Vida urbana

Como é viver no Sol Nascente, considerada a maior favela do Brasil

O Sol Nascente superou a Rocinha na quantidade de unidades habitacionais, de acordo com o IBGE. Apesar de ainda ter sérias carências estruturais, o local é considerado pelo GDF como região administrativa desde 2019

Michelle Portela
Mila Ferreira
Ellen Travassos
postado em 18/03/2023 05:00 / atualizado em 20/03/2023 20:41
 (crédito:  Carlos Vieira)
(crédito: Carlos Vieira)

A maior favela do Brasil fica no Distrito Federal. Dados preliminares do Censo 2022 apontam que o Sol Nascente superou a Rocinha, no Rio de Janeiro, e já é a maior do país, com 32.081 unidades habitacionais, de acordo com informação exclusiva obtida pelo Correio, na última terça-feira (14/3), junto ao presidente interino do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Cimar Azeredo.

Sol Nascente supera Rocinha em domicílios e se torna maior favela do país

Em 2000, o Sol Nascente foi reconhecido como setor habitacional por meio do Decreto nº 330/2000. No entanto, logo depois, o decreto foi considerado inconstitucional e revogado. Apesar disso, a comunidade continuou crescendo cada vez mais até que, em 2019, foi reconhecida como região administrativa. "O nosso reconhecimento como RA trouxe, acima de tudo, dignidade aos moradores daqui", pontuou o administrador regional do Sol Nascente, Cláudio Ferreira Domingues.

Hoje, a cidade conta com três unidades de saúde, três escolas públicas, um Centro Olímpico e Paralímpico (COP), além de vários projetos sociais e uma comunidade engajada. "A comunidade é muito unida aqui. As lideranças têm trabalhado para melhorar a nossa cidade a cada dia. O povo aqui é muito receptivo. Temos gente de várias regiões do Brasil, como Bahia, Maranhão e Piauí", ressaltou o administrador regional.

O termo favela é uma nomenclatura coloquial usada para definir o que o IBGE classifica como "aglomerados subnormais", que é uma forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia, públicos ou privados, para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular. Além disso, ausência de serviços de saneamento básico e estrutura urbana precária também são critérios que definem essas comunidades.

Cláudio Ferreira discorda da denominação favela para definir o local. "Na nossa visão, enquanto governo e comunidade, não vemos como uma favela. Somos uma cidade que cresceu de forma desorganizada, porém o GDF determinou que o Sol Nascente viraria uma região administrativa em 2019. Começamos como uma grande invasão, mas hoje nos enxergamos como uma cidade em desenvolvimento", avaliou ele.

 

Carências

"Morar aqui é sofrimento. Mas, vai fazer o quê? É aqui que a gente tem condição de comprar um pedacinho de terra, porque é mais barato", explica Josevaldo Rocha, pedreiro, 37 anos, que mora há dois anos no Trecho 3 do Sol Nascente, com a esposa e a filha de 5 anos. Na avaliação da comerciante Doralice Silva, 42, o péssimo atendimento do transporte público é outro problema para quem vive na região. Em muitas localidades do Sol Nascente, não há ônibus e, com isso, as pessoas precisam caminhar mais de um quilômetro em meio à lama ou à poeira para poder chegar à parada de ônibus, ou se arriscar pedalando, como ela faz para levar a filha todo dia na escola. "O carro não presta mais para nada, é tanta buraqueira e chuva que quando precisamos levar as crianças, vamos de bicicleta. A gente fica caindo da bicicleta, escorregando, porque não tem asfalto", comentou ela.

Doralice explica que a região do Trecho 3 não é vista pela administração do Sol Nascente. "Quando eu vou ao posto de saúde, vejo que a gente fica esquecido. A briga é feia para poder atender quem mora aqui na região. A saúde aqui é uma negação", ressaltou. O comerciante e líder comunitário local José de Carvalho Araújo, 47, mora no Trecho 3 do Sol Nascente desde 2006. Desde então, batalha para melhorar as condições do asfalto e do saneamento básico do local. "Quando cheguei aqui, lutei, corri atrás, pedi um sistema de lixo, asfalto e saneamento. Há uns três anos, tiraram o asfalto para colocar águas fluviais e rede de esgoto, mas nunca repuseram o asfalto. Pago IPTU e IPVA para vir benfeitorias para nós, mas a situação está difícil", declarou. "Já tem mais de 15 anos que vivo aqui. Apesar de tudo, gosto de morar aqui. A comunidade aqui é unida", acrescentou José de Carvalho.

