
O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi tema do Podcast do Correio. O cineasta e documentarista Renato Barbieri conversou com Severino Francisco e Nahima Maciel sobre a carreira, filmes e a importância da tradicional mostra na carreira. Reconhecido por obras como Atlântico Negro e Pureza, Barbieri construiu uma filmografia marcada pela investigação histórica, pela brasilidade e por uma ponte constante entre documentário e ficção.
O diretor contou que não começou no cinema de forma planejada. "Na adolescência, queria ser radialista. Na minha família não tinha essa possibilidade de cinema. Todo mundo seguia carreiras como engenharia ou arquitetura", lembrou. Depois de abandonar a engenharia civil, optou pela psicologia na PUC-SP, onde encontrou afinidade com os debates e professores. "Ali comecei a ter prazer em lidar com símbolos, emoções e ideias. Foi nesse ambiente que me aproximei do coletivo que viria a se tornar o Olhar Eletrônico".
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A virada aconteceu em 1983, quando propôs à professora substituir uma monografia por um vídeo. Pouco depois, Barbieri passou a trabalhar no programa experimental de Goulart de Andrade, onde aprendeu na prática os fundamentos da linguagem televisiva e do vídeo. Seu primeiro filme estruturado veio em 1985, com Do outro lado de sua casa, exibido em festivais internacionais. Nesse período, começou a planejar a mudança para Brasília. O reconhecimento maior, no entanto, veio em 1998, com Atlântico Negro — Na Rota dos Orixás (1998). "Foi o momento em que passei a me sentir de fato cineasta", afirmou.
Cinema e conhecimento
Ao lembrar do impacto do filme, Barbieri destaca o pioneirismo da obra. "É um filme histórico, porque se tornou uma referência nas relações Brasil-África. Foi a primeira obra audiovisual a ser considerada material de estudo. Chegou a cair em vestibular aqui na Universidade de Brasília (UnB) e passou a ser adotado em universidades como obra de referência", afirma.
Segundo o cineasta, o reconhecimento veio também do meio acadêmico. "Fui entrevistado por uma banca de doutores e doutoras da UnB para provar que o filme era ciência. E, de fato, ele é. Porque está enraizado no real, tem uma grande raiz na pesquisa e na documentação do presente."
O prestígio ultrapassou fronteiras. Barbieri recorda o encontro com o jurista senegalês Doudou Diène, então diretor do programa Rota do Escravo, da Unesco. "Quando ele viu o filme, me convidou para ir à sede da Unesco, em Paris. Ao me encontrar, disse: 'Olha, o que você fez foi ciência'. Eu achei incrível, porque não tinha me dado conta disso. Estava mais ligado na questão artística, mas percebi a dimensão do trabalho."
Para o diretor, a força do documentário está na ponte que estabelece entre continentes. "O filme faz uma ligação espiritual, histórica, ancestral e cultural entre o Brasil e a África. No caso, com o Benin, de onde, a partir do Porto de Uidá, saíram milhões de africanos que foram escravizados e trazidos ao Brasil. Estima-se que tenham sido entre 10 e 11 milhões ao longo de toda a diáspora", explicou.
Entre doc e ficção
A transição para a ficção veio em seguida, com As vidas de Maria (2004) e, mais tarde, com Pureza (2019). O longa, baseado em fatos reais, retrata a luta de uma mãe na busca pelo filho aliciado em condições análogas à escravidão. "Quando descobri que ainda existia trabalho escravo no Brasil, fiquei chocado. A abolição foi tardia e incompleta. Pureza mostrou que essa ferida continua aberta e precisa ser denunciada", afirmou. Para ele, a diferença entre documentário e ficção é decisiva: enquanto o primeiro registra a realidade, o segundo cria mundos.
A experiência com o longa despertou o desejo de contar histórias de maior alcance e universalidade. "Eu falei: 'Poxa, agora eu preciso de uma história que me faça atravessar a fronteira, uma história que seja compreendida fora do Brasil'", afirmou. Foi nesse contexto que Barbieri se aproximou da trajetória de dona Pureza, personagem real que enfrentou o drama do trabalho escravo contemporâneo ao procurar o filho desaparecido.
O diretor reconheceu que, até então, não tinha se dado conta da permanência da escravidão em moldes modernos. "Eu achei muito curioso o trabalho escravo contemporâneo. Não tinha me dado conta que existia", destacou. Ao refletir sobre o tema, ele resgatou a visão de Joaquim Nabuco: "O problema não era fazer a abolição, o problema era o legado da abolição. Ele matou na mosca, estamos até hoje, 137 anos depois, com esse problema".
Casa das ideias
Renato Barbieri destaca a importância do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro como espaço de formação e troca entre cineastas. "O festival me deu, em primeiro lugar, o refinamento do olhar. Assim como o pessoal da literatura lê muito, quem faz cinema precisa ver filmes para aprender o que está sendo feito, entender novos formatos e soluções. O Festival me deu a possibilidade de conhecer o que de melhor é produzido no cinema brasileiro", afirmou.
Para o cineasta, o evento foi decisivo para consolidar a capital como polo audiovisual. "Brasília produz, hoje, cerca de 12 a 15 filmes por ano. Houve uma época em que a cidade fazia um por ano, e olhe lá. O cinema de Brasília se beneficia muito do festival, porque ele dá aos cineastas não só a chance de ver o que há de melhor no Brasil, mas também de ter contato com diretores de todo o país. Aqui se tornou uma praça nacional do cinema, a mais tradicional do Brasil."
Na avaliação de Barbieri, o festival precisa fortalecer ainda mais seu papel formativo, aproximando cultura e educação. "O cinema tem que entrar na escola. Hoje, muitos professores usam nossos filmes, mas por iniciativa própria, às vezes até comprando do bolso. Não existe uma política nacional que una cultura e educação, e esse muro é uma burrice que atrasa o país. O festival pode ser um motor nesse processo, trazendo cineastas para palestras, formações e encontros com estudantes."
Confira o podcast na íntegra:
Diversão e Arte
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