Doutora

UnB concede título póstumo a Lélia Gonzalez: "Orgulho", diz filho

Universidade também abriu consulta para batizar o Centro de Convivência Negra (CCN) em homenagem à intelectual mineira, referência na luta por ações afirmativas no país

A ativista e intelectual Lélia Gonzalez -  (crédito: Acervo Lelia Gonzalez)
A ativista e intelectual Lélia Gonzalez - (crédito: Acervo Lelia Gonzalez)

A Universidade de Brasília (UnB) vai homenagear a historiadora, filósofa e militante Lélia Gonzalez, uma das vozes mais importantes do pensamento negro e feminista no Brasil, com duas iniciativas simbólicas e complementares. Hoje, às 17h, na sede da Associação dos Docentes da UnB (ADUnB), será realizada a cerimônia de outorga do título de Doutora Honoris Causa (póstumo) à pesquisadora.

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No mesmo contexto, a universidade abriu uma consulta pública para decidir se o Centro de Convivência Negra (CCN) passará a se chamar Centro de Convivência Negra Lélia Gonzalez, tornando-se também um espaço de memória dedicado à autora. A proposta, enviada pela diretora da Faculdade de Comunicação da UnB (FAC), professora Dione Moura, à Secretaria de Direitos Humanos e à direção do CCN, ressalta o papel histórico de Lélia e a afinidade de sua trajetória com a luta por ações afirmativas e pelo fortalecimento da juventude negra nas universidades.

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"O CCN é um bastião de resistência e acolhimento das políticas afirmativas da UnB. Associar o nome de Lélia Gonzalez a esse espaço significa reconhecer uma história comum de luta e de construção coletiva pela equidade racial", destacou a diretora da Faculdade de Comunicação no memorando que formalizou a proposta.

Em entrevista ao Correio, a professora Dione Moura destacou o simbolismo do reconhecimento. "No Brasil, historicamente, negamos o lugar da mulher negra. Por isso, celebrar o nome da teórica e liderança do feminismo negro é fundamental", afirmou.

Ela ressaltou que o legado de Lélia ultrapassa o campo acadêmico, influenciando gerações de mulheres negras. "Lélia ensinou-nos a afirmarmos nossa identidade como mulheres negras amefricanas. Isso significa sermos mulheres descendentes do pensamento de Lélia: uma leitura crítica que defende igualdade. A UnB dá um passo adiante ao trazermos o nome de Lélia como Doutora Honoris Causa", completou.

Segundo o professor de Filosofia da UnB, Herivelto Pereira de Souza, as iniciativas, a outorga do título e a proposta de renomeação do CCN, são distintas, mas convergem no reconhecimento da relevância intelectual e política de Lélia.

"Nossa motivação fundamental foi fazer justiça à importância do pensamento de Lélia Gonzalez para todo o campo das humanidades. Ela transitou por diferentes áreas, como a filosofia, história, antropologia, comunicação, e articulou teoria e prática de forma única. Conceder esse título a uma mulher negra é um gesto de enorme significado simbólico", afirma o docente.

Homenagem poderosa

A mestranda em Filosofia Taynara Rodrigues é uma das pesquisadoras envolvidas no pedido de concessão do título de Doutora Honoris Causa à intelectual Lélia Gonzalez pela Universidade de Brasília (UnB). O projeto nasceu de uma parceria entre Taynara e o professor Herivelto, seu orientador, com quem divide o compromisso de colocar Lélia "no centro da produção intelectual brasileira". Segundo Taynara, a iniciativa começou quando o professor conversou com a família da Lélia, perguntando se ela já tinha recebido essa homenagem e, ao descobrir que não, convidou a mestranda para escrever o texto que fundamenta o pedido.

Para a pesquisadora, a homenagem é urgente e simbólica. "A importância dessa homenagem é justamente por se tratar de uma filósofa, uma pensadora negra brasileira", afirma. Ela lembra que, até o momento, apenas Sueli Carneiro recebeu o título de Honoris Causa da UnB, em 2022. "É muito importante ter essa homenagem para Lélia, que já é essa potência", diz.

O reconhecimento, segundo Taynara, vai além da reparação histórica: é também um impulso para o futuro da produção intelectual negra no país. "Mais do que resgatar, é sobre impulsionar. Colocar a Lélia nesse lugar de prestígio, porque ela sempre esteve lá", enfatiza. Para ela, o legado da pensadora é "fundamental para compreender a nossa realidade enquanto povo brasileiro".

O impacto do pensamento de Lélia vai além das homenagens institucionais. Taynara, que pesquisa a relação entre Lélia Gonzalez e a psicanálise, destaca como a autora abriu caminhos para novas leituras sobre a formação cultural brasileira. "Eu pesquiso o pensamento da Lélia a partir da abertura da psicanálise que ela faz. Relaciono o que ela escreve sobre Lacan e a cultura brasileira a partir dessa leitura", explica.

A pesquisadora ressalta que revisitar a obra de Lélia é também uma forma de manter viva sua perspectiva coletiva. "A Lélia dizia que não queria ser uma ilha negra. Ela sabia que só poderia se movimentar a partir do coletivo", cita Taynara. Para a estudiosa, essa homenagem representa também um chamado: "Que mais pessoas comprometidas com essa teoria e essa prática possam seguir esse percurso, dando continuidade ao que ela fez com o MNU, com o Nzinga e com tantos outros espaços de luta."

