Embora mais da metade da população do Distrito Federal — 58,2%, de acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) de 2024 — seja formada por pessoas negras (pretos e pardos), as desigualdades raciais ainda se refletem em diferentes esferas da vida social e profissional. No entanto, dentro das forças de segurança do DF, há histórias que desafiam esse cenário. Delegados, agentes e servidores negros ocupam espaços de destaque e se tornam exemplos de superação e representatividade, mostrando que a presença negra é fundamental para construir uma polícia mais diversa, empática e conectada à realidade da população a que serve.
Embora seja latente a necessidade de políticas voltadas à promoção da igualdade racial, a Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) afirmou que não existem projetos destinados exclusivamente à promoção da igualdade racial dentro das corporações. As forças de segurança mantêm atualmente 101 iniciativas de prevenção à criminalidade cadastradas no Portal OMNIS, sistema voltado ao monitoramento de iniciativas desenvolvidas pelas forças de segurança.
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Segundo a pasta, muitos desses programas têm foco na promoção dos direitos humanos e na atenção a grupos vulneráveis em ações de caráter transversal e inclusivo que, naturalmente, alcançam também a população negra e outros segmentos historicamente afetados por desigualdades estruturais.
Décadas de resistência
Apesar da falta de incentivos específicos, nas forças de segurança pública é possível encontrar histórias que são exemplos da força da representatividade dentro das corporações. A do delegado que está à frente da 35ª Delegacia de Polícia (Sobradinho II), Ricardo Viana, é uma delas. "Percebi que, na polícia, poderia ajudar as pessoas de forma mais imediata", disse.
O primeiro passo foi dado em 1996, quando ingressou na Polícia Civil como agente, após ser o primeiro colocado no concurso. Dez anos depois, já formado em Direito, conquistou o cargo de delegado. Filho caçula de uma família nordestina e semianalfabeta, aprendeu desde cedo o valor da educação e seguiu em frente.
Porém, mesmo após vencer as dificuldades socioeconômicas, o delegado não escapou do preconceito racial, presente tanto dentro quanto fora das instituições. "Certa vez, uma pessoa veio à delegacia e, ao me ver, disse: 'Nossa, esperava que fosse um loiro de olhos azuis'. O racismo é um sistema que regula nossas relações sociais, econômicas e políticas. Para ela, aquele cargo não caberia a um negro".
Viana ressalta que ocupar um cargo de chefia sendo um homem negro tem um significado profundo. "A imagem de uma criança negra vendo alguém como eu à frente de uma delegacia transcende o posto em si. Estamos quebrando paradigmas sobre espaços embranquecidos, especialmente no cargo de delegado", afirma.
Disciplina e fé
A história da delegada Márcia Pessanha é parecida com a de Viana. Movida pelo desejo de justiça e pela indignação diante de desigualdades, encontrou na PCDF uma forma de transformar vidas de maneira concreta. A trajetória até o cargo de delegada foi marcada por esforço, renúncias e fé. "O maior desafio foi vencer as incertezas — e a maior conquista foi provar que é possível, sim, chegar lá com trabalho, disciplina e fé", relata.
Ser uma mulher negra dentro da corporação também trouxe desafios adicionais. Márcia reconhece que, muitas vezes, precisou provar sua competência mais de uma vez para ser levada a sério. Para ela, ocupar um cargo de liderança é uma forma de quebrar barreiras simbólicas e abrir caminhos para outras pessoas negras. "Cada vez que alguém vê uma mulher negra num cargo de chefia, percebe que é possível. Isso muda percepções e incentiva outros a acreditarem no próprio potencial."
Romper de estereótipos
Mas não só na PCDF há histórias de superação. A trajetória do tenente Henrique Silva, lotado no Batalhão de Trânsito da Polícia Militar do Distrito Federal, começou muito antes de sua entrada oficial na corporação. Filho de um alfaiate civil das Forças Armadas, ele cresceu ouvindo do pai que ocupar um espaço de destaque dentro das instituições militares seria uma forma de enfrentar as barreiras impostas à população negra. "Meu pai me fez acreditar que eu superaria todas as dificuldades e ocupasse um lugar de destaque", lembra.
Durante o percurso até tornar-se policial, Henrique enfrentou desafios marcados não apenas pela exigência intelectual dos concursos, mas também pela desigualdade racial que ainda atravessava as seleções. Dentro da corporação, o tenente afirma que a cor da pele não se tornou um impeditivo para sua ascensão, mas reconhece que sua postura chamou atenção dentro de uma turma ainda predominantemente branca. "Eles perceberam em mim garra, disciplina e vontade de vencer", recorda.
Ao longo de 30 anos de serviço, Henrique percorreu diversos níveis hierárquicos — de soldado a tenente — e enxerga essa trajetória como prova de que a representatividade negra dentro da segurança pública pode romper estereótipos históricos. Ele acredita que sua presença na corporação ajuda a quebrar preconceitos persistentes e a mostrar a jovens negros que uma carreira na área da segurança é possível. "Jamais desistam dos seus sonhos, seja por um comentário maldoso ou por discriminação", aconselha.
Continuação de um sonho
Engana-se quem pensa que essa história tão bonita termina em Henrique. Filha do tenente, a soldado Thais Gomes trilha os caminhos do pai. Foi exatamente a convivência em uma casa onde a farda fazia parte da rotina familiar que a inspirou a seguir carreira. Ela descreve o pai como um espelho de honestidade e justiça. "Ter um policial militar dentro de casa, admirado por todos, influenciou diretamente o meu caminho", afirma.
Como mulher negra, Thais afirma que sua presença na corporação vai além da função operacional. Para ela, ocupar esse espaço significa servir como referência para crianças e adolescentes que se enxergam nela. "Quando uma criança negra olha para mim fardada e percebe que eu sou jovem, mulher e negra, ela entende que esse lugar também pode ser dela", explica. Essa representatividade, segundo a policial, tem um impacto que ultrapassa os limites do quartel e alcança diretamente a comunidade.
Liderança inspiradora
Para além das polícias, no Corpo de Bombeiros (CBMDF), trajetórias como a do subtenente Carlos Reis se destacam. A história dele é marcada pela influência familiar e por escolhas que moldaram sua vida profissional desde muito cedo. Filho de um ex-militar da Força Aérea Brasileira, ele conta que o exemplo do pai foi decisivo para sua escolha pela carreira.
Aos 19 anos, ingressou no CBMDF como soldado combatente, após ser aprovado simultaneamente em outro concurso público. Os primeiros anos, segundo ele, foram marcados pela adaptação ao ambiente militar e pelo desafio de conciliar a rotina intensa de serviço com o início da faculdade. O subtenente também destaca a importância das referências que encontrou logo no início da carreira: “Quando ingressei, o comandante-geral e os dois comandantes operacionais eram negros. Vê-los em posições de liderança me inspirou profundamente”.
Hoje, ao olhar para sua própria presença dentro da corporação, Reis reconhece o peso da representatividade. Para ele, ser um bombeiro negro significa abrir caminhos e inspirar jovens que ainda não se veem nesses espaços. “É poder mostrar que crianças e jovens negros podem ocupar qualquer lugar — inclusive o Corpo de Bombeiros, uma instituição admirada pela sociedade”, afirma.
Ele acredita que, embora o CBMDF tenha avançado em diversidade, ainda há desafios, especialmente no aumento da presença de pessoas negras nos quadros de oficiais combatentes e complementares, como médicos, engenheiros e psicólogos. Para ele, a representatividade é essencial no combate ao preconceito e precisa estar sustentada por “inteligência, conhecimento, postura e profissionalismo”.
