VIOLÊNCIA

Investigação nebulosa cerca caso de jovem morto por policial civil

Jovem de 20 anos foi baleado pelas costas um policial civil quando estava numa moto com um amigo. A tragédia causou indignação dos moradores do Recanto das Emas. Ao Correio, pai da vítima desabafou: "Não foi erro e nem foi acidente"

João Gabriel, 20 anos, queria prestar concurso para carreira policial -  (crédito: Reprodução/Instagram)
João Gabriel, 20 anos, queria prestar concurso para carreira policial - (crédito: Reprodução/Instagram)

Relatos divergentes cercam a morte do estudante João Gabriel Matos da Silva, 20 anos, baleado por um policial civil no Recanto das Emas. O disparo efetuado pelo investigador rompeu o silêncio da quadra 502, fomentou um manifesto da população, amigos e familiares do rapaz, além de suscitar questionamentos sobre a atuação policial. As circunstâncias são nebulosas e levou à Corregedoria da Polícia Civil (PCDF) instaurar um inquérito.

A tragédia ocorreu no início da noite de quinta-feira. João Gabriel conduzia uma moto e, na garupa, estava um amigo, um adolescente de 15 anos. Testemunhas narraram que o policial civil responsável pelo disparo estava em uma viatura descaracterizada, um Versa branco, e iria entregar uma intimação em uma outra casa da rua, quando avistou a dupla e decidiu abordá-la.

  • Revoltados, familiares se aglomeraram na porta da delegacia
    Revoltados, familiares se aglomeraram na porta da delegacia Héliton Moreira/TV Brasília
  • João de Assis, pai do jovem, pede por Justiça.
    João de Assis, pai do jovem, pede por Justiça. "Ele não volta mais" Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Revoltados, familiares se aglomeraram na porta da delegacia
    Revoltados, familiares se aglomeraram na porta da delegacia Héliton Moreira/TV Brasília
  • João Gabriel, 20 anos, queria prestar concurso para carreira policial
    João Gabriel, 20 anos, queria prestar concurso para carreira policial Reprodução/Instagram

A versão de que os amigos tentaram fugir é refutada pelo pai, o motorista de ônibus João de Assis, 50. "Os vizinhos falaram que não houve fuga. Pelo contrário, quando o policial o abordou, ele desacelerou a moto para descer. Mesmo assim, levou um tiro nas costas. A bala acertou o ombro do amigo dele e pegou no meu filho. Saiu no peito", detalhou em entrevista ao Correio.

Vídeos produzidos por moradores mostram a aglomeração de amigos e parentes no local, logo após os disparos. Gritos por justiça, choro e desespero marcaram a noite. A situação tensa levou uma multidão às dependências da 27ª Delegacia de Polícia (Recanto das Emas). Balançando as grades da área externa, o público gritava: "Justiça, justiça." Na porta da DP, as pessoas disseram que João Gabriel poderia ter imaginado tratar-se de assaltantes, uma vez que o carro não tinha qualquer identificação da polícia."

Horas antes

O pai de João Gabriel contou que, mais cedo, o filho passou o dia com ele, em uma obra no Riacho Fundo. Os dois trabalhavam juntos há duas semanas na construção da futura casa: eles iriam se mudar de Santo Antônio do Descoberto (GO) para o DF. João cursava tecnologia da informação na faculdade Estácio, mas havia trancado o curso por dificuldades em conciliar os horários. "Esse era um dos motivos (da mudança). Ele queria voltar a estudar", relatou o motorista.

Após ajudar o pai na obra, o jovem foi para a casa do tio, no Recanto das Emas, tomou um banho e disse que sairia com um amigo, mas voltaria logo. "O tiro disparado foi para matar. Ali, era uma situação para não ter nenhum disparo, não tinha necessidade. Mas, se fosse necessário, atirasse no pneu da moto ou para o alto. Ele (policial civil) era um cara experiente. Não foi erro e nem foi acidente", desabafou o pai.

