
Pesquisadores detalham as ideias e projetos que culminaram na construção do novo centro dos Três Poderes - (crédito: Arquivo cedido ao Corrreio)
Jorge Henrique Cartaxo, Lenora Barbo - Especial para o Correio
La Ville merveilleuse. Esse é o título do livro de poemas-homenagem ao Rio de Janeiro, publicado em 1913 em Paris, da poeta francesa Jane Catulle-Mendès. Neta de Victor Hugo, Jane tinha as páginas do mundo e a nobreza das letras, boas ou não. Entre outras virtudes, já viúva do também poeta Catulle Mendès, Jane cultivava seduções — não raro descritas com delicados detalhes pela imprensa francesa —, com colegas dos versos e das palavras como Anatole France, Pierre Loti e Gabrielle d’Annunzio.
Hóspede no Palacete de Laurinda Santos Lôbo, em Santa Teresa, Jane esteve no Rio entre setembro e novembro de 1911. A música, as praias, as pequenas montanhas e alguns braços e lábios nativos, convenceram a nossa inquieta visitante francesa dos encantos da nossa capital de então, que ela ofereceu ao mundo em versos e lembranças criando o seu mais famoso epíteto: Cidade Maravilhosa. É bem verdade que a expressão “Cidade Maravilhosa” já era cantarolada nos versos de uma marchinha de carnaval de 1904. Coelho Neto, também, já havia usado o conceito carnavalesco em uma de suas crônicas publicadas no jornal A Notícia, em 1908. Mas não veio seguida de versos, não era em francês, o nosso cronista não morava em Paris — aquela outra cidade maravilhosa — e menos ainda era neto de Victor Hugo.
Particularidades à parte! Joaquim Murtinho, prócer da República, havia sido ministro da Indústria, da Viação e Obras Públicas do governo de Prudente de Morais; e das Finanças, no governo de Campos Salles. Antes da posse de Salles, Murtinho o acompanhou a Londres onde negociaram, com os Rothschild, o bilionário empréstimo que reorganizou as finanças do país, em decomposição acelerada desde o início da República e o “encilhamento” de Rui Barbosa.
Joaquim Murtinho, engenheiro e médico, introdutor da homeopatia no Brasil, havia cuidado da saúde da princesa Isabel, do marechal Deodoro, de Campo Salles e de Prudente de Morais. Entre festejadas curas milagrosas e algumas funções públicas, adquiriu frondosos latifúndios em Mato Grosso, Minas Gerais, Goiás e no estado do Rio de Janeiro — neste, por algum acaso topográfico, ele fez construir, enquanto ministro, nas margens das suas terras, providenciais estradas de ferro. Reza a lenda que, após o acordo com os Rothschild, em Londres, ele e o Brasil ficaram mais ricos e prósperos.
Laurinda Santos Lôbo, sobrinha de Joaquim Murtinho, por esses mistérios do destino, herdou do tio, falecido em 1911 aos 63 anos, 78 cachorros, a fortuna e o famoso Palacete Murtinho — que ela rebatizou como Palacete Santos Lôbo —, em Santa Tereza, de onde o olhar poetisa e contempla a Baía da Guanabara. Aos 33 anos, não exatamente bonita, mas extraordinariamente sedutora, cuidou de ser o “novo” Rio de Janeiro, mesmo com seus ranços e cacoetes do Império já quase esquecido. Redirecionou o seu apático marido, Hermenegildo Santos Lôbo, para algum espaço da casa e fez e refez os seus e os encantos do Palácio, incluindo seu elegante e discreto romance com Estácio Coimbra, então governador de Pernambuco e futuro vice-presidente da República.
Diretora informal da programação do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, cuja obra ela acompanhou e, em grande parte coordenou, desde 1905 até a sua inauguração em 1909, fez dos seus salões em Santa Teresa uma extensão dos grandes espetáculos. O pianista Arthur Rubinstein, os tenores Enrico Caruso, Tito Schipa, Giacomo Lauri-Volpi e Beniamino Gilgli; o compositor e maestro Richard Strauss, a soprano Claudia Muzzo; as artistas brasileiras consagradas no exterior, como a pianista Magdalena Tagliaferro e as sopranos Vera Janacópulos e Bidú Sayão. Todos se apresentaram nos salões de Laurinda.
Da prata da casa, eram habitués João do Rio, Villa-Lobos, Graça Aranha, Afrânio Peixoto entre tantos outros. “A marechala da elegância, a princesa dos mil vestidos”, Laurinda representava a estética e o estilo da grande reforma urbana de Pereira Passos (1902-1906) — inspirada na mesma reforma urbana de Paris (1852-1870), realizada pelo barão Haussmann — e a grande campanha sanitária conduzida por Oswaldo Cruz. Para ela, Paris, onde tinha um apartamento na Place de La Madeleine, estava logo ali, depois da praia que abraçava a nova Avenida Beira-Mar, onde os mares gelados da França, acompanhando a brisa, vinham se aquecer em Copacabana. E Buenos Aires, onde tinha amigos, um pouquinho depois, não muito longe, da promissora Praia de Ipanema. Laurinda era a maravilha, como a Cidade Maravilhosa da sua amiga Jane Catulle-Mendès.
Na sua mensagem ao Congresso Nacional, de maio de 1896, o então presidente Prudente de Morais, inicia um longo período de esquecimento do Estado em relação a nova capital. “Os serviços da comissão incumbida de escolher o local para a futura capital da União, na área, já demarcada, no planalto central da República, segundo o disposto no Art. 3 da Constituição, não puderam ter grande desenvolvimento no ano findo pela deficiência da verba votada, o que determinou a suspensão dos trabalhos de campos nos últimos meses do exercício... Foi dispensado o pessoal civil da comissão, continuando os militares com os de escritório, sem outra remuneração além das de suas patentes”. Na mensagem de 3 maio de 1897, Prudente de Morais, arguindo falta de verba, sentencia: “... Foi extinta a Comissão de estudos da nova capital”.
