Por Jorge Henrique Cartaxo e Lenora Barbo, especial para o Correio —
O avião dele era tratado, jocosamente, como a "boate voadora", diante da sua fama de mulherengo. Católico fervoroso, frequentador dos terreiros de candomblé, de centros espíritas e das mesas brancas. Cultivava o rito de, antes das decisões políticas importantes, consultar guias mediúnicos. Quando interventor do Estado de São Paulo, no Estado Novo — antes de ser destituído por corrupção —, sugeriu a Getúlio Vargas os serviços de um paranormal. O médico Erlindo Salzano, seu principal conselheiro político e guia espiritual, o havia convencido de que ele seria a reencarnação de Dom Pedro I. Esse era Adhemar de Barros, governador de São Paulo eleito em 1946, chefe do PSP e um grande líder populista da época. No seu gabinete, nos Campos Elíseos, havia um cofre abarrotado de dinheiro, sempre disponível para resolver urgências políticas, pessoais e, não raro, administrativas. Diziam dele: Adhemar rouba, mas faz!
No calor daquele 13 de dezembro de 1949, o DC-3 do governador Adhemar de Barros despontou no horizonte da fazenda Santos Reis, em São Borja (RS), sobrevoando a casa e o pasto, preparando pouso. O gado, os cavalos e as galinhas já haviam se acostumado com o ronco diário dos aviões dos visitantes. Humor, graça, belas histórias, amenidades e um suculento churrasco de ovelha. Assim foi aquele primeiro momento, com Getúlio e Adhemar, num almoço nos jardins/pomar da estância gaúcha, sob os exuberantes cinamomos que adornavam o lugar. Os jornalistas, agora sempre presentes, adoraram!
Findo o repasto, Vargas e Barros se recolheram numa das salas da casa. Ali trataram do que importava: as eleições que se avizinhavam de 1950. Depois saíram para uma caminhada. De bombacha, botas e visivelmente mais gordo — apesar das cavalgadas diárias — Getúlio ladeava Adhemar de Barros, alto e corpulento, sem os hábitos rurais, ofegante, quase derretendo diante daquele calor senegalês.
Ao saber dos detalhes do encontro, Assis Chateaubriand teria dito: "Os jacarés que se avistaram são feras que pretendem comer a mesma onça". Seis meses depois, em 15 de junho de 1950, numa cena espetacular nas escadarias do hoje Museu do Ipiranga, diante de um painel com fotos gigantes de Getúlio e Adhemar, num palco decorado com flores e as 21 bandeiras dos estados brasileiros, o governador de São Paulo anunciou à pátria: "Acorda e levante-te, Brasil. O liberalismo político, nos seus fundamentos religiosos, filosóficos e políticos, é anticristão, materialista, antitradicional e, portanto, antinacional, corrupto, corruptor, desagregador e, em suma, meus caros patrícios, satânico. O liberalismo expulsou do Brasil o imperador D. Pedro I, que era antiliberal, e quase conseguiu retalhar a nossa pátria em republiquetas sem expressão [...] estou conformado com o destino. Entretanto, se minhas palavras atingiram o âmago dos vossos corações, ouvi-me e atendei ao meu apelo. Dos nomes que se apresentam para a magistratura suprema do país, aquele que escolhi e vos apresento e recomendo, pois aceitou o nosso programa e prometeu executá-lo caso eleito com nosso apoio, é Getúlio Vargas." Em São Borja, um pouco longe daquele palco, o senador gaúcho se organizava para retornar para o Rio de Janeiro, já convicto do seu retorno ao Catete, agora nos "braços do povo". Uma expectativa que permaneceu, no país e em São Borja, desde deposição de Vargas em outubro de 1945.
Em 21 de agosto de 1948, não muito antes das cenas políticas gaúcha e paulista, o presidente Dutra encaminhou ao Congresso o relatório do general Polli Coelho que havia presidido e coordenado a Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital do Brasil. A "Comissão Polli Coelho" — como ficaria conhecida — havia sido nomeada em 15 de março de 1947. Já em 16 de abril de 1947, um mês depois do início dos trabalhos da Comissão, do Morro da Conceição, — onde funcionava o Serviço Geográfico do Exército — Polli Coelho encaminhou, em caráter reservado, importante solicitação ao Estado-Maior do Exército, então sob o comando do general Augusto Tasso Fragoso. "I - Como presidente da Comissão Técnica encarregada de estudar o problema da mudança da Capital, acho imprescindível conhecer, sobre o mesmo problema, o ponto de vista do Estado-Maior do Exército, onde tenho conhecimento da existência de trabalhos relativos a esse problema; II - Solicito de Vossa Excelência me seja enviado, em caráter secreto ou reservado, esse ponto de vista a fim de que ele seja levado na alta consideração que merece; III - Anexo ao presente um trabalho que acabo de elaborar e no qual procuro defender a solução que, para o mesmo problema, foi dada em 1892 pela Comissão Cruls, da qual fizeram parte nossos ilustres e velhos camaradas Generais Tasso Fragoso, Alípio Gama, Celestino Alves Bastos e Hastímphilo de Moura; IV - Esclareço a Vossa Excelência que existe no País e mesmo dentro da Comissão que presido, certa tendência pra desconhecer os fundamentos da solução referida, em favor das soluções que não me parecem possuírem as positivas vantagens geopolíticas que existem na solução proposta em 1892 (Comissão Cruls); V - Estou convencido de que a essa solução histórica, que foi firmemente sustentada pelo Visconde Porto Seguro (Varnhagen), somente se contrapõem hoje soluções apressadamente sugeridas, envolvendo interesses ocultos, políticos ou financeiros".