Sobre a questão, o administrador informou ao Correio que será resolvida em breve. "Já temos uma empresa contratada, por meio de licitação, para resolver a questão da drenagem e asfalto do Trecho 3. Este ano, o Sol Nascente está se transformando em um grande canteiro de obras", anunciou Cláudio Domingues. "Entre o fim de março e o começo de abril, vamos inaugurar também um restaurante comunitário. Temos ainda projetos para construção de novas escolas e creches", completou o administrador.

Para quem mora por ali, sair para trabalhar em época de chuva forte, é arriscado, conta Fábio Nunes, 49, técnico em eletrônica que mora há oito anos na região. "Se tiver em tempo de chuva igual as últimas que tiveram, ninguém sai para trabalhar, porque é arriscado", frisou ele. O porteiro Everaldo Evangelista, 45, mora há quatro anos na região. "Temos encontrado todo tipo de dificuldade, e a chuva tem destruído tudo. A água da chuva acumula e forma um rio aqui, ela vem forte e desce toda para cá, destruindo as casas. A energia elétrica por aqui é muito fraca também", contou ele.

Centro olímpico oferece aulas de natação para a comunidade
Centro olímpico oferece aulas de natação para a comunidade (foto: Carlos Vieira)

Cultura e lazer

Desde 2020, o Sol Nascente conta com um Centro Olímpico e Paralímpico (COP), onde aulas gratuitas de 26 modalidades esportivas são oferecidas gratuitamente à população local. Há opções para crianças a partir dos 4 anos, adolescentes, adultos e idosos. Aos finais de semana, o centro fica à disposição da comunidade e a população pode utilizar as quadras poliesportivas e a estrutura do centro. Atividades como colônias de férias e festas juninas também fazem parte do calendário do COP. "Aqui, oferecemos, inclusive, uma modalidade de alto rendimento que é o atletismo. Temos como professores ex-atletas olímpicos, como Hudson Souza e Eronildes Ribeiro", explicou o coordenador pedagógico Wellisson Dias.

A dona de casa Maria Elziane Cabral, 35, leva a filha, Yarla Cabral, 7, duas vezes por semana para fazer aula de natação no COP do Sol Nascente e relata que é o momento mais esperado da semana da menina. "Posso dizer que esse centro olímpico é um dos lados bons de viver aqui no Sol Nascente. Minha filha adora as aulas de natação", relatou.

A estudante de odontologia Raiane Costa, 33, também leva a filha, Esther Costa, 7, para fazer aulas de natação. "Moro aqui no Sol Nascente há quatro anos e acho aqui bem tranquilo. Antes, só tinha centro olímpico no Setor O. Quando abriram um centro aqui, achei ótimo, porque ficou mais perto para mim. Minha outra filha, de 12 anos, também faz atividades no centro. O Sol Nascente tem evoluído bastante com relação ao que era antes", disse.

 

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Projeto Felicidade

Com objetivo de formar atores e atrizes para um espetáculo sobre os desafios da população LGBTQIAP do Sol Nascente, o Projeto Felicidade vai oferecer uma série de oficinas de teatro gratuitas. Serão sete meses de formação teatral, de 21 de março a 28 de setembro, no espaço do Coletivo Cultural e Social da região. As inscrições podem ser feitas até segunda-feira. 

Produzida pela Casa dos 4 e apoiada pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC-DF), a iniciativa tem o objetivo de formar atores e atrizes para um grande espetáculo sobre os desafios de gênero em uma área carente.

O dramaturgo e diretor Alexandre Ribondi conta que pretende mostrar para todas as classes econômicas, sociais e de gênero como é viver à margem da sociedade. "E, claro, com uma narrativa contada pela experiência das próprias pessoas que a vivenciam. A verdade nua e crua, como sempre falamos", explica.

