
Em 12 de novembro de 1917, na Rua Líbero Badaró 111, em São Paulo, Anita Malfatti — então com 27 anos — ofereceu ao público a sua primeira exposição com óleos, gravuras e aquarelas expressionistas. O homem amarelo, A mulher de cabelos verdes e O farol, estavam lá, na Exposição de Pintura Moderna Anita Malfatti.
Anita não queria aquele evento. Filha de pai italiano e mãe americana, bem formada em Berlim e Nova York, não se sentia exatamente confortável com aquela visibilidade paulistana, na verdade uma invenção do boêmio e amoroso Di Cavalcanti. Já famoso com seus traços e caricaturas publicadas no Rio pela revista Fon-Fon, Di havia se mudado para São Paulo, onde deveria concluir o curso de direito, uma vez que as noites, as praias e as saias cariocas não estavam permitindo. Conheceu Anita e suas telas magníficas e não se aquietou enquanto não as viu penduradas numa das salas do Conde Lara, causando perplexidade, admiração e encantamento.
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As pinturas de Anita Malfatti foram muito bem recebidas pelos visitantes. Já nos primeiros dias de vernissage, oito quadros foram vendidos e outros tantos reservados. Entretanto, o traço que eleva, não raro desconstrói. Monteiro Lobato, já famoso, reconhecido, rico e poderoso, oito dias depois da abertura da exposição de Anita, foi implacável num artigo no jornal O Estado de S. Paulo. Inimigo do futurismo, do cubismo, do impressionismo, do expressionismo e tudo que anunciava e prenunciava o modernismo, Lobato, violento, agrediu as telas de Malfatti: "Degenerada, mistificação pura, fruto da paranoia, arte anormal ou teratológica, desenhos que ornam as paredes dos manicômios".
Com o aroma do que se ouviria, num futuro não muito distante, sobre a arte moderna, de um certo personagem chamado Joseph Goebbels na mesma Berlim que havia educado Anita, Monteiro Lobato espantou e atraiu visitantes, curiosos e estetas de então para a histórica e inaugural exposição. No dia seguinte, acorreram para a Rua Libero Badaró, como num desagravo a Anita, Oswald de Andrade, Ribeiro Couto, Guilherme de Almeida, Candido Mota Filho, Mario de Andrade, entre outros.
Iniciava-se ali a convergência e os encontros que resultariam na Semana de Arte Moderna. Com o apoio do milionário Paulo Prado; do recém-chegado de uma existência europeia, Graça Aranha — o nosso marfim palaciano do modernismo —; Rodrigues Alves, Macedo Soares, Washington Luiz, os Penteados, Oliveiras e Pujol, foi decidido que a Semana de Arte Moderna seria no Teatro Municipal e que contaria com a presença de Heitor Villa-Lobos. Para assegurar a rebeldia revolucionária, Oswald de Andrade contratou uma claque para vaiar palestrantes e recitais de poesias. Com esse espírito, em 1922, nas noites de 13 a 17 de fevereiro e na tarde do dia 15, nas escadarias e auditórios do Municipal — com a sua arquitetura eclética inaugurado em 1911 — entre um recital, palestras e declamações, os apupos, devidamente encomendados, asseguraram o sucesso da efeméride. Iniciava-se assim, o modernismo brasileiro!
Mére Louise. Esse era o nome do cabaré que adornava o revoltoso Forte de Copacabana, em julho de 1922. Foi do telefone desse indiferente recinto que o capitão Euclydes Hermes ouviu do então ministro da Guerra, o civil Pandiá Calógeras, que o general e ex-presidente da República Hermes da Fonseca estava preso — pai do Capitão Euclydes — e que os demais quartéis, envolvidos na conspiração, estavam dominados. Que ele fosse ao Palácio negociar a rendição. Agora num táxi, providenciado pelo mesmo Mére Louise, o jovem capitão foi imobilizado por um destacamento desavisado e levado para o Palácio do Catete.
Sem energia e telefone, os revoltosos do Forte de Copacabana só tinham Mére Louise para falar com o mundo. Foi de lá que o tenente Siqueira Campos, substituto do capitão Euclydes Hermes, negou-se a aceitar a rendição batendo o telefone. Diante dos comandados, Campos liberou aqueles que quisessem partir. Dos 350 homens, ficaram 29, mas o número é impreciso. Esses decidiram marchar para a luta até o final e saíram a campo sob o sol de Copacabana. Preparam-se para a morte! Do Mére Louise surgiu o único civil da rebelião: o engenheiro gaúcho Octavio Correia. No confronto com as tropas legalistas, só dois tenentes, bastante feridos, sobreviveram: Siqueira Campos e Eduardo Gomes. Imobilizados nos outros quartéis estavam Carlos Prestes, João Maria Xavier de Brito, Newton Prado, Delson Mendes da Fonseca, dentre outros.
