Trânsito

"Um pesadelo nas nossas vidas", lamenta avó de crianças atropeladas

A família de duas das cinco crianças que foram atropeladas na via P2 Norte relatam a dor e a angústia um dia após o crime. Quatro das vítimas permanecem em estado grave em UTIs. Motorista está preso e passa, nesta terça-feira (24/5), por audiência de custódia

Arthur de Souza
Paulo Martins*
postado em 24/05/2022 05:49 / atualizado em 24/05/2022 05:50
A doméstica Luzia Ramos, 44, só deixa os enteados saírem de de casa na companhia de um adulto -  (crédito: Paulo Martins/CB)
A doméstica Luzia Ramos, 44, só deixa os enteados saírem de de casa na companhia de um adulto - (crédito: Paulo Martins/CB)

Medo e revolta tomaram conta dos moradores da QNP 5, no dia seguinte ao atropelamento de cinco crianças, de 4 a 11 anos, na via P2 Norte, na tarde de domingo (22/5), por um motorista bêbado. "Ninguém conseguiu dormir. Queríamos que fosse um sonho, mas se tornou um pesadelo nas nossas vidas", desabafa Glória Rodrigues Pereira, 51 anos, avó de Ester Isabelly Pereira, 10, e Ana Júlia Pereira, 6 — duas das vítimas. 

Este ano, a média mensal — de janeiro a abril — de condutores alcoolizados flagrados ao volante é de 2.887 (totalizando 11.550 autuações). O número é 51% maior do que as ocorrências de 2019 (1.904 infrações, por mês), quando não havia pandemia. Os dados são do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF).

A família das cinco crianças pede por justiça. "Engraçado que ele teve o raciocínio rápido de correr, de fugir. Se não fossem os motoqueiros, ele teria fugido. A consciência dele não estava tão ruim assim. Por que ele não parou? Por que não prestou socorro?", protesta Glória Rodrigues.

Ao passar pelo local, de bicicleta, uma testemunha do atropelamento conversou com o Correio, nessa segunda-feira (23/5). O corretor de imóveis Márcio Silva Alves, 50, contou como tudo aconteceu. "Eu estava do outro lado (da rua). Acho que ele vinha a uns 80km/h. Ele passou por cima de duas, e as outras três voaram uns 30 metros, foi horroroso. Ele saiu em disparada, e a sorte foi que os motoqueiros agiram e detiveram o motorista. Na hora, você não pensa muita coisa, fica em choque e não consegue pegar o número da placa. O que podíamos fazer, fizemos: paramos o trânsito, aferimos a pressão, amenizamos os ânimos", detalha.

Márcio ressalta que houve muita confusão, mas que a ação imediata das pessoas que presenciaram o fato ajudou as vítimas. "Ficamos completamente desnorteados. Entramos em pânico por não poder socorrer as crianças. Uma das mães chegou 20 minutos depois do acontecido. A polícia apareceu 40 minutos depois", lembra. "Uma das mais novas ficou tão machucada que estava convulsionando. Não aguardamos pelo Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), pegamos algumas madeiras e alocamos ela para levar para a ambulância, senão ela ia morrer. Muita gente ficou abalada, chorando, orando pela recuperação das meninas. É muito triste", afirma o corretor de imóveis.

A sensação da comunidade no P Norte é de impunidade. "Nesse setor aqui tem muita criança que passa, compra um açaí, vai para a escola e não tem sinalização, não tem cone, não tem policiamento. É um terror andar aqui, até para mim, que sou ciclista. É uma pena que não exista educação no trânsito. Um cara assim não tem coração. Ele estava totalmente embriagado, não falava coisa com coisa. Vai pagar fiança e vai embora", critica Márcio.

Medo

O Correio esteve no local do atropelamento nessa segunda-feira. À tarde, o movimento era como em um dia qualquer da semana. Somente um quebra-molas — a 50 metros da faixa onde o fato aconteceu — continha a velocidade dos veículos na via. A diarista Simone Maria de Jesus, 51, não sente qualquer segurança ao atravessar a rua. "As pessoas confiam na sorte, não na faixa, que não é visível à noite. Sempre acontece algo aqui, é muito perigoso. Não confio em dar o sinal de vida e os carros pararem. É muito difícil", relata Simone.

A doméstica Luzia Ramos da Cruz, 44, não deixa os enteados atravessarem a rua desacompanhados, só com um responsável. "Sempre é preocupante. Não deixo eles andarem sozinhos. Se não estiverem comigo, não saem. Senti muita tristeza na vizinhança. A sensação é de pura revolta. Até para os adultos é perigoso andar aqui, a travessia é difícil por conta do medo, pois os carros não param na faixa apagada e as crianças correm para conseguir chegar ao outro lado", descreve Luzia.