Em suas palavras, reconhecer Lélia Gonzalez é reconhecer o Brasil. "Vai chegar um momento em que a gente vai pensar: 'Nossa, essa homenagem já poderia ter sido antes'. Mas, de qualquer forma, ela é tão importante, tão necessária", afirma. "A melhor forma de homenagear a memória da Lélia é revisitar sua obra, suas falas e os debates que ela propôs. Porque ela ainda tem muito a nos ensinar."

Causa negra

Em entrevista ao Correio, o filho de Lélia, Rubens Rufino, que é economista e diretor-executivo do Instituto Memorial Lélia Gonzalez, destacou o orgulho da família diante das homenagens e o legado que a mãe deixou. "Essas iniciativas não partiram da família, mas nos enchem de orgulho. Cada vez que o nome dela aparece em uma sala, um centro ou um título, isso reforça que nós, pessoas negras, somos protagonistas da história do país. Minha mãe abriu mão da vida pessoal para se dedicar à causa negra e à luta das mulheres. A vida dela foi um ato de entrega e de coragem", contou.

Rubens lembrou ainda que Lélia sempre acreditou que a militância deve ser cotidiana. "Ela dizia que a militância é feita todos os dias — na escola, no trabalho, na fila do mercado. E tinha uma preocupação enorme em fazer com que a gente se reconhecesse negro, porque, como ela dizia, a gente se torna negro ao longo do tempo, na consciência e na personalidade."

Para o filho da homenageada, as celebrações de novembro reforçam não apenas a importância de Lélia, mas também de outras intelectuais negras que marcaram a história. "Espero que homenagens como essa se multipliquem, para Lélia, para Luiza Bairros, Beatriz Nascimento, Neusa Santos. São mulheres que transformaram este país com pensamento, coragem e ação", disse Rubens.

Além da homenagem na UnB, outras iniciativas recentes reforçam a presença de Lélia no espaço público: o prédio da ONU em Brasília leva o nome da pensadora, e no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, será inaugurado um mural dedicado à sua trajetória.

Espaço de resistência

Criado como um ponto de apoio e articulação para estudantes negros da UnB, o Centro de Convivência Negra se tornou um espaço histórico de resistência e permanência estudantil. A proposta de rebatizá-lo com o nome de Lélia é vista como uma forma de perpetuar sua memória em um ambiente que representa, justamente, as causas que ela defendeu.

O memorando que sugere a mudança lembra que o CCN foi “bastião de vigilância das políticas afirmativas na UnB” e “referência permanente de acolhimento e resistência”. Ele cita também o impacto da obra de Lélia sobre gerações de estudantes, como a graduanda Mariana Soares, que escreveu em 2022: “Um dos textos mais importantes que li no começo da minha jornada foi Racismo e sexismo na cultura brasileira, de Lélia Gonzalez. Nessa disciplina, pude ler diversas obras da autora, nas quais ela falava sobre a realidade da mulher negra em primeira pessoa”.

Quem é Lélia Gonzalez:

Mineira de Belo Horizonte, Lélia de Almeida Gonzalez (1935–1994) foi professora, filósofa e antropóloga. Formada em História e Filosofia pela Universidade do Estado da Guanabara (atual Uerj), foi mestre em Comunicação e doutora em Antropologia. Atuou como docente na PUC-Rio, onde chefiou o Departamento de Sociologia e Antropologia, e foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado(MNU), do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), do coletivo de mulheres negras Nzinga e do Olodum.

Lélia se tornou referência do feminismo negro latino-americano e caribenho, formulando conceitos como o de “amefricanidade”, que valoriza a identidade política e cultural resultante da herança africana nas Américas. É autora de livros, como Améfrica Ladina, Festas Populares no Brasil (volumes 1 e 2) e Lugar de Negro.

  • A mestranda Taynara Rodrigues é uma das pesquisadoras que pediram o título
    A mestranda Taynara Rodrigues é uma das pesquisadoras que pediram o título Minervino Junior/CB/D.A Press
  • Lélia Gonzalez Unb honoris Causa
    Lélia Gonzalez Unb honoris Causa Caio Gomez
  • 2021. Crédito: Acervo Lélia Gonzalez. Cultura. Ativista e feminista Lélia Gonzalez. Seminário 1985Beyond, Baltimore - USA, 08-84. Lelia e Angela Davis.
    2021. Crédito: Acervo Lélia Gonzalez. Cultura. Ativista e feminista Lélia Gonzalez. Seminário 1985Beyond, Baltimore - USA, 08-84. Lelia e Angela Davis. Acervo Lelia Gonzalez
  • Obra em homenagem à intelectual
    Obra em homenagem à intelectual Companhia das Letras/Reprodução
  • Crédito: Abravíde/Reprodução. Capa do livro Lélia Gonzalez - o feminismo negro no palco da história.
    Crédito: Abravíde/Reprodução. Capa do livro Lélia Gonzalez - o feminismo negro no palco da história. Abravídeo/Reprodução

 

 


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postado em 06/11/2025 05:10
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