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Violência: DF tem 4 notificações de crimes sexuais por dia

Ocorrências vão além do estupro, abrangendo importunação, pornografia infantil e favorecimento da prostituição. Segundo especialistas, o trabalho em rede é fundamental para evitar mais casos e acolher corretamente as vítimas

De janeiro a setembro deste ano, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF) registrou 1.199 notificações de violência sexual, cerca de quatro por dia. Do total de vítimas, 36,2% são adolescentes -  (crédito: Reprodução)
De janeiro a setembro deste ano, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF) registrou 1.199 notificações de violência sexual, cerca de quatro por dia. Do total de vítimas, 36,2% são adolescentes - (crédito: Reprodução)

"Eu estava na metade do percurso para casa, em Sobradinho, quando senti alguém me apertando por trás. (O ônibus) estava lotado, mas notei um movimento estranho e, quando virei para tentar me afastar, um sujeito estava ejaculando em cima do meu quadril. Fiquei paralisada". O relato é de Luana (nome fictício), 28 anos, que sofreu violência sexual enquanto retornava do trabalho. O fato, ocorrido em 2023, ainda a atormenta. "Até hoje, pegar ônibus sozinha é motivo de sofrimento", completa. 

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De janeiro a setembro deste ano, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF) registrou 1.199 notificações de violência sexual, cerca de quatro por dia. Do total de vítimas, 36,2% são adolescentes. A maioria, pessoas do sexo feminino. O crime, definido como qualquer relação de natureza sexual na qual uma pessoa é obrigada a se submeter, vai além do estupro.

Entram neste rol a pornografia infantil, o assédio, a importunação, o favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual, além do tráfico internacional para fins de exploração. Nos últimos 45 dias, o Correio noticiou ao menos sete prisões relacionadas aos crimes no DF (veja mais em Memória).

Conforme legislação federal, todos os profissionais de saúde são obrigados a preencher uma ficha de notificação de violência interpessoal ou autoprovocada, mesmo em caso de suspeitas, cujos dados compõem o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).

O registro, que independe do consentimento do paciente e não constitui quebra de sigilo, visa contribuir para a formulação de políticas públicas e direcionar o atendimento adequado à vítima. Em casos de violência contra crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, indígenas e idosos, é exigida a comunicação a agentes externos, como Ministério Público, Conselho Tutelar e delegacias especializadas.   

Nem toda notificação, porém, resulta em denúncia, investigação ou punição, assim como nem todo caso de violência sexual chega aos serviços de saúde e é contabilizado pelo Sinan. "Eu não tive forças para pedir ajuda dentro do ônibus, tampouco para denunciar. Fiquei paralisada. Então, minha única reação foi descer na parada seguinte e ligar para minha mãe. Entrei em crise de pânico", relata Luana.

O temor de encontrar o sujeito no ônibus novamente a fez mudar de rotina. "Passei a sair mais tarde do serviço para não arriscar topar com ele na linha que costumava pegar. Esse medo me perturba todos os dias", confidencia. 

Moradora de Planaltina de Goiás, a jovem ainda enfrenta outra estatística desoladora. Ela vive em um dos três municípios do entorno do DF (os outros dois são Luziânia e Novo Gama) que constam na lista das 50 cidades com mais de 100 mil habitantes com taxas mais elevadas de estupros do Brasil, segundo números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no início deste ano. Em 2024, o país registrou o maior número de estupro e estupro de vulnerável da história, com 87.545 vítimas, mais do que o dobro do registrado em 2011.

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Subnotificação

No que diz respeito à violência sexual, a Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF) contabiliza apenas os casos de estupro, estupro de vulnerável e importunação sexual. Conforme a pasta, de janeiro a junho de 2025, foram contabilizadas 170 ocorrências de vítimas de estupro; 335 de estupro de vulnerável; e 587 de importunação sexual.

"Em relação à violência sexual contra crianças e adolescentes, é perceptível que a maioria dos casos acontece no ambiente doméstico, exercida por familiares ou pessoas conhecidas da família e que estão muitas vezes em posição de cuidado e proteção desses indivíduos", explica a assistente social Guaia Monteiro, que atua no Núcleo de Prevenção e Assistência a Situações de Violência (Nuvap).

