Música, fé e comoção

"Dói demais", diz prima de cabo assassinada dentro do quartel

Velório e enterro de Maria de Lourdes, cabo assassinada dentro do quartel, foram marcados por saudade e pedidos de justiça. Amigos e familiares lembraram da jovem como uma mulher doce e guerreira. Feminicida está preso

Militares do 1º Regimento de Cavalaria de Guarda acompanharam o cortejo até o fim, formando uma guarda de honra -  (crédito: Fotos: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Militares do 1º Regimento de Cavalaria de Guarda acompanharam o cortejo até o fim, formando uma guarda de honra - (crédito: Fotos: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

A manhã de ontem foi marcada por dor e despedidas. Familiares, amigos e colegas de farda de Maria de Lourdes Freire Matos, 25 anos, vítima de feminicídio, reuniram-se para o último adeus em duas cerimônias. A primeira, uma missa de corpo presente na Paróquia Nossa Senhora do Rosário, celebrou a memória da jovem cabo. Em seguida, o cortejo seguiu para o cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul, onde o sepultamento ocorreu sob forte comoção.

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Durante a celebração na Paróquia, o padre John Stegnicki, que também seguiu para o sepultamento, dirigiu palavras de conforto aos presentes. Ele ressaltou que a dor pela partida é natural, mas que a fé pode ajudar a atravessar o momento de perda. “Que São Paulo acalente o coração da família e esteja presente para dar forças a vocês e a todos nós”, disse o sacerdote, que também pediu que a comunidade se unissem em oração para que Maria de Lourdes fosse recebida com misericórdia e paz.

O sepultamento foi marcado pela música — paixão declarada de Maria. Amigos da Escola de Música de Brasília, da igreja e da comunidade levaram instrumentos e tocaram durante todo o trajeto até o túmulo. Ao som de cânticos católicos, familiares e colegas se emocionaram, ritmaram palmas e cantaram alto em homenagem à jovem.

 
 
 
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Militares do 1º Regimento de Cavalaria de Guarda (RCG) — onde Maria trabalhava e foi assassinada pelo soldado Kelvin Barros da Silva, feminicida confesso — conduziram o caixão da igreja ao carro funerário e, no cemitério, acompanharam o cortejo até o fim, formando uma guarda de honra. Três disparos cerimoniais foram executados em homenagem à jovem militar — parte da tradicional salva de tiros usada para marcar respeito e honra. No momento em que o caixão descia até a sepultura e familiares e amigos lançavam flores sobre ele, o toque de silêncio, executado por um corneteiro, ecoou pelo cemitério. A melodia solene, símbolo dos funerais militares, marcou o último tributo ao serviço prestado por Maria e emocionou familiares e colegas de farda.

A mãe seguiu no carro do cemitério, enquanto o pai e as duas irmãs caminhavam logo atrás. Após a cerimônia, balões brancos foram soltos ao céu sob uma salva de palmas. 

Saudade

Prima de Maria de Lourdes, Flávia Lacerda descreve a jovem cabo como alguém de “doçura ímpar”, criada em um ambiente simples e afetuoso. Segundo ela, Malu — como era chamada pela família — cresceu em uma chácara, em meio à rotina religiosa e aos estudos, e mantinha um temperamento tranquilo, sereno e pouco habituado a conflitos. “Ela era muito inocente ainda, não sabia ser reativa. A vida dela era a igreja, os estudos e a paixão pelo saxofone”, afirmou. “Ela até falava que quem se relaciona com músico teria que entender que a música é o primeiro amor delas, mas nem isso ela teve a oportunidade de fazer. Não se relacionou, não se apaixonou”, completou.

Flávia também contesta a narrativa do investigado, que afirma ter agido em legítima defesa. “Se houvesse qualquer coisa, ela teria contado às irmãs. Nunca houve nada”, destacou. Ela ressaltou que a vítima era dedicada aos estudos, havia entrado recentemente no Exército para seguir a carreira musical e acordava de madrugada para conseguir chegar ao trabalho a partir da zona rural onde vivia. “Dói demais saber que alguém tão calma e pacata foi atacada com tanta voracidade”, lamentou.

A prima descreve o ataque como brutal e incompreensível, destacando não só a violência física, mas também a tentativa de manchar a memória da jovem. “Ele matou ela várias vezes: tirando a vida, tirando a possibilidade de vermos o rosto dela, por conta do fogo, e criando uma imagem que não era a dela, inventando um relacionamento que nunca existiu.” 

