
Eles não vestem capa, mas vestem coragem. Enfrentam o fogo de frente, muitas vezes sem proteção adequada, sem salário e sem descanso. No Distrito Federal, homens e mulheres abrem mão do conforto e do tempo livre para proteger o Cerrado, suas matas, animais e, em muitos casos, vidas humanas. São os brigadistas voluntários, pessoas comuns que escolheram ser extraordinárias.
De acordo com a Rede Nacional de Brigadas Voluntárias (RNBV), o DF conta com cerca de 80 brigadistas voluntários organizados. A RNBV é uma organização da sociedade civil que busca representar, articular e fortalecer quem, sem nenhum retorno financeiro, lança-se ao combate do fogo em nome da preservação ambiental.
Durante os meses de queimadas, principalmente na seca, esses voluntários se tornam a linha de frente no combate aos incêndios florestais. Trabalham lado a lado com o Instituto Brasília Ambiental e o Corpo de Bombeiros, enfrentando calor extremo, fumaça sufocante e jornadas exaustivas. Monitoram áreas de risco, orientam comunidades, participam de ações preventivas e ajudam a conter as chamas que ameaçam destruir o que resta do Cerrado.
O morador de Planaltina, Lucas Queiroz, 31 anos, sabe bem o peso dessa missão. Servidor do Ibama, atua como voluntário na brigada Cafuringa. Em 2022, numa ação na Chapada Diamantina, ficou quatro dias sem alimentação adequada, em meio ao fogo e ao cansaço. "O maior desafio, para mim, é a saúde mental do brigadista. O risco de perder a vida é real. Hoje atuo em Planaltina e Lago Oeste, e quando não estou no campo, estou treinando colegas, dividindo tudo que aprendo no meu trabalho. É um orgulho passar esse conhecimento adiante", relata Lucas.
Sem medo
Em Samambaia, o Coletivo Boca da Mata reúne 12 brigadistas voluntários dedicados à preservação do Parque Boca da Mata. Uma das integrantes é Raquel Noronha, 27. Para ela, o que os move é simples, porém poderoso: amor. "Não ganhamos nada por isso. Tem que amar o que faz, porque não é fácil. São horas de calor intenso, cansaço, fumaça. Entrei no coletivo em 2022, após fazer um curso gratuito", conta.
A iniciativa nasceu em 2019, criada por alunos e professores do Instituto Federal de Brasília com o desejo de proteger a área verde em frente ao instuição. Desde então, o grupo enfrenta de tudo, inclusive, incêndios de grandes proporções. "Teve um no Parque do Riacho Fundo que me marcou muito. Passamos quase um mês fazendo o rescaldo. Era fogo de turfa, aquele que queima por baixo da terra, pelas raízes", lembra Raquel.
Enfrentar o fogo exige mais do que força física: exige alma."Já enfrentei calor de 60 graus, solo queimando, fumaça tóxica. Passei mal várias vezes. Mas, no fim, é gratificante. A recompensa é saber que ajudei a proteger o bioma", relata.
Tudo isso sem salário, sem bônus, sem gratificação. O pagamento vem em outra forma: no orgulho de servir, na certeza de fazer parte de algo maior e na solidariedade que nasce entre quem arrisca a vida junto. Raquel, aliás, está desempregada no momento. "Aceito qualquer vaga que aparecer. Mas o trabalho voluntário continua, porque ele é parte de mim", diz.
Na Fercal, quem também enfrenta o fogo é Gustavo da Mata Cardoso, 39 anos. "O fogo aqui aparece do nada. A gente precisa manter a calma, montar estratégia e agir com segurança. Não dá pra se jogar nas chamas sem saber o que está acontecendo. É preciso dedicação e sangue-frio para extinguir o incêndio sem colocar a vida em risco", explica.
Os incêndios
O céu alaranjado, o ar denso e carregado de fumaça, o som das sirenes rompendo o silêncio seco do Cerrado. Essas cenas, antes raras, tornaram-se parte da paisagem do Distrito Federal durante a estiagem. A cada nova temporada de seca, os incêndios florestais ganham mais força, alimentados por uma combinação explosiva de baixa umidade, vegetação ressecada e ação humana, deixam um rastro de destruição que vai muito além das matas queimadas.