O advogado e cafeicultor paulista, Campos Salles, assumiu a presidência da República em 15 de novembro de 1898. Era o quarto presidente republicano e o segundo eleito pelo voto direto. A economia do país estava insolvente. Sem alternativa, mesmo antes de assumir, Salles negociou, com os Rothschild, a moratória e um novo empréstimo de 10 milhões de libras. Seu governo transcorreria sob uma austera e impopular política fiscal. Para impor tamanha restrição e conter suas consequências, Campos Salles elaborou sua famosa Política dos Estados — conhecida como a Política dos Governadores. As grandes oligarquias, com domínios e autoridade absoluta sobre todos os Poderes locais, controlavam os governos estaduais. Em contrapartida, ofereciam a maioria ao governo federal no Congresso fraudando as eleições e impedindo a posse de parlamentares da oposição por intermédio da famosa Comissão de Poderes da Câmara dos Deputados.
“A melhor educação é a que entra pelos olhos. Bastou que, deste solo coberto de baiucas e taperas, surgissem alguns palácios, para que imediatamente nas almas mais incultas brotasse de súbito a fina flor do bom gosto: olhos, o que só haviam contemplado betesgas, compreenderam logo o que é a arquitetura...E [eu], intimamente, invejava a sorte dos que estão agora nascendo, dos que vão viver numa cidade radiante — quando eu, e os da minha geração, pela estupidez e pelo desleixo dos enfunados parlapatões que nos governaram, tivemos de viver numa imensa pocilga de dois mil quilômetros quadrados, como um bando de bácoros fuçando a imundice”. O texto do poeta Olavo Bilac, de 1904, publicado na Gazeta de Noticias, expressa bem o impacto das reformas empreendidas pelo prefeito do Rio, Pereira Passos (1902-1906) no governo de Rodrigues Alves (1902-1906).
O Rio insalubre, epidêmico, monárquico, colonial, impróprio para ser a sede do governo, transformava-se numa cidade moderna, contemporânea, europeizada. Claro, jamais conseguiu esconder ou aplacar o que sempre tivemos de injusto e cruel! Depois da extinção da Comissão Cruls pelo presidente Prudente de Morais (1894-1898), da política fiscal austera do presidente Campos Salles (1898-1902) e seu pacto político com os governadores e das grandes reformas urbanas da cidade do Rio de Janeiro e da modernização do seu porto, empreendidas por Rodrigues Alves, a decisão constitucional da mudança da capital perdeu densidade. Ficou restrita a isolados debates e propostas no Parlamento e em algumas publicações, sem maiores repercussões ou interesses.
Até mesmo o engajado deputado, na Constituinte republicana, Lauro Muller, posteriormente poderoso ministro de Viação de Obras Públicas no governo Rodrigues Alves, tornou-se indiferente ao tema.
Depois da extinção da Comissão em 1897, o Planalto Central volta a ser tratado, em 1904, em artigos de Medeiros de Albuquerque, em A Notícia. Em dezembro de 1905, agora senador, Nogueira Paranaguá faz um longo discurso defendendo e historiando a ideia e a decisão constitucional da mudança da capital. Seu projeto em tramitação no Senado que solicita providências para a execução do Art. 3 da Constituição, sequer obtém parecer nas Comissões. Em 1908, o engenheiro A. Leyret, com Jacinto Pimentel e Teixeira Lopes Guimarães, requereu ao Congresso Nacional “o privilégio para a construção da Capital, mediante a concessão de determinados favores, como exploração por 90 anos, de luz, esgotos, água...etc.”
Em retribuição, os requerentes elaborariam o projeto urbano e edificariam os palácios e edifícios administrativos. Como os empresários não comprovassem possuir os recursos necessários, a proposta não prosperou. Em 1910, Antônio Martins de Azevedo Pimentel, ex-integrante da Comissão Cruls, publica a monografia Histórico da mudança da capital federal para um sítio do interior do Brasil, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No seu livro Provocação e Debates, de 1910, Silvio Romero
critica os gastos nos “afamados embelezamentos do Rio”. Aqueles valores, segundo ele, seriam suficientes para as edificações da nova capital no Planalto Central do Brasil. O deputado Eduardo Sócrates, na sessão do dia 6 de setembro de 1911, em pronunciamento na Câmara dos Deputados, pede providências para a mudança da capital. Só em 1917, com a publicação da revista A Informação Goyana, teremos o início de um novo ciclo de reflexões sobre a importância da nova capital no Planalto Central do Brasil.
critica os gastos nos “afamados embelezamentos do Rio”. Aqueles valores, segundo ele, seriam suficientes para as edificações da nova capital no Planalto Central do Brasil. O deputado Eduardo Sócrates, na sessão do dia 6 de setembro de 1911, em pronunciamento na Câmara dos Deputados, pede providências para a mudança da capital. Só em 1917, com a publicação da revista A Informação Goyana, teremos o início de um novo ciclo de reflexões sobre a importância da nova capital no Planalto Central do Brasil.
"O Rio insalubre, epidêmico, monárquico, colonial, impróprio para ser a sede do governo, transformava-se numa cidade moderna, contemporânea, europeizada. Claro, jamais conseguiu esconder ou aplacar o que sempre tivemos de injusto e cruel!"
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postado em 06/07/2025 05:40