Para Ribondi, o Sol Nascente é uma das regiões menos privilegiadas do DF, com carências múltiplas, não apenas financeira, educacional e de moradia. "Eles também têm escassez de arte, diversão e prazer de viver. Por isso, é tão importante criar um foco de teatro lá", concluiu.

"Absolutamente chocante"

A pesquisadora Raquel Rolnick, arquiteta e urbanista brasileira professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), onde coordena o LabCidade, classifica como "absolutamente chocante" a existência de uma grande favela no Distrito Federal (DF), onde os indicadores oficiais também estão os mais ricos do país.

Divulgado em fevereiro, o Mapa da Riqueza do Brasil, estudo coordenado pelo economista e diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), Marcelo Neri, utiliza o imposto de renda de pessoas físicas (IRPF) para analisar o perfil econômico do morador do Distrito Federal.

O levantamento mostra que o Distrito Federal está no topo do ranking de renda média da população (R$ 3.148) e é a unidade da federação com a maior declaração de patrimônio por habitante (R$ 94,7 mil). Seguido pelo estado de São Paulo, com uma renda média de R$ 2.093 e patrimônio médio de R$ 90,8 mil.

De acordo com dados do IBGE, no Centro-Oeste, estão as favelas com R$ 600 de rendimento médio mensal, acima da média no país, em regiões marcadas pela precariedade.

Para Rolnick, é importante considerar que os dados preliminares do IBGE não foram consolidados, mas que trazer uma questão norteadora. "O mais importante será saber qual porcentagem da população vive em favelas em todo o Distrito Federal. Mas o próprio IBGE alerta que há um alto índice de abstenção entre a população e isso pode ainda mais desafiador nas favelas", ressalta a pesquisadora, que foi relatora especial para o direito a moradia adequada da ONU entre 2008 e 2014.

De acordo com o IBGE, até novembro do ano passado, a favela do Sol Nascente era considerada a segunda maior do país, com 24.441 domicílios, sendo apenas superada pela Rocinha, com 25.742 domicílios. Com a evolução do recenseamento, o Sol Nascente registra 32.081 unidades, enquanto a Rocinha, 30.955 habitações.

"Acho absolutamente chocante. A cidade de maior renda per capita do país é onde está a maior favela do país. O DF não é uma região pobre", explica. Além disso, a pesquisadora critica o termo "conglomerado subnormais", que considerada inadequado. "Podemos chamar de favelas, assentamentos precários, territórios populares, mas é absurdo usar aglomerados subnormais", aponta.

Maiores favelas do país por número de domicílio

Os dados preliminares mostram que o Brasil possui 11.403 favelas, onde o Censo 2022 estima recensear 16 milhões de pessoas em 6,55 milhões de unidades habitacionais. “Estamos realizando campanhas nessas áreas para também priorizar o levantamento de dados estratégicos para o desenvolvimento de políticas públicas para estas regiões”, disse o presidente do órgão.

Maiores favelas do país por número de domicílio:
1. Sol Nascente, Brasília: 32.081
2. Rocinha, Rio de Janeiro: 30.955
3. Rio das Pedras, Rio de Janeiro: 27.573
4. Beiru, Tancredo Neves: Salvador: 20.210
5. Heliópolis, São Paulo: 20.016
6. Paraisópolis, São Paulo: 18.912
7. Pernambués, Salvador: 18.662
8. Coroadinhoa, São Luís: 18.331
9. Cidade de Deus/Alfredo Nascimento, Manaus: 17.721
10. Comunidade São Lucas, Manaus: 17.666
11. Baixada da Estrada Nova Jurunas, Belém: 15.601
12. Alto Santa Teresina - Morro de Hemeterio - Skylab-Alto Zé Bon, Recife: 13.040
13. Assentamento Sideral, Belém: 12.177
14. Jacarezinho, Rio de Janeiro: 12.136
15. Valéria, Salvador: 12.072
16. Baixadas da Condor, Belém: 11.462
17.Bacia do Una-Pereira, Belém: 11.453
18. Zumbi dos Palmares/Nova Luz, Manaus: 11.326
19. Santa Etelvina, Manaus: 10.460
20. Cidade Olímpica, São Luís: 10.378
21. Colônia Terra Nova, Manaus: 10.036

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