Relembre o caso

Francisco Manoel da Silva, 53, atropelou as cinco crianças enquanto atravessavam a faixa de pedestres. Policiais militares tiveram que conter a população, que pretendia linchar o motorista. Em exame no Instituto Médico Legal (IML), foi constatado a embriaguez do condutor, que afirmou à polícia ter consumido uma dose de uísque. Ele estava sem a carteira de habilitação.

Ao Correio, o delegado da 15ª Delegacia de Polícia (Ceilândai Norte), Fernando Crisci, informou que Francisco está preso no Departamento de Polícia Especializada (DPE) da Polícia Civil (PCDF), aguardando audiência de custódia, que será realizada nesta terça-feira (24/5). Quatro vítimas estão internadas em unidades de terapia intensiva (UTI) em estado grave no Hospital de Base. Maria Eduarda da Silva Moura, 10, recebeu alta hospitalar na tarde de segunda-feira.

O Correio entrou em contato com a defesa de Francisco da Silva. O advogado informou que ainda não consta oficialmente nos autos do processo e que vai se pronunciar de forma oficial sobre o caso.

Em o Detran, o órgão de trânsito do DF destaca que sua atuação — em relação à Lei Seca — se pauta por ações educativas e de fiscalização. "O mais importante é que o cidadão se conscientize dos riscos que a mistura entre bebida e direção geram para a segurança dele mesmo e dos demais usuários da via", ressaltou o departamento, no texto.

*Estagiário sob a supervisão de Guilherme Marinho

 


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Decisão STF

Uma decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF), em 19 de maio, manteve normas de trânsito que punem o motorista que se recusar a realizar o teste de bafômetro. A Corte também tornou legal a proibição da venda de bebidas alcoólicas nas rodovias federais, estabelecendo tolerância zero de consumo de álcool ao volante.

Nenhuma dose é segura

Os sinistros de trânsito são decorrentes de diversos fatores: os relacionados ao sistema viário; ao meio ambiente; ao ambiente da via; aos veículos, aos condutores e aos pedestres; e às características da regulamentação e à fiscalização. No cenário brasileiro, dentre os principais problemas pertinentes ao trânsito, cabe destacar a ampliação da frota de motocicletas e a alcoolemia.

Na perspectiva da prevenção dos sinistros de trânsito, é necessário que um repertório de ações seja promovido, desde intervenções na via, campanhas educativas e de conscientização quanto aos riscos do trânsito, qualificação na formação de condutores até o que se convencionou como esforço legal, destacando-se a implantação da Lei nº 11.705/2008 conhecida como Lei Seca.

Além de outras letras normativas e respectiva fiscalização, o enrijecimento legal promovido pela Lei Seca, com "tolerância zero" ao álcool para os motoristas brasileiros, tem contribuído na redução de sinistros de trânsito, uma vez que o flagrante de alcoolemia ao volante pode ter como consequência desde a aplicação de multa até o enquadramento como crime. É importante salientar que mais de 90% dos sinistros de trânsito decorrem de fatores humanos, dentre os quais, o consumo de álcool, ratificando a relevância da lei supracitada.

A combinação álcool e direção afeta diretamente os níveis de consciência, gerando alterações de comportamento, perda ou redução da noção de perigo; diminuição da capacidade de avaliação crítica; alterações da capacidade de julgamento; redução na capacidade de controle dos impulsos e aumento da impetuosidade; além de outros prejuízos à condução veicular.

O álcool promove danos após a ocorrência do sinistro de trânsito em razão de dificultar ou impedir a realização de um diagnóstico claro e objetivo da ocorrência e, até mesmo, o atendimento de vítimas, quando existentes. Mesmo pequenas concentrações de álcool no sangue são capazes de comprometer a habilidade de dirigir, e deve-se ter em mente que sua eliminação completa do organismo demanda tempo.

Embora socialmente tolerado, o consumo de substâncias etílicas pode acarretar em uma série de agravos à saúde, problemas psicossociais e estimular outros tipos de violência além, naturalmente, das relacionadas ao trânsito. Mas, a despeito da fiscalização, de campanhas de conscientização, há condutores que insistem em beber e dirigir, desse modo, alterações que, em alguma medida relaxam o rigor legal, podem colocar em risco tudo o que se avançou na redução dos sinistros de trânsito. Contudo, no que se refere à Lei Seca e ao STF, uma ressaca moral foi evitada, prevaleceu o bom senso.

*Adriana Modesto de Sou, doutora em transportes e mestra em ciências da saúde

 

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