Da escada de casa, com vista para a rua, um amigo de João Gabriel o viu caído, ferido no asfalto. Correu para socorrê-lo, mas, segundo relatou, foi interrompido pelo policial, que ordenou: "Não mexe." O pai conversou com esse amigo. "Ele me disse que as últimas palavras do meu filho foram por pedido de socorro e para não deixá-lo morrer."

Investigação

A Polícia Civil do DF, por meio de nota, informou que a Corregedoria-Geral da corporação instaurou um inquérito para apurar a morte do jovem. "A Corregedoria acompanha o caso desde o primeiro momento e que foi instaurado inquérito, no âmbito da CGP, que está adotando todas as medidas necessárias para apurar rigorosamente o ocorrido."

O adolescente que estava na garupa da moto recebeu alta hospitalar e prestou depoimento na Corregedoria ontem. A versão do menor pode ser peça-chave para o esclarecimento do caso. Os policiais voltaram ao local da tragédia, identificaram pessoas que supostamente estavam no local na hora do tiro e as intimaram a prestar depoimento. Imagens de câmeras de segurança serão analisadas.

Enquanto isso, o pai de João pede por Justiça. "Ninguém vai trazê-lo de volta, mas vou movimentar o mundo e os fundos para fazer justiça aqui na Terra", desabafou. João será velado no Salão Renascer, em Santo Antônio do Descoberto, às 13h de hoje. O sepultamento ocorrerá logo depois, no cemitério da cidade.

Abordagem sob suspeita

 O Correio ouviu um especialista em segurança para comentar sobre a ação policial. Na avaliação do advogado criminalista Adilson Valentim, a ação deve ser investigada, sobretudo, porque o agente estava descaracterizado. “Essa prática configura um ato de alto risco e que fere diretrizes básicas do policiamento ostensivo. Em uma abordagem, o cidadão pode agir defensivamente, pensando estar sendo assaltado ou sequestrado”, afirmou.


O Distrito Federal registrou 15 ocorrências de letalidade policial em 2024. Um número expressivamente menor do que o de Goiás, estado vizinho, que, somente no primeiro semestre do mesmo ano, registrou 209 casos. Segundo Valentim, a diferença gritante é explicada no modelo de governo de ambos estados. “A atuação de (Ronaldo) Caiado (governador) é pautada na força e repressão contundente. Isso é reforçado pelas diferenças estruturais entre Goiás e DF”, disse.


Segundo o advogado, Brasília apresenta um dos melhores níveis de escolaridade do país, o que influencia diretamente a relação entre a população e as forças de segurança. “Cidadãos mais escolarizados tendem a conhecer melhor seus direitos e deveres, questionar condutas abusivas e acionar os mecanismos de controle disponíveis, como ouvidorias, Ministério Público e Defensoria Pública”, ressaltou.


Quando um caso desse acontece, a sociedade questiona a fiscalização e treinamento que as equipes policiais são submetidas. O advogado analisou as medidas tomadas para as corporações do DF. “A atuação é fiscalizada por mecanismos internos, como corregedorias, ouvidorias, sindicâncias. Assim também, como é por mecanismos externos, como o Ministério Público”, afirmou. Valentim ressaltou que, mesmo passando por modernizações na capacitação, o treinamento ainda se inspira no tradicionalismo militar. “Não é suficiente nem adequado para a atividade policial, pois a lógica de combate e enfrentamento bélico não se aplica à realidade das ruas, onde a atuação exige mediação de conflitos, proteção de direitos fundamentais e uso proporcional da força”, disse.


Ele comentou novas técnicas utilizadas para a capacitação dos agentes. “Esse processo vem sendo fortalecido com cursos específicos sobre o sobre uso diferenciado da força, câmeras corporais, técnicas de desescalada e respeito aos direitos humanos”, enfatizou o especialista.

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postado em 16/08/2025 06:00
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