Os incêndios florestais e a devastação do Cerrado foram tema, ontem, da entrevista com Isabel Schmidt, professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Rede Biota Cerrado, no CB.Poder — uma parceria entre a TV Brasília e o Correio Braziliense. A conversa foi conduzida pelos jornalistas Adriana Bernardes e Carlos Alexandre de Souza.
Durante a entrevista, Isabel destacou a importância da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que propõe uma abordagem estratégica para o uso do fogo no meio ambiente. Segundo ela, o fogo não deve ser visto apenas como um inimigo a ser combatido, mas também como uma ferramenta útil à conservação, desde que utilizado de forma planejada, controlada e segura. A política completou um ano de promulgação em 31 de julho e, desde então, diversos avanços foram registrados, especialmente nas esferas federais.
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O que diz a lei sobre manejo do fogo?
A legislação reconhece a necessidade do uso do fogo em diferentes contextos e regulamenta essa prática. É preciso entender quando e como o fogo pode ser utilizado. O desafio é fazer com que ele seja, de fato, uma ferramenta, e não se transforme em uma emergência, como ocorre nos incêndios.
Como está o andamento da lei no Distrito Federal?
O Distrito Federal ainda utiliza pouco o fogo como ferramenta de manejo das áreas nativas. O Cerrado, o Pantanal e o Pampa são biomas pirofíticos, ou seja, propensos ao fogo natural. Já a Amazônia, a Mata Atlântica e a Caatinga não evoluíram com o fogo. Aqui, no DF, estamos no Cerrado, que queima naturalmente. É preciso usar o fogo de forma controlada, em áreas estratégicas, como campos e savanas, para proteger as florestas, especialmente aquelas nas margens dos rios. As áreas federais do DF, como a Floresta Nacional de Brasília, a Reserva Biológica da Contagem e o Parque Nacional de Brasília, manejam o fogo há quase 10 anos. No entanto, nas áreas sob responsabilidade do Governo do DF, o uso ainda é incipiente. O governo local avançou muito pouco na regulamentação do manejo. A boa notícia é que, neste ano, o GDF passou a contratar brigadistas por um período maior. Antes, assim como em outros estados, as contratações duravam apenas seis meses.
Os incêndios do ano passado na Floresta Nacional foram causados pela falta de manejo?
A Floresta Nacional de Brasília possui muitas áreas com espécies exóticas, como pinus, eucaliptos e capim estrangeiro, o que dificulta tanto o combate quanto a prevenção. Essas espécies são altamente inflamáveis. Além disso, o tamanho da área, a complexidade do terreno e o grande número de visitantes representam desafios extras. Tivemos um ano especialmente crítico em termos climáticos. Imagino que, se não houvesse nenhuma ação de manejo, os incêndios teriam sido muito mais intensos. Muitas das queimadas foram controladas pelas brigadas em áreas previamente manejadas, que tinham menos material combustível. Em alguns casos, o fogo parou justamente onde havia sido feita uma queima prescrita.
Quais estudos você desenvolve atualmente na UnB?
Estudamos bastante os efeitos de diferentes tipos de fogo, especialmente sobre as plantas, no meu caso, mas também sobre o clima. Quando ocorrem muitos incêndios, há uma mortalidade elevada de plantas de todos os tipos, e até de animais, o que é muito raro em queimas realizadas em outros períodos. As chamadas queimas de manejo, ou queimas precoces, feitas no início da seca, causam uma mortalidade muito menor de plantas e animais. Além disso, emitem menos gases de efeito estufa e, portanto, contribuem muito menos para as mudanças climáticas. Essas queimas controladas ajudam a evitar incêndios maiores, reduzem mortes, diminuem os gastos com combate ao fogo e as emissões de poluentes. Nosso trabalho é justamente quantificar esses efeitos e mostrar que o manejo é uma solução. Ninguém quer incêndios como política pública. Mas quando se adota uma política de 'fogo zero', como em alguns anos atrás, tenta-se eliminar totalmente o fogo. E isso acaba criando uma grande bomba-relógio: uma vegetação cheia de material seco que, ao menor sinal de faísca, pode se transformar em um grande incêndio.
Este ano pode repetir o cenário de grandes incêndios?
Ao comparar com o mesmo período do ano passado, tínhamos muito mais operações de combate em andamento. O cenário atual é um pouco mais tranquilo, com um alívio climático aparente. Mas isso não é motivo para baixar a guarda. O governo federal aumentou em 26% a contratação de brigadistas em órgãos como o Prevfogo/Ibama, responsável por ações em terras indígenas e quilombolas, e o ICMBio, que atua nas unidades de conservação federais.
Quais avanços foram sentidos?
Foram tomadas medidas para garantir recursos financeiros a estados, municípios e até propriedades particulares, com o objetivo de viabilizar a implementação do manejo integrado. Além disso, têm sido criadas articulações entre os entes federativos para promover ações conjuntas e coordenadas.
Quais estados estão mais avançados?
O Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo (Comif), criado pela política, estabeleceu diretrizes importantes. Uma delas determina que todos os estados têm até dois anos, a partir de março deste ano, para regulamentar suas próprias normas e ações de manejo do fogo. Alguns estados estão mais adiantados. O Mato Grosso do Sul, por exemplo, publicou um decreto sobre o manejo integrado desde 2023, antes mesmo da promulgação da política nacional.
Qual é a importância dessa política?
O fogo é uma ferramenta para todos e se torna um risco para todos quando sai do controle. O manejo beneficia todos os setores: evita fumaça excessiva nas cidades, previne queimadas em plantações e pode ser útil inclusive em processos produtivos legais. Os grandes incêndios muitas vezes vêm com desmatamentos ilegais e grilagem. Mas quando o uso do fogo está dentro da legalidade e do manejo adequado, ele pode andar junto com a produção e a conservação.
Quais os principais desafios para estados e municípios implementarem o manejo?
O primeiro passo é criar um arcabouço legal. Cada estado e município precisa regulamentar como o fogo pode ser usado, quem pode queimar, quais são os processos autorizativos. Não é qualquer um que pode queimar onde quiser. Quando um cidadão solicita autorização para uma queima controlada, é necessário que o órgão ambiental analise, oriente e decida com base em critérios técnicos. Isso exige estrutura e investimento nos órgãos estaduais de meio ambiente.
Você acredita que ainda ocorrem muitos incêndios criminosos?
É muito difícil identificar o autor. É complicado provar que foi exatamente aquela pessoa, com aquela intenção. Além disso, a legislação que trata do tema é de 1940. Como uma pessoa vai ser punida com apenas seis meses de detenção e uma multa? Isso, às vezes, até incentiva o uso criminoso do fogo. Por isso, é importante que a gente tenha outros mecanismos de responsabilização mais eficazes.
Confira o CB.Poder na íntegra:
