ROTA DOURADA

Dos dutos aos cofres: quadrilha saqueou mais de R$ 32 milhões em joalherias do país

Na segunda reportagem da série, o Correio mostra como age a quadrilha de Santo Antônio do Descoberto (GO) especializada no furto de joias. Eles invadem as lojas sem serem notados e fogem sem deixar rastros, pela porta da frente dos shoppings

Câmera registrou furto na loja de Osmar Moura, em Campo Grande -  (crédito: Material cedido ao Correio)
Câmera registrou furto na loja de Osmar Moura, em Campo Grande - (crédito: Material cedido ao Correio)

Em comboios discretos, cruzando divisas interestaduais, os "Piratas dos Shoppings" saem de Santo Antônio do Descoberto (GO) para executar furtos milionários. De norte a sul, buscam joalherias de alto padrão instaladas em centros comerciais. O que muda é o cenário e o estado, mas o modus operandi é o mesmo: ação silenciosa, nenhuma violência e quase nenhum rastro. Na segunda reportagem da série Rota dourada do crime, o Correio revela o mapa da atuação criminosa da quadrilha, como os integrantes se misturam para evitar a identificação, e o prejuízo financeiro e psicológico aos empresários do ramo.

Entre 2017 e junho deste ano, o bando agiu em pelo menos 14 estados e no Distrito Federal: Ceará, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Roraima, Santa Catarina, Sergipe e São Paulo registraram furtos semelhantes, um rombo que ultrapassa R$ 25 milhões em joias e eletrônicos.

O núcleo "financiador" é responsável por definir o estado-alvo, traçar rotas, escolher meios de transporte e pagar as despesas de cada ataque, que chegam a R$ 20 mil, dependendo da quantidade de "soldados" escalados. Os criminosos procuraram hospedagens estratégicas — próximas ao shopping e, sempre que possível, sem exigência de identificação formal. Para manter o anonimato, os piratas usam documentos falsos para comprar passagens e fazer check-in em hotéis e pousadas. Os alimentos, eles pagam em espécie por meio de PIX, usando contas de terceiros.

Estratégia

A ação criminosa começa muito antes do furto. Nos dias que antecedem o ataque, os executores vão ao shopping escolhido estudar a rotina do local. Geralmente o ponto de encontro é a praça de alimentação. Os integrantes fingem não se conhecerem, ocupam mesas separadas e se comunicam por gestos discretos. Câmeras analisadas pelas polícias de vários estados mostram a comunicação por códigos entre eles.

Jean Algarves, delegado-titular da Delegacia de Roubos e Furtos de São Luís do Maranhão (DRF), identificou três formas de atuação da quadrilha. A mais comum é a invasão por lona. "Em um dos casos, o criminoso entrou pela lona, sem ser notado pelo segurança, e ficou escondido até o fechamento do shopping", contou. Outras duas modalidades, menos frequentes, são a clonagem da frequência dos controles dos portões automáticos e o uso de lojas vizinhas como passagem.

Eles pareciam vizinhos comuns, mas formavam a maior quadrilha de furtos à joalherias em shoppings do país
Eles pareciam vizinhos comuns, mas formavam a maior quadrilha de furtos à joalherias em shoppings do país (foto: Lucas Pacífico/CB/D.A Press)

Além da escolha estratégica da loja, o dia e a hora do crime são calculados. No fim do ano passado, dois membros do grupo viajaram para Itabaiana (SE). Segundo o delegado Matheus Cardilho, titular da Divisão de Repressão a Crimes Patrimoniais (Depatre), a dupla desembarcou no terminal rodoviário numa quinta-feira. O ataque foi no sábado. "Eles aproveitaram que a loja estava em construção e entraram durante a noite. Subtraíram R$ 2 milhões em ouro e só saíram no dia seguinte, quando o shopping reabriu", detalhou. Nesse caso, eles usaram luvas para evitar a identificação digital.

Numa cidade de 103.439 habitantes, sem qualquer registro anterior de crime semelhante, a notícia causou alarde e colocou a polícia em alerta. Os investigadores logo perceberam que não se tratava de criminosos locais. "São pessoas que, aparentemente, não conhecem a estrutura do shopping. Mas a forma como se movimentam revela preparo, como se frequentassem o local há anos", disse Cardilho. Nos centros comerciais, a quadrilha opera em grupos pequenos — de duas a quatro pessoas —, mas apenas um é encarregado de entrar na joalheria. Os demais cumprem funções de "olheiro" e dão cobertura. 

Em outro caso, também no ano passado, em Roraima, os "soldados" usaram os dutos de ventilação para entrar em uma joalheria e invadir o cofre. Eles levaram R$ 1 milhão em joias cuidadosamente escolhidas. "Enquadrar o grupo como organização criminosa é um passo a ser dado, mas é difícil. Geralmente, começa com o furto qualificado e, só ao fim, delimitamos a participação de cada um. Conseguindo demonstrar essa organização, o indiciamento é mais rigoroso", avaliou o delegado Matheus Fraga, titular do 3ª Distrito Policial de Boa Vista.

Em Salvador, dupla da quadrilha faz o levantamento de informações
Em Salvador, dupla faz o levantamento de informações (foto: Material cedido ao Correio)

Em 9 de fevereiro deste ano, um ataque frustrado da quadrilha: quatro deles chegaram a um shopping de Pernambuco pouco antes do horário de fechamento. Um acessou a loja, mas saiu de mãos vazias depois que o alarme soou. Mesmo assim, o plano de fuga funcionou. O suspeito correu para o banheiro, trocou de roupa e saiu pela porta da frente, sem levantar suspeitas.

