Crônica da Cidade

A hora da estrela: 48 anos sem Clarice Lispector

No aniversário de sua morte, relembra-se a última dança de Clarice Lispector com a finitude — um tema que a acompanhou desde o nascimento, atravessou sua obra, moldou suas epifanias e ecoa até hoje na vida de quem a lê

Clarice Lispector: A descoberta do mundo -  (crédito: Cabelo Duro Produções/ Divulgação)
Clarice Lispector: A descoberta do mundo - (crédito: Cabelo Duro Produções/ Divulgação)

Um dia antes de completar 57 anos, Clarice Lispector morreu no hospital do INPS, no Rio de Janeiro, devido a complicações do câncer de ovário — descoberto pela escritora poucos meses antes de morrer. Nascida Chaya Pinkhasivna Lispector em 10 de dezembro de 1920, a ucraniana — naturalizada brasileira e autodenominada pernambucana por ter vindo ao Brasil ainda na barriga da mãe — despediu-se deste mundo no dia 9 de dezembro de 1977.

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Embora assustadora para muitos, a morte nunca foi temida por Clarice, mas era um tema frequente em seus textos de indagações metafísicas. Diferentemente do senso comum, a morte sempre flertava com a escritora — ou seria ao contrário? Desde antes de nascer, Clarice embalou danças perigosas com a morte. Sua mãe, Mania, sofria de sífilis — resultado de um suposto estupro durante a Guerra Civil Russa —, doença da qual foi dada ao bebê em seu ventre a responsabilidade de curar. Assim, Clarice nasceu em solo brasileiro como a esperança de dias melhores. 

Mania, porém, morreu quando a filha tinha 10 anos, deixando para Clarice um sentimento de culpa e uma missão de vida que nunca seria cumprida. A perda da figura materna aparentemente deixou um vazio na escritora que nunca cicatrizou — legado perpetuado principalmente por Macabéa, protagonista de A hora da estrela

O fim trágico da nordestina miserável e anônima no livro foi comentado por Clarice na entrevista concedida a Júlio Lerner, da TV Cultura, em 1977. A conversa também acompanhou um pacto sombrio entre os dois: a escritora pediu ao jornalista que só fosse exibida quando a morte a alcançasse — o que aconteceu 10 meses depois. Clarice morreu, mas as frases concedidas a Lerner continuam a impactar novas gerações de leitores e estudiosos. 

Questionada do porquê da morte trágica de Macabéa logo após um vislumbre de um futuro brilhante — talvez um reflexo da esperança que simbolizou para a própria mãe —, Clarice simplesmente respondeu que se imaginou no lugar da personagem, sendo atropelada em um dia comum, e achou a ideia engraçada. Mesmo aparentemente apática durante a entrevista, Clarice explicou enquanto acendia um cigarro após o outro: "Eu agora morri. Vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo."

Fossem contos, romances ou cartas, Clarice nunca deixava de divagar sobre a morte, ditando uma narrativa quase fúnebre através de suas personagens, retratando um olhar curioso para com a culpada por roubar sua mãe deste plano. "Ah, como queria morrer", escreveu em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. "Quando eu morrer, que eu não sei quando é… Será que tem Coca-Cola e Pepsi Cola ainda?", disse em entrevista a Affonso Romano de Sant'anna, em 1976, 14 meses antes de partir. 

À amiga Olga Borelli, a quem enviou um pedido de amizade em 1970 — união que a acompanhou pelo resto da vida — , escreveu: “Sou uma pessoa indecisa, insegura, sem rumo na vida, sem leme para me guiar: na verdade, não sei o que fazer comigo. Sou uma pessoa muito medrosa. (...). Você me quer como amiga mesmo assim? Se quer, não me diga que não lhe avisei. Não tenho qualidades, só tenho fragilidades. (…) A passagem da vida para a morte me assusta: é igual como passar do ódio, que tem um objetivo e é limitado, para o amor que é ilimitado. Quando eu morrer (modo de dizer) espero que você esteja perto.” Sete anos depois, a amiga estava presente nos últimos momentos de Clarice.

Parecia que a escritora pressentia a morte quase como uma velha amiga vindo buscá-la para um descanso eterno após tanto tempo neste mundo. E, como tudo em sua vida, resultou em epifanias e belas palavras. A felicidade clandestina que Clarice sentia ao habitar o mundo real e o das letras não poderia durar para sempre, e, por mais que a felicidade fosse existente, a clandestinidade de um ser que está sempre à procura de algo nunca seria totalmente preenchida. 

"Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa", dizia. "Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo", se contradizia. "Liberdade é pouco, o que eu desejo ainda não tem nome", lamentava sua limitação física. 

Agora, Clarice vive nas mentes de mulheres que encontram conforto em suas palavras, em academias que a exaltam, e até em frases publicadas em redes sociais por usuários que nem fazem ideia de sua grandiosidade. Fora das limitações do próprio corpo, a alma da escritora transita entre os mais diversos sentimentos, frequentemente nas cabeças mais aceleradas, encontrando abrigo nos que precisam de transcendência. Como explicou a Lerner, sua escrita não é para fazer sentido, mas sim para encontrar um eco dentro do leitor. Não adianta tentar analisá-la se suas palavras não se relacionam com o que existe de mais íntimo em seu âmago. 

Clarice convida-nos a confrontar nosso eu mais primitivo e complexo, a esmagar a barata e colocá-la na boca tal qual em A Paixão segundo G.H, a questionar a condição humana de anônimo com os olhares desviados de Macabéa, ao subverter o próprio destino imposto devido a uma repulsa inadequada como Ana no conto Amor, a apreciar a solidão de um domingo vazio sem nenhuma ligação relatado em Um Sopro de Vida, e, enfim, a depararmo-nos com as emoções mais desconfortáveis possíveis para, finalmente, irmos a encontro de nós mesmos em uma tarde qualquer. 

Do hebraico, 'Chaya' significa 'vida' ou 'viver'. A caçula de olhos enigmáticos de uma família de imigrantes, que nasceu para dar a vida e se apaixonou pela morte, vive em obras traduzidas em 32 idiomas, em livros que ocupam as prateleiras de 40 países. Há exatos 48 anos, Clarice deixava seu fardo: sua limitação física; para conseguir enfim viver como sempre quis: sem limites, livre e eterna. 

 


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postado em 09/12/2025 00:01 / atualizado em 09/12/2025 15:57
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