Entrevista

"A COP30 também é um balanço ético global", destaca jurista

Ao CB.Poder, Cristiane Derani, referência em direito ambiental e desenvolvimento sustentável, fala sobre papel do direito na regulamentação dos sistemas alimentares e o debate sobre mudanças climáticas

Cristiane Derani (E), professora da UFSC, em entrevista ao CB.Poder -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Cristiane Derani (E), professora da UFSC, em entrevista ao CB.Poder - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

A forma como o direito pode contribuir para mudanças na produção de alimentos a fim de torná-la mais sustentável e socialmente justa foi o tema discutido, nesta segunda-feira (27/10), no programa CB.Poder — parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília. Às jornalistas Ana Maria Campos e Adriana Bernardes, Cristiane Derani, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), jurista com atuação internacional e referência em direito ambiental e desenvolvimento sustentável, falou sobre o assunto, que é tema de seu novo livro, Planeta à Mesa: Direito Ambiental Econômico e a transformação dos sistemas alimentares.

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Fale um pouco sobre seu livro, por favor.

Quando a gente fala sobre sistemas alimentares, estamos falando de uma rede de relacionamentos que, além de ser uma rede complexa, é a base do desenvolvimento de toda e qualquer sociedade humana, em qualquer momento histórico. Para que esse livro não tivesse duas mil páginas, era importante pensar no que a gente objetivava com ele. A ideia é verificar, a partir da constatação de que nós estamos vivendo um momento de quase não retorno da nossa relação com a natureza, de que maneira o direito pode contribuir na transformação da produção de alimentos. Eu digo isso porque o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) coloca os sistemas alimentares como a maior causa das alterações climáticas, uma vez que ele é o maior emissor de gases provocadores de efeito estufa. Então, se vamos até os sistemas alimentares e atuamos para a diminuição das emissões, nós provocamos um efeito em cascata muito positivo, que vai beneficiar toda a sociedade e, por sua vez, beneficiará a produção de alimentos, que necessita de biodiversidade, de água e de energia.

Como o direito pode favorecer sistemas alimentares mais justos e mais sustentáveis?

O direito é muito mais que a lei. Ele é todo o processo de formação e efetivação daquilo que compreendemos como uma linguagem normativa. Na questão dos sistemas alimentares, normalmente, a gente pensa no direito nacional, aquele que é construído no interior de um país soberano. Mas os sistemas alimentares na sociedade globalizada não têm essa fronteira. Eles precisam dialogar entre si e encontrar um piso comum básico de regulamentação, indispensável para que se faça uma produção que seja, ao mesmo tempo, economicamente viável, ecologicamente sustentável e socialmente justa. A ONU (Organização das Nações Unidas) colocou que o milênio enfrenta três grandes problemas: a poluição, a extinção da biodiversidade e as mudanças climáticas. Todos eles só podem ser atacados de maneira global. Então, o primeiro passo é entender que o direito não é mais setorizado. Ele é construído a partir do Estado soberano, mas também precisa comunicar com o direito internacional.

 27/10/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Cristiane Derani, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, jurista com atuação internacional e referência em direito ambiental e desenvolvimento sustentável, é a entrevistada do CB.Poder
Cristiane Derani (E), professora da UFSC, em entrevista ao CB.Poder. Na bancada, as jornalistas Ana Maria Campos (C) e Adriana Bernardes (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

A senhora também atua numa frente de combate à fome na ONU, que trata desse assunto no Brasil e no mundo. Como funciona esse trabalho?

Eu trabalho como ponto focal acadêmico da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Ela foi construída por iniciativa do governo brasileiro no G20, em novembro de 2024. Por ter sido uma iniciativa do governo brasileiro, ele interinamente está ocupando a presidência, por meio do ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome Wellington Dias, mas ele é uma aliança global. Recentemente, o nosso presidente foi até a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) inaugurar um espaço onde a aliança vai atuar. A aliança é um esforço entre sistema financeiro, academias e governos do mundo inteiro para eliminar a fome do mundo a partir da reprodução das melhores práticas.

O Brasil é um dos países que mais exporta no mundo e, apesar de ter saído do Mapa da Fome, ainda têm altos índices de insegurança alimentar. O que a senhora tem a dizer sobre o assunto?