No caso de William (nome fictício), 10, o abuso sexual foi praticado por um primo, cinco anos mais velho, e ocorreu dentro de casa. A violência, iniciada com a exposição forçada à pornografia, era acompanhada pela promessa de que a vítima poderia usar o videogame do primo após os abusos serem cometidos.

O menino, que confidenciou a violência à mãe, chegou ao serviço de saúde do DF — Centros de especialidades para a atenção às pessoas em situação de violência sexual, familiar e doméstica (Cepav) — encaminhado pelo Conselho Tutelar e, no Cepav, recebeu, junto à família, acompanhamento de psicólogos e assistentes sociais.

CID-Violencia sexual
CID-Violencia sexual (foto: Valdo Virgo)

O relato de William é uma das histórias presentes no livro Violência sexual: práticas de atendimento biopsicossocial a vítimas, agressores e famílias, organizado por diferentes profissionais ligados ao Cepav e à rede de saúde ligada ao Sistema Único de Saúde (SUS).

A proposta do estudo é detalhar a estruturação dos serviços oferecidos a esse público, além de mostrar como intervenções humanizadas e interdisciplinares são fundamentais, visto que as vítimas de violência sexual são constantemente silenciadas.  

"(Essas vítimas) são silenciadas pelos autores da violência, por familiares que duvidam que ocorreu e quando falam com um profissional e são desacreditadas. Esse silenciamento também é mantido, quando as vítimas não sentem que as leis e os órgãos a protegem após a revelação da violência. Então, enquanto sociedade, família e Estado, precisamos aprimorar nossas ações, a fim de que uma pessoa em situação de violência seja ouvida, acolhida e legitimada em qualquer lugar; e os ofensores, responsabilizados", detalha o psicólogo do Cepav Cássio Setubal. 

Nesse sentido, o trabalho em rede, além de favorecer o diálogo e a formação de parcerias, possibilidade o fortalecimento de uma linha de cuidado capaz de promover a reorganização e a promoção social e pessoal da família, que também deve receber acompanhamento. No caso de violências cometidas contra meninos, a atenção deve ser ainda maior. "A incorporação da perspectiva de gênero, como a discussão acerca do machismo, é fundamental no projeto terapêutico de acolhimento", ressalta um trecho do livro voltado à intervenção com meninos vitimizados. 

Prevenção

Publicada em maio, a cartilha virtual Diálogo: o caminho da prevenção, da Secretaria de Justiça e Cidadania (Seju/DF), contém informações para famílias conversarem com crianças e adolescentes sobre a violência sexual. Também há orientações relacionadas a cuidados no transporte público e no ambiente digital. Além dos canais de denúncia, a cartilha também ensina quais são os principais tipos de violência direcionados a esse público. 

Entre as principais orientações, estão: ensinar o que é o consentimento, autoestima e a importância do respeito mútuo; orientar sobre todos os tipos de violência e explicar que elas podem ocorrer, inclusive, dentro de casa; e ensiná-los a pedir ajuda, na Polícia, Escola ou Conselho Tutelar.

No ambiente virtual, deve-se evitar que o computador fique em locais da casa onde a criança possa navegar 'fora de vista', além de ser fundamental estabelecer regras para o uso da internet. Outra orientação é que, no transporte público, os pais não deixem os filhos sentarem no colo de adultos. Para acessar o documento completo, basta pesquisar: cartilha Diálogo: o caminho da prevenção. 

No DF, há 18 Cepavs disponíveis para atender crianças, adolescentes, adultos e idosos em situação de violência sexual, familiar e doméstica. São serviços de porta aberta e funcionam por meio de agendamento, realizado pelo próprio usuário presencialmente ou por telefone. Na unidade, o usuário passa por acolhimento com a equipe multidisciplinar.

Profissionais de saúde, da justiça e da educação também podem realizar encaminhamentos. Para os atendimentos, é necessário apenas apresentar um documento de identificação válido. Para informações sobre endereços, acesse: saude.df.gov.br/carta-servicos-violencia. 

A SSP-DF reforça que o incentivo à denúncia é de extrema relevância no enfrentamento aos crimes de violência sexual, pois permite que as autoridades atuem de forma cada vez efetiva, "elaborando estratégias de atuação preventiva e, ainda, para identificar e prender autores", diz a pasta em nota. O registro de ocorrência pode ser feito em quaisquer delegacias localizadas nas regiões administrativas e também por meio da Delegacia Eletrônica.

