
O estupro e o espancamento de uma mulher de 47 anos em situação de rua, crime que chocou o Distrito Federal no último sábado, expôs a complexa realidade vivida na Asa Norte e em outros pontos do DF, onde a vulnerabilidade social convive com episódios de violência que impactam moradores e frequentadores da região. O ataque ocorreu sob o pilotis de um prédio residencial da 411 Norte e motivou uma operação do Governo do Distrito Federal (GDF) voltada à população em situação de rua. O agressor, Rafael Silva Lima, de 19 anos, que também vivia nessa condição, foi localizado em uma invasão na 611 Norte, próxima à Universidade de Brasília (UnB), área incluída nas ações de acolhimento iniciadas no domingo.
Na operação, concluída ontem, foram realizados 105 atendimentos pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes), removidas 35 estruturas precárias de lona e madeira pelo DF Legal e utilizados 13 caminhões do Serviço de Limpeza Urbana (SLU) para o recolhimento de inservíveis. Segundo a Sedes, nenhum dos atendidos aceitou acolhimento. Durante a ação, parte da população abordada contestou a atuação das secretarias e dos órgãos de segurança envolvidos e permaneceu no local, mesmo após os atendimentos e o desmonte das estruturas, com registros de comportamento hostil em relação às equipes e aos transeuntes.
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O comandante do 3º Batalhão da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), tenente-coronel Michello Bueno, afirmou que a operação realizada na área onde o agressor foi localizado já estava prevista, diante do histórico de violência e da concentração de crimes no local. "Aquela é a maior invasão da Asa Norte e concentra muitos dos crimes da região. A operação estava marcada para domingo, mas desta vez houve reforço no contingente e foi retirada toda a invasão, que é um local insalubre, onde, inclusive, havia crianças", explicou.
Segundo ele, a PMDF tem intensificado o policiamento após o caso. "Sabíamos que eles tentariam voltar aos poucos para a ocupação. Por isso, demos continuidade à ação e, se for preciso, vamos retornar. Esse crime foi um caso isolado, mas não pode acontecer de forma nenhuma, com ninguém", destacou.
Insegurança
Para os moradores e comerciantes da região, andar sozinho na rua não é uma opção segura, principalmente no período da noite. Sem se identificar, moradores da SQN 403 alegam que a criminalidade preocupa. "A gente tem medo de andar na rua. Aqui em casa, andamos todas com spray de pimenta, para nos proteger", contou uma mulher.
"Já aconteceu de uma pessoa em situação de rua tentar me pegar pelo braço e mostrar as partes íntimas dele. Esse costuma ficar embaixo das janelas das mulheres e assediá-las", comentou outra moradora.
Um comerciante lembrou casos de violência. "Já presenciei vários assaltos aqui. Tem muitos moradores de rua, alguns são usuários de drogas e praticam furtos e assaltos", assinalou.
O professor de direito penal do Ibmec Brasília Téndey Moreira explica que a sensação de insegurança associada a esse cenário decorre da percepção de que existem grupos fora do padrão de legalidade esperado. Ele alerta, no entanto, para o risco de generalizações. "Nem todas as pessoas em situação de rua são perigosas ou criminosas. A existência de uma ou mais pessoas em situação de rua envolvidas com o crime não pode ser generalizada a ponto de colocar todo o grupo em um etiquetamento de perigosidade", frisou.
"O poder público precisa planejar adequadamente políticas de inclusão, considerando que a população em situação de rua não é homogênea. É preciso identificar as necessidades de cada indivíduo, realizar acolhimentos adequados e, ao mesmo tempo, enfrentar os fatores que ampliam a sensação de insegurança", completou.
De acordo com o 2º Censo Distrital da População em Situação de Rua de 2025, elaborado pelo Instituto de Pesquisa do DF (IPEDF), o número de pessoas vivendo nessa condição aumentou 19,85% nos últimos três anos, passando de 2.938, em 2022, para 3.521, em 2025. O Plano Piloto concentra a maior parcela desse público, com 897 pessoas (25,5%), seguido por Ceilândia (719; 20,4%) e Taguatinga (307; 8,7%).
Entre os adultos entrevistados, 86% relataram o uso de alguma substância psicoativa, índice superior ao registrado antes de irem para as ruas (77,5%). O álcool lidera o consumo (74,4%), seguido por cigarro e tabaco (67,6%), enquanto o uso de crack cresceu de 29,5% para 37%.
Para o doutor em direito e mestre em antropologia social Welliton Caixeta Maciel, os dados ajudam a explicar a complexidade do fenômeno e reforçam a necessidade de respostas que vão além da lógica policial. "Todos os órgãos de segurança pública, observadas suas respectivas competências e seus âmbitos de atuação, devem oferecer formação, treinamento e capacitação continuada de maneira a habilitar seus membros e sensibilizá-los para o atendimento de ocorrências com perspectiva humanizada, pautada nos direitos humanos", destacou.
O especialista completou que a polícia tem limites claros de atuação e que a responsabilidade estrutural recai sobre políticas de inclusão social, saúde mental e assistência. "A atuação policial, nos casos envolvendo a população em situação de rua, deve se ater estritamente aos aspectos de segurança pública", pontuou, acrescentando que "somente a segurança pública não é capaz de resolver tais casos". Para ele, é indispensável fortalecer a rede de políticas públicas. "É fundamental termos Centros de Referência para o atendimento de pessoas em situação de rua (Centros-Pop e Creas) bem estruturados, além da estruturação de consultórios na rua e do fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial."
Acolhimento
Ao longo de 2025, a DF Legal fez 419 operações de acolhimento no Distrito Federal, que atenderam 2.847 pessoas e resultaram na remoção de 1.661 estruturas precárias de lona e madeira, necessitando de 643 caminhões para remover os entulhos.
As ações são coordenadas pela Casa Civil e envolvem, além da DF Legal e a Sedes, as secretarias de Saúde (SES-DF), Educação (SEEDF), Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Renda (Sedet-DF), Segurança Pública (SSP-DF