"O deslocamento rápido da quadrilha dificulta a investigação. Assim que cometem os crimes, eles saem da cidade rumo a outra. Quando fomos analisar as imagens, eles não estavam mais em Recife. Outra estratégia é o revezamento dos executores. Eles fazem isso de propósito. É uma escola do crime", descreve o delegado Mário Melo, titular da Delegacia de Boa Viagem (PE).

Na capital federal

Brasília também entrou no radar da quadrilha. Em 29 de maio, os irmãos Nycolas Pessoa e Pedro Henrique Pessoa furtaram cerca de R$ 3 milhões em joias, relógios e dinheiro de uma joalheria do Park Shopping. Segundo a investigação, os dois acessaram o estabelecimento por meio de um banheiro vizinho, onde havia um fosso com entrada para o forro de gesso.

Aproveitando uma ruptura no teto da loja-alvo, os criminosos invadiram a joalheria e pernoitaram no local. Levaram até marmitas para se alimentar durante a madrugada. No dia seguinte, um domingo, saíram discretamente.

A Polícia Civil do DF, por meio da Coordenação de Repressão aos Crimes Patrimoniais (Corpatri), capturou os irmãos um mês depois. O trabalho da polícia brasiliense na repressão à quadrilha, desde 2018 — com operações simultâneas no combate aos furtos em lojas de eletrônicos —, praticamente extinguiu a ação do grupo no DF. Depois do caso no Park Shopping, não houve novos registros na capital.

 

Danos

Há quatro décadas, Osmar Moura, 69 anos, trabalha no ramo de joias em Campo Grande (MS). Migrou para dentro de um shopping, há 14 anos,  depois de ser assaltado à mão armada no centro da cidade. Mas isso não bastou.

Em 26 de fevereiro deste ano, ao chegar para trabalhar, encontrou a loja revirada e peças desaparecidas. "Ainda estou no prejuízo. Durante todo esse tempo, se colocar na ponta do lápis, perdi R$ 6 milhões, considerando o valor da grama do ouro", lamentou.

De acordo com a polícia, Miller Amilton Nascimento e Isaac Branco Pimentel, membros da quadrilha, invadiram a loja por meio de um estabelecimento vizinho e levaram R$ 30 mil em peças de ouro e 125 alianças de prata. No mesmo dia, a dupla cometeu outros dois furtos em Campo Grande: R$ 27 mil em produtos Apple, na loja IPlace, e 59 celulares avaliados em R$ 150 mil, na Tim.

Moura, que não tinha seguro das mercadorias, desabafou. "É um custo absurdo, de 10% a 15% em cima do estoque. Impossível arcar. Infelizmente, tem colegas do setor que vão à falência. Não conseguem se reerguer depois de um episódio desse." O empresário relatou o drama financeiro. "Nossa mercadoria é toda correta, comprada com certificado e legal. É um mercado bom, estou nele há 40 anos. Mas você fica em estado de alerta o tempo todo. Se é roubado ou furtado, precisa tirar do bolso."

Procurada pela reportagem, a Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce) reconheceu a necessidade de ações para proteger as joalherias e os consumidores. Entre as propostas, estão a criação de comitês de segurança para identificar as vulnerabilidades e propor medidas para melhorar a proteção; o reforço do efetivo de guardas e policiais; parceria com a polícia; treinamento de funcionários dos shoppings e lojistas para situações de risco; e investimento em equipamentos modernos de vigilância.

storyboard joias
storyboard joias (foto: editoria de arte)

 

Rombo milionário

Bahia

2025: R$ 1,5 milhão
2025: R$ 1,9 milhão
2025: R$ 1,036 milhão

DF
2022: R$ 3 milhões
2023: R$ 1.328

Goiás
2022: R$ 1 milhão
2023: R$ 700 mil

Maranhão
2022: R$ 1 milhão
2025: R$ 1 milhão

Minas Gerais
2023: R$ 7 mil

Mato Grosso do Sul
2022: R$ 200 mil

Pará
2020: R$ 2 milhões

Pernambuco
2022: R$ 5,5 milhões

Rio de Janeiro
2020: R$ 350 mil
2024: R$ 4 milhões

Roraima
2024: R$ 1 milhão

Santa Catarina
2019: R$ 300 mil
2024: R$ 150 mil
2024: R$ 6 milhões

Sergipe
2023: R$ 2 milhões

São Paulo
2024: R$ 100 mil

Total: R$ 32.744.328,00

  • Wallace Melo da Silva em um shopping de Salvador (BA) antes de cometer um dos furtos
    Wallace Melo da Silva em um shopping de Salvador (BA) antes de cometer um dos furtos Foto: Material cedido ao Correio
  • Em Salvador, dupla faz o levantamento de informações
    Em Salvador, dupla faz o levantamento de informações Foto: Material cedido ao Correio
  • Como agia a quadrilha
    Como agia a quadrilha Foto: editoria de arte
  • Eles pareciam vizinhos comuns, mas formavam a maior quadrilha de furtos à joalherias em shoppings do país
    Eles pareciam vizinhos comuns, mas formavam a maior quadrilha de furtos à joalherias em shoppings do país Foto: Lucas Pacífico/CB/D.A Press
  • Quadrilha deixou prejuízo milionário
    Quadrilha deixou prejuízo milionário Foto: Maurenilson Freire/CB/D.A Press
postado em 19/06/2025 06:00
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