e a sexualidade é um grande valor da vida humana. A sexualidade impregna a nossa vida, existência, e precisa ser vista como um valor. É preciso educar a nossa juventude para viver um verdadeiro exercício da sexualidade. É claro que a igreja afirma que o sexo deve acontecer após o matrimônio, mas a religião precisa exercer o seu papel de educação da juventude para o valor, grandeza e bom exercício da sexualidade.

E como a igreja trabalha isso com a juventude?

A igreja trabalha isso na catequese, em grupos jovens. Temas como o valor da corporeidade, a importância da valorização da sexualidade, a sexualidade como valor e dom são abordados.

Quais lições podemos tirar desta pandemia para o próximo ano?

A percepção de que estamos todos no mesmo barco, de que o ser humano é frágil. Nos reconciliamos com nossa fragilidade. A pandemia ajuda nesse sentido, de percebermos que somos frágeis. Isso não deve assustar, é a nossa realidade, em que nos reconciliamos com nossa situação. Segundo, a pandemia precisa nos deixar mais solidários, nos fazer sentir irmãos, criar redes de ajuda, em que todos sofremos juntos e somos chamados a olhar para o outro e para o outra, seja nas necessidades espirituais, seja humanas.

 


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