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Confira histórias de quem aproveitou e guarda boas memórias das boates do DF

Em uma capital ainda jovem e carente de lazer, foram esses locais de dança que agitaram a noite candanga nos anos 1970 e 1980

Casal na pista dedança no ritmo dadiscoteca da boateDancing Machine -  (crédito: Tadashi Nakagomi/CB/D.A Press)
Casal na pista dedança no ritmo dadiscoteca da boateDancing Machine - (crédito: Tadashi Nakagomi/CB/D.A Press)

Piso acarpetado, sofás de couro e paredes com superfície aveludada compunham o visual das sofisticadas boates de Brasília no início dos anos 1970. Com discos importados, os DJs — à época chamados de disque jóqueis —, tocavam The Rolling Stones, James Brown, Aretha Franklin e Creedence Clearwater Revival. No ar, o cheiro de perfume se misturava ao aroma de bebidas caras e, nas pistas de dança, músicas lentas convidavam o público a momentos de paquera. Em uma capital ainda jovem e carente de lazer, foram esses locais que agitaram a noite candanga

Com a popularização do soul, rock e disco music, as boates viraram uma febre mundial. "O pessoal da MPB 'ficou na bronca'", brinca Mario Beethoven, 70 anos, que foi DJ por mais de duas décadas na cidade. "Aos 16 anos, comecei a aprender a tocar, entrando escondido nas boates. Na época, poucas pessoas tinham discos importados e, para trabalhar nesses lugares, frequentados pelas classes alta e média, isso era um pré-requisito. Então, eu gastava tudo o que ganhava na noite comprando discos", lembra. 

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O Centro Comercial Gilberto Salomão, inaugurado em 1967, tornou-se um dos principais pontos de diversão da cidade, onde despontaram as boates pioneiras Kako e Shalako e, mais tarde, a Sunshine e a lendária Zoom.

"Na Sunshine Discoteque, o espetáculo começa na porta. Formando filas enormes que vão dar na bilheteria, jovens, trajando roupas coloridas, calçando botas extravagantes e 'levando papo' riquíssimo em gírias, davam uma prévia do que pode acontecer no interior daquela discoteca", descreve reportagem do Correio, publicada em julho de 1977, escrita pelo repórter Irlam Rocha Lima. 

  • Lendária boate Zoom em 1980
    Lendária boate Zoom em 1980 Arquivo Pessoal
  • Boate Zoom, no Centro Comercial Gilberto Salomão
    Boate Zoom, no Centro Comercial Gilberto Salomão Eugenio Novaes/CB/D.A Press
  • Dançarinos na discothéque da Boate Dancing Machine
    Dançarinos na discothéque da Boate Dancing Machine Tadashi Nakagomi/CB/D.A Press

Segundo Beethoven, a preparação para a noite era minuciosa. "Os rapazes caprichavam no laquê nos cabelos longos, moda na época; os sapatos estavam sempre bem engraxados, e as calças eram boca de sino. As meninas iam às 12h para o salão de beleza e só saíam às 18h", conta. 

"Se hoje, à meia-noite, acabam as festas, antes, as pessoas dançavam até amanhecer. Eu mesmo chegava para tocar 1h da manhã, quando as boates estavam lotadas, e ia embora somente às 6h. Depois, todo mundo ia comer na antiga cantina Tarantela, na 202 Sul", completa. 

Em 1977, com o lançamento do filme Os embalos de sábado à noite, boates mais tradicionais deram lugar às discotecas, que despontaram em tons de neon e muito, muito brilho. "Eram espaços descontraídos, onde as pessoas se sentiam mais à vontade para chegar sem acompanhantes", diz o DJ.

Sob globos espelhados e luzes coloridas, o público dançava ao som de ABBA, Diana Ross, Bee Gees e Barry White. Surgiram as casas Dancing Machine, Nepenta e Sherezade, no Setor Hoteleiro Norte; e a Corte Club Privé, no Setor Hoteleiro Sul. 

  • Mario Beethoven (de óculos) com Monsieur Lima, famoso DJ da noite carioca nos anos 1970
    Mario Beethoven (de óculos) com Monsieur Lima, famoso DJ da noite carioca nos anos 1970 Arquivo pessoal
  • Mario Beethoven (em pé)com o empresário MarcioBayard selecionandodiscos para a inauguraçãoda Sunshine, em 1977
    Mario Beethoven (em pé)com o empresário MarcioBayard selecionandodiscos para a inauguraçãoda Sunshine, em 1977 Arquivo pessoal
  • Jogador de futebol Pelé e Xuxa Meneghel durante inauguração da Boate Zoom, no Lago Sul
    Jogador de futebol Pelé e Xuxa Meneghel durante inauguração da Boate Zoom, no Lago Sul Arquivo CB/D.A Press
  • Público na entrada da discothéque Dancing Machine, nos anos 1970
    Público na entrada da discothéque Dancing Machine, nos anos 1970 Tadashi Nakagomi/CB/D.A Press

Palco para o diferente

Vestido com maiô preto e bota de vinil, Indra Fiorentino participou de um concurso de beleza na primeira boate gay da capital, em 1982. A apresentação ocorreu na boate New Aquarius, inaugurada três anos antes, no Conic.