O presidente Epitácio Pessoa decretou estado de sítio, suspendeu as garantias constitucionais, prendeu militares República afora, trancafiou Edmundo Bittencourt, dono do Correio da Manhã; e Irineu Marinho, dono do jornal A Noite. O recém-fundado Partido Comunista considerou o episódio uma briga de burgueses desocupados. O também jovem Centro Dom Vital qualificou a revolta como "antipatriótica". Horas depois, não muito distante da refrega, no Theatro Municipal, Arthur Rubinstein, ao piano, interpretou a suíte Prole do bebê nº 1, de Heitor Villa-Lobos, para o encanto das elegâncias. Quanto ao povo?! Ora, o povo!
Ao lado do modernismo, e/ou junto com ele, um novo cenário político se desenhava: o Movimento Tenentista (1922/1927), que iria desaguar na Revolução de 1930, com a pitada tropical da Coluna Prestes e sua marcha épica pelo interior do Brasil. No Rio Grande do Sul, em 1923, uma Revolução estava em curso. Em São Paulo, entre 5 de julho de 1924 e 28 de julho do mesmo ano, uma grande revolta militar se estabeleceu, sob o comando de Isidoro Dias e Juarez Távora.
As tropas legalistas responderam com bombardeio aéreo. Vencidos em São Paulo, os revoltosos partiram para o interior em direção ao Paraná, em seguida para o Rio Grande do Sul e, depois, o exílio na Argentina. Comandando três mil soldados na batalha em São Luiz Gonzaga, no Rio Grande do Sul, Carlos Prestes separa-se do grupo e forma a Primeira Divisão Revolucionaria. Segue para Mato Grosso. Entre descansos, saques e batalhas, a Coluna Prestes percorreu 25 mil quilômetros passando por Mato Grosso, Paraná, Minas, Goiás, Maranhão, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Piauí, Pernambuco e Bahia.
Eram difusas e pouco claras as intenções dos revoltosos. Mas, em pelo menos um ponto havia concordância: a elite republicana e rural de São Paulo e Minas Gerais que governava o país, num acordo regressivo com as oligarquias estaduais, depois do fim do Império, já não entendia mais o Brasil e o mundo. Lenço vermelho no pescoço, uniforme verde-militar e com um chapéu gaúcho de aba larga, Getúlio Vargas chegou ao Rio de Janeiro, em 24 de outubro de 1930, para se assenhorar do poder que ele e seus generais haviam confiscado, depois de uma derrota nas eleições que, já se sabia, invariavelmente fraudadas. Meses antes, não exatamente por acaso, mas emanando as expectativas que emergiam daquele grande momento, em 30 de maio de 1930, o jornal A Ordem publica a monografia do jurista Theodoro Figueira de Almeida, Brasília, a cidade histórica da América.
Em cinco páginas, Almeida apresenta uma proposta para a construção da nova capital do Brasil, retomando o tema de certo modo silenciado desde a edificação, em Planaltina, da Pedra Fundamental, em 1922. O que chama atenção no projeto é a nação e a sua identidade. Não é o caso aqui de se discutir as questões técnicas, urbanistas, funcionalidade, densidade demográfica, contemporaneidade, formas e estéticas... etc., mas antes as expectativas de se recolocar os desafios da identidade nacional e do sentido de nação na territorialidade.
Não muito distante das observações de Adolfo Varnhagen, ainda no século 19, que destacava a história como instrumento da organização da nação e dos nacionais. No caso de Theodoro Figueira de Almeida, a forma urbana monumental como memória, símbolo, tradição e história de uma nacionalidade.
Apesar de ser uma iniciativa acadêmica e intelectual, em princípio, solitária e individual — mesmo considerando o seu vínculo com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro —, Figueira de Almeida não se distancia do Brasil que iria surgir da longa experiência Vargas: um país carente de uma ordem urbana, de planejamento, de acolhimento para uma classe média em ascensão e participativa; e de uma integração e revalorização econômica com o seu grande planalto, planícies e sertões.
Cidades DF
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