Justiça

Para a vizinha da família, Francisca de Fátima, o momento é de muita dor e revolta. Ela, que viu Maria de Lourdes crescer, estava profundamente emocionada na cerimônia. “Lurdinha foi criada na igreja com todo respeito. Sempre foi uma menina maravilhosa, muito trabalhadora, conquistou tudo com muita dificuldade na vida, muito guerreira”, disse, com lágrimas nos olhos. “Eu só peço a Deus que tenha muita misericórdia da família para suportar tamanha dor. Não é fácil”, acrescentou. 

Jaqueline Maia é da mesma comunidade que Maria frequentava desde a infância. Assim como Francisca, também estava muito abalada na solenidade: “Ela era essa pessoa especial mesmo, que todos falam. Muito dedicada à família, aos pais”. 

Em relação ao crime, é de grande indignação para Jaqueline o que tem sido abordado na mídia. “É uma injustiça. Queria que falassem a verdade sobre ela, sobre quem ela era. Lurdinha nunca se relacionou com este homem, é importante reforçar isso”, destacou, com revolta. “Como mãe, peço que Deus conforte o coração desses pais”, concluiu.

Indignado com a tragédia, Gustavo Antunes, amigo da família, lamentou o crime ocorrido dentro de uma unidade militar. “Quando fomos ao local, uma mulher nos disse que algo assim poderia acontecer em ‘qualquer lugar’. Mas não foi em qualquer lugar. Ela foi assassinada em um quartel do Exército. Isso não poderia acontecer”, afirmou.

O caso

O feminicídio ocorreu na tarde da última sexta-feira, próximo às 16h, no 1º Regimento de Cavalaria de Guarda (RCG). A jovem foi esfaqueada duas vezes no pescoço. Após o crime, Kelvin Barros ateou fogo no local e fugiu em direção ao Paranoá. Ele foi preso pouco tempo depois por agentes da 2ª Delegacia de Polícia (Asa Norte), responsável pelo caso. Desde então, está detido no Batalhão de Polícia do Exército de Brasília.

Após ser preso, Kelvin negou o crime e, em seguida, confessou. De acordo com o delegado-chefe da 2ª DP, Paulo Noritika, ele apresentou cinco versões sucessivas e contraditórias.

Há dois inquéritos em andamento, um na Polícia Civil do DF e outro na Justiça Militar da União (JMU). Em ambos, Kelvin responde por feminicídio, incêndio, furto e fraude processual. O caso aguarda manifestação das partes e a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para saber em qual âmbito da Justiça será julgado.

De acordo com o delegado responsável pelo caso, a motivação não foi militar. “Tudo indica que teria sido passional, portanto, julgado na Justiça Comum”, afirmou.

Onde pedir ajuda

» Ligue 190: Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF). Uma viatura é enviada imediatamente até o local. Serviço disponível 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita.

» Ligue 197: Polícia Civil do DF (PCDF).

E-mail: denuncia197@pcdf.df.gov.br

WhatsApp: (61) 98626-1197

Site: https://www.pcdf.df.gov.br/servicos/197/violencia-contra-mulher

» Ligue 180: Central de Atendimento à Mulher, canal da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes, além de reclamações, sugestões e elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento. A denúncia pode ser feita de forma anônima, 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita.

» Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam): funcionamento 24 horas por dia, todos os dias.

Deam 1: previne, reprime e investiga os crimes praticados contra a mulher em todo o DF, à exceção de Ceilândia.

Endereço: EQS 204/205, Asa Sul.

Telefones: 3207-6172 / 3207-6195 / 98362-5673

E-mail: deam_sa@pcdf.df.gov.br

Deam 2: previne, reprime e investiga crimes contra a mulher praticados em Ceilândia.

Endereço: St. M QNM 2, Ceilândia

Telefones: 3207-7391 / 3207-7408 / 3207-7438

  • Familiares, amigos e colegas estiveram no cortejo no Campo da Esperança, na Asa Sul
    Familiares, amigos e colegas estiveram no cortejo no Campo da Esperança, na Asa Sul Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • O enterro teve honras militares, com tiros disparados em homenagem à jovem militar
    O enterro teve honras militares, com tiros disparados em homenagem à jovem militar Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • A jovem era musicista do 1º Regimento de Cavalaria  de Guarda e estava no Exército há cinco meses
    A jovem era musicista do 1º Regimento de Cavalaria de Guarda e estava no Exército há cinco meses Foto: Reprodução/Redes Sociais
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postado em 12/12/2025 05:00
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