Como denunciar

Ligue para a Polícia Militar (190) em caso de emergência, ou utilize os canais da Polícia Civil (197, WhatsApp (61) 98626-1197, e-mail denuncia197@pcdf.df.gov.br ou site). Também é possível denunciar através do Disque 100 (Direitos Humanos), que recebe denúncias de violações e encaminha aos órgãos competentes, ou pela Ouvidoria do GDF (162 ou pelo site Participa-DF).

Como romper ciclos de violência?

Quando ocorre uma violência na família, todos sofrem. Essa revelação pode causar mudanças que impactam todo o núcleo familiar. Nesse sentido, é importante compreender qual é a comunicação dessa violência para desenvolver estratégias necessárias e ampliar a proteção visando à interrupção desse ciclo. É necessário compreender também que a violência familiar é transgeracional, perpassando várias gerações.

E o que mais tem funcionado, na prática, para romper ciclos transgeracionais de violência são os atendimentos multidisciplinares, especialmente em formato de grupo. Nessas intervenções, é possível trabalhar temas fundamentais como a identificação das diferentes formas de violência, o desenvolvimento de autopercepção e autoestima, a construção de práticas para estabelecimento de limites e a compreensão de que existem outras maneiras de se relacionar que não passam pela violência.

As práticas de atendimento, porém, precisam ser constantemente adaptadas às necessidades das pessoas atendidas. Não existe uma fórmula pronta capaz de responder à complexidade dos casos; o que existe é um trabalho contínuo, sensível e aberto às mudanças que emergem de cada grupo e de cada trajetória.

Na nossa experiência, o atendimento em grupo tem se mostrado especialmente potente porque a troca de vivências entre os participantes produz efeitos terapêuticos profundos. Nesse formato, os profissionais atuam como facilitadores do processo, deslocando o foco do especialista para os próprios indivíduos, que constroem juntos novos sentidos, novas formas de se perceber e novas possibilidades de relação.

Camila Lueneberg é médica ginecologista e obstetra do Cepav Margarida, especialista em impactos da violência na saúde e docente de Medicina na Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS/DF)

Neulabihan Mesquita é psicóloga, especialista em saúde do Nupav e do Cepav Jasmim 

  Memória

» 4/11: homem de 36 anos foi preso por suspeita de estupro de vulnerável na Estrutural. Segundo investigações da PCDF, os abusos, ocorridos contra a enteada, duraram quatro anos, sendo iniciados quando a adolescente tinha apenas 12 anos.  

» 31/10: homem foi preso por importunação sexual após tentar agarrar e beijar à força duas mulheres, entre elas uma adolescente de 16 anos, em um estabelecimento comercial na Asa Norte. 

» 31/10: homem esfaqueou outro após importuná-lo sexualmente. Segundo relato da vítima, o agressor passou a mão no corpo dele. Na sequência, após o homem reagir à importunação, o autor desferiu seis golpes de faca na cabeça dele.

» 29/10: pastor foi preso acusado de estuprar e torturar três crianças, incluindo as duas filhas, que tinham entre 6 e 15 anos na época dos fatos, entre 2010 e 2018. Segundo os relatos das vítimas, logo após a prática dos atos, o agressor obrigava os menores a colocar as mãos por cima da Bíblia e orar.

» 29/10: Polícia Federal apreendeu computadores e dispositivos eletrônicos de um homem investigado por participação em grupos virtuais usados para troca de imagens de abuso sexual contra crianças e adolescentes.

» 18/10: homem em situação de rua foi preso na Candangolândia após ameaçar vítima com faca e a estuprar. 

» 13/10: uma bebê de 1 ano morreu após ser gravemente agredida física e sexualmente no Novo Gama, distante cerca de 40km de Brasília. A criança tinha lesões recentes por todo o corpo, além de sangramento nas partes íntimas. 

Serviço

Violência Sexual: práticas de atendimento biopsicossocial a vítimas, agressores e famílias

Organização: Liana Fortunato, Marlene Marra, Camila Luenerberg e Sônia Rodrigues 

Editora Ágora

Lançamento: 2025

Preço: R$ 74,10 

Compras pelo site da editora: www.gruposummus.com.br

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postado em 24/11/2025 06:26 / atualizado em 24/11/2025 15:49
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