De acordo com o Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal (CBMDF), o DF registrou 18.794 ocorrências de incêndios florestais em 2023, um aumento alarmante de 154,6% em relação ao ano anterior, que teve 7.339 casos. Apenas durante a seca, foram atendidas 549 ocorrências, com uma área queimada estimada em quase mil hectares. Números que refletem a urgência de um problema que afeta o meio ambiente, a saúde pública e o cotidiano de milhares de pessoas.
A professora de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Rede Biota Cerrado Isabel Schmidt é enfática ao afirmar que as queimadas não são obra da natureza. "Fogo natural só acontece por raios ou vulcões. Como não temos vulcões ativos no Brasil e, durante a seca, também não há raios frequentes, todos os focos têm origem humana", explica.
No Cerrado, o perigo se alastra com facilidade. As folhas secas se transformam em combustível natural, e o capim com folhas finas e compridas acelera a propagação das chamas."São os chamados 'combustíveis finos'. As raízes superficiais dos capins secam rápido e facilitam a expansão do fogo em grande velocidade", detalha Isabel.
Mas o dano vai além da vegetação. As matas de galeria e as áreas ciliares, fundamentais para a preservação dos rios, sofrem impactos severos. "Mesmo incêndios em áreas abertas de Cerrado prejudicam o solo, alteram sua composição, reduzem a permeabilidade e aumentam a erosão que, por sua vez, afeta diretamente os cursos d'água", alerta.
O fogo também representa um risco para toda a fauna da região atingida. "A maioria dos animais adultos consegue fugir das chamas, mas filhotes, répteis e anfíbios geralmente morrem. Quando há cercas ou rodovias no caminho, o risco de morte se torna ainda maior, seja por queimaduras ou atropelamentos", completa.
Céu cinza
No auge da seca do ano passado, Brasília amanheceu diversos dias sob uma névoa cinzenta, resultado direto dos incêndios que tomavam conta do Entorno e até de áreas urbanas.
O professor Gustavo Baptista, do Instituto de Geociências da Universidade de Brasília (UnB), relembra que o impacto ultrapassa o ambiental e atinge diretamente a vida cotidiana."Cada incêndio reduz a biodiversidade local e compromete a biota do solo. Em alguns casos, como no ano passado, as queimadas foram tão severas que afetaram a rotina escolar. A UnB e várias escolas suspenderam aulas por conta da fumaça de um incêndio no Parque Nacional", relembra.
Segundo ele, o impacto social é imenso. "Pessoas passam mal, faltam ao trabalho, crianças deixam de ir à escola. O sistema de saúde sobrecarrega com casos de alergias, crises respiratórias e outras complicações. As queimadas afetam toda a cidade", aponta.
Para o ambientalista Heron Sena, o combate ao fogo começa muito antes da primeira fagulha. "A educação ambiental precisa sair do papel e entrar de verdade nas escolas. Não basta plantar uma horta e achar que cumpriu a função. A educação ambiental envolve a construção de valores, atitudes e competências voltadas para a preservação da vida, e isso é fundamental para prevenir as queimadas", defende.
Ações
O Governo do Distrito Federal, por meio do Plano de Prevenção de Combate a Incêndios Florestais (PPCIF), realiza ações integradas com diversos órgãos para prevenir e combater os incêndios florestais. Entre as ações de prevenção, destacam-se a abertura de aceiros, campanhas educativas, capacitação de brigadistas, treinamentos para produtores rurais e atividades em escolas.
No combate direto, à contratação de brigadistas florestais, reforço da Operação Verde Vivo com viaturas, aeronaves e efetivo especializado, além de monitoramento contínuo de áreas queimadas e integração entre órgãos de fiscalização.
O Corpo de Bombeiros atua 24 horas por dia, com reforço de pessoal, escalas extras e uso de aeronaves. Também realiza cursos de combate ao fogo e palestras em comunidades rurais. O Instituto Brasília Ambiental está selecionando brigadistas temporários para atuarem por dois anos e investiu em novos EPIs com recursos de compensação ambiental. Além disso, ampliou ações preventivas com aceiros e uso controlado do fogo.
Cidades DF
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