É uma contradição que espero em pouco tempo ver superada. Saímos do Mapa da Fome, mas pela segunda vez, ou seja, há uma fragilidade nessa questão. A fome e a pobreza precisam ser trabalhadas conjuntamente. Porém, o que as pessoas esquecem é que essa questão econômica e social está alicerçada nas relações ambientais. Ano passado, aconteceu, ao mesmo tempo, uma grande enchente na Região Sul e uma seca na Região Norte, onde está a maior bacia hidrográfica do mundo. A causa única desses eventos são as mudanças climáticas. Se colocar o quanto que o Brasil pagou em um ano pelos problemas ambientais exclusivamente relacionados ao aumento de desmatamento na Amazônia e ao aumento da temperatura na Terra, eu ousaria, saindo do campo científico e indo para uma dedução lógica, dizer que é muito mais do que o Brasil tem em ganho no seu superávit comercial com o aumento da fronteira de soja. Fica mais barato você repensar estruturalmente sistemas alimentares que sejam compatíveis com as estruturas ambientais. 

Com a COP30, uma das expectativas é conseguir financiamento para projetos ambientais. De que forma o direito econômico e a governança podem garantir que esses recursos ocorram de forma transparente e com resultados práticos para o clima e para a sociedade?

Desde 2017, há promessas de que as nações que são grandes emissores iriam financiar a construção da transformação energética de todos os países. O Brasil tem milhões prometidos que nunca chegaram. Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, tem cobrado dos países. Agora, há um novo fundo, o Fundo Tropical das Florestas (TFFF), feito para que essas contribuições não sejam colocadas de imediato, que elas sejam trazidos à medida em que se vão construindo os projetos. Eu diria que essa COP30 traz um outro trabalho fundamental, que é o balanço ético global. A questão da proteção ambiental precisa passar por uma mudança ética da nossa relação com o outro e com a natureza.

Como é que o direito garante o respeito aos conhecimentos e à sabedoria dos povos originários?

O Brasil é um país biodiverso e sócio diverso. Temos ainda, apesar de muito já ter se destruído, uma diversidade cultural e de conhecimento que dificilmente outro país poderia ter. Isso precisa ser valorizado e os povos originários precisam ter seu território protegido. Existe um discurso, que não é verdadeiro, dizendo que em territórios indígenas não se constrói riqueza. Não. Territórios indígenas são onde as riquezas são mantidas para o usufruto de todos.

A senhora está otimista com relação à COP30?

As reuniões internacionais são, na maior parte das vezes, decepcionantes para aqueles que esperam resultados práticos e imediatos. Na realidade, é muita conversa, muitos interesses em jogo, mas é um espaço em que esses interesses podem se encontrar e de alguma forma convergir. Acredito que haverá alguns resultados positivos. Não todos. Não aquilo que considero que seja necessário para a situação em que nós estamos vivendo hoje. Mas acredito que vai aquecer uma engrenagem para que não só os Estados, mas também os atores sociais, os investidores, a sociedade civil, os povos tradicionais, possam angariar coletivos maiores e financiamentos adequados para promover essa transformação. Porque a transformação não vem exclusivamente das políticas de Estado. A sociedade vai moldando o Estado. O Estado muitas vezes acaba sendo, vamos dizer, pressionado por interesses econômicos imediatos que não comportam aquela contabilidade de custo que eu, Estado, deveria fazer.

Qual deveria ser o resultado da COP30?

Uma organização. Precisaríamos ter uma organização efetiva, independente, supraestatal, que pudesse efetivamente construir essas políticas coordenadas de transição energética e de transformação dos sistemas globais, como o alimentar. Precisaríamos ter esse comprometimento transnacional, em que todos pudessem realmente trabalhar. Há interesses de grandes produtores que isso não ocorra, mas eles podem ser transformados, à medida que se comprove aos produtores que eles podem continuar com o seu trabalho a médio prazo e com muito mais lucro. Acho que uma das grandes dificuldades é para aquele que tenha colocado fogo na floresta, por exemplo, consiga entender que a perda da sua safra quatro anos depois foi por causa daquilo que ele fez. Se nós conseguirmos fazê-lo entender, por meio dessa convergência de interesse, acho que pode ser um grande resultado positivo.

Lançamento

  • Planeta à Mesa: Direito Ambiental Econômico e a transformação dos sistemas alimentares
  • De Cristiane Derani
  • Quarta-feira (29/10), às 19h, na Livraria Circulares (Comércio Local Norte 113, Bl. A, Loja 7)

*Estagiária sob a supervisão de José Carlos Vieira

 

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postado em 28/10/2025 04:30
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