Já em 30 de abril de 1947, o Chefe da 1ª E.M.E, Coronel João Segada Viana, na sua exposição em quatro laudas, nos itens V e VIII, diz: "Deve-se ter sempre em mente que, talvez, além dos motivos de segurança externa, o principal motivo da mudança da capital é a sua localização em um ponto tal que sirva de centro de irradiação do progresso e coloque o governo equidistante das partes que constituem o novo vasto país, facilitando a administração e impedindo que uma zona do país seja a mais beneficiada do que outra com a localização da capital [...] Por todos os motivos acima expostos, parece-nos que a melhor solução para a localização da futura Capital da República será instalá-la no Planalto de Goiás, conforme propõe o General Presidente da Comissão que teve o encargo de fixar o que estabelece a Constituição de 1946, região essa que, além de tudo, é a que oferece maior segurança para o governo". O general Juarez Távora, em 2 maio de 1947, por sua vez, 2º Subchefe do E.M.E, não é claro na sua posição. Em princípio concorda com o coronel Segada, mas defende também a possiblidade da nova capital na Chapada dos Veadeiros. Acredita, ainda, que a alegada falta de comunicação do "Quadrilátero Cruls" com o resto do País pode ser um problema e admite a opção da localização da Capital no Triângulo Mineiro, desde que precedida de uma redivisão politico-administrativa do país. Num tom semelhante, se pronuncia, em 29 de maio de 1947, o chefe da 3ª Secção, Coronel Edgardino de Azevedo, que considera as opções do Triângulo Mineiro como a do Planalto Central de Goiás, indiferentes para a segurança e o desenvolvimento do país. O general Zeno Estillac Leal, em 9 de junho de 1947, na ocasião substituindo o general Freitas de Almeida, chefe do E.M.E, além de considerar as alternativas do Triângulo Mineiro como a do Planalto de Goiás, do ponto de vista da segurança nacional, adequadas para a localização da nova capital, observa que não há "urgência" para a mudança.
Em 2 de julho de 1947, o general Salvador César Obino, Chefe do Estado Maior Geral, considera que "a solução defendida pelo Exmo. Sr. General Presidente da Comissão de Estudos (Polli Coelho) é também a que melhor atende aos interesses da segurança nacional", mesmo considerando "reais as possibilidades, momentaneamente superiores, que o Triângulo Mineiro pode oferecer".
Em 3 de outubro de 1947, o então ministro da Guerra, general Canrobert da Costa, encerrando o relatório do E.M.E e apresentando, também, a posição do Exército, em ofício dirigido ao General Polli Coelho, conclui: "I - Tendo recebido o ofício de V.Exa. número 17, de 16 de abril de 1947, que encaminha um alentado estudo sobre a mudança da capital da República, submeti-o à consideração do Estado-Maior do Exército que emitiu o parecer que segue junto ao processo e que recebeu a minha aprovação; II - O trabalho de V.Excia. que contem doutos comentários ao redor da escolha da zona destinada à futura capital, foi analisado, também, pelo Estado-Maior Geral que se dignou anexar algumas considerações sobre o assunto; III - Os dois pareceres são acordes quanto à conclusão final sob o ponto de vista da Defesa Nacional, isto é, de que a localização da capital, quer no Planalto Goiano quer no Triângulo Mineiro, atende a segurança desejada. O Estado-Maior Geral, porém, examinando a questão sob o aspecto mais amplo — o da mobilização integral da nação — ligado, diretamente, ao desenvolvimento dos fatores favoráveis à elevação do nível econômico do país, mostrou-se mais inclinado pela solução defendida por V.Exa. e preconizada pela Comissão Cruls em 1892 que aconselhava o Planalto de Goiás por motivos geopolíticos. Tais são os pontos de vista do Exército e do Estado Maior-Geral que tenho a honra de remeter a V.Exa".
A disputa regional, entre Minas e Goiás, sobre a localização da nova capital, se mostrou na Constituinte de 1946, se evidenciou nos trabalhos técnicos de Lucas Lopes — que defendeu o Triângulo Mineiro — e Manoel Demósthenes — que defendeu o Planalto Central. A composição e os trabalhos da Comissão Polli Coelho trouxeram para si essa divisão política, sob os conceitos técnicos. A comissão, basicamente, trabalhou com dois grupos: aqueles que defendiam o "Quadrilátero Cruls — sob o conceito da geopolítica - e os demais que defendiam o "centro demográfico" — Triângulo Mineiro. Divisão similar, ainda que mais sutil, identificamos nas forças armadas, como bem sugerem as manifestações dos documentos reservados do Estado-Maior do Exército, citados acima.
A sombra disso tudo, desde o primeiro momento, era a fragilidade política e econômica do governo Dutra; a Guerra Fria em ascensão; os trabalhadores e a classe média na cena pública; a repressão aos movimentos trabalhistas que surgem com o getulismo; o liberalismo econômico que empobreceu o país.
» Jorge Henrique Cartaxo é jornalista e diretor de Relações Institucionais do IHGDF
» Lenora Barbo é arquiteta e diretora do Centro de Documentação do IHGDF
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