"Era um lugar mágico, onde podíamos ser nós mesmos, sem julgamentos. Da porta para fora, ficávamos à mercê do preconceito e da violência", conta o vitrinista e estilista, hoje com 60 anos. O espaço foi palco de shows de travestis, transformistas e artistas diversos, tornando-se point de celebridades, como Renato Russo e Cássia Eller. 

Publicada em 1977, a reportagem do Correio Hello Broadway (ou quando os mitos hollywoodianos são travestis brasilienses), do jornalista Irlam Rocha Lima, descreveu o clima da boate. "Descendo uma escada, ao lado do 'Superama Karim', se chega a uma estranha galeria, onde proliferam bares e inferninhos. Logo ao descer, seu olfato capta um cheiro adocicado de perfume barato. Aos seus ouvidos, chegam identificáveis ruídos, provocados por acordes musicais, vozes em alto tom ou tilintar de copos e garrafas". 

Ir à New Aquarius todos os sábados era, para Indra, a oportunidade de dançar e conhecer novas pessoas, dada a dificuldade do público LGBTQIAP+ de se relacionar publicamente naquele período.

"Lá, tocavam os hits do momento, como Madonna, além de bandas de rock nacional dos anos 1980. Ao final de toda noite, tocava-se a música Aquarius, de Galt MacDermot, que foi trilha sonora do musical Hair, dos anos 1960", conta o estilista.

O estilista Indra Fiorentino na época em que frequentava a boate New Aquarius
O estilista Indra Fiorentino na época em que frequentava a boate New Aquarius (foto: Arquivo pessoal)

Declínio

Na metade da década de 1980, boates que tocavam disco music precisaram se render aos sucessos do momento — lambada, axé e rock nacional — para manterem seus públicos. "Além das músicas mecânicas, esses espaços cederam lugar aos shows. O público tornou-se mais jovem e mais diversificado", diz Paulo César Cascão, 58, que trabalhou como DJ de 1988 a 2001.

João Vicente Costa, 60, à época frequentador, músico e DJ, lembra que a capital também abrigou boates focadas no público underground. "Brasília não tinha só locais de diversão tradicionais. Toquei na Radicaos, na 105 Norte, por exemplo, e depois abri a Bizarre, na 402 Sul, que tinha essa pegada alternativa. Passava um tempo, esses movimentos se popularizavam e se tornavam pop", conta o empreendedor, que foi pioneiro na música eletrônica em Brasília. 

Nos anos 1990, com o boom do house music, o protagonismo ficou por conta das casas Saramouche (QI 11 do Lago Sul), Hyppo;s, Tequila Rock (Gilberto Salomão) e Café Cancun (Liberty Mall). No Pistão Sul, o destaque foi a Capital Club.

O excesso de boates, porém, foi um indício que esse modelo de diversão não se sustentaria por muito tempo. É o que defende o promoter Paulinho Madrugada, 50, cliente fiel da Zoom desde às matinês aos domingos. 

"Hoje, cada cidade tem sua forma específica de diversão, e Brasília não tem perfil de boate, mas, sim, de diferentes eventos, que ocorrem eventualmente e em vários pontos da capital. Nesses espaços, a programação não se repete, e o público é diversificado, ao contrário das boates", argumenta Paulinho. Quem também defende esse ponto é Mario Beethoven: "Hoje, os jovens não querem (frequentar) lugares fechados, cheio de gente. Gostam de festivais, diversão ao ar livre", comenta.

Questionado se crê que a boates voltem a ter o sucesso do passado em Brasília, Paulo César Cascão diz achar pouco provável. "É muito caro bancar uma boate, então, não compensa. As festas conseguem abarcar um público maior, e os custos são menores, visto que são pontuais", explica.

Uma opção, aos que se sentem nostálgicos da época, é procurar eventos que, hoje, reproduzem o clima das danceterias da cidade. A festa A volta aos anos 1980, promovida por Paulinho Madrugada, é um exemplo de viagem no tempo que garante bons hits e diversão à moda antiga.

 


Letícia Mouhamad
postado em 05/02/2025 05:00 / atualizado em 05/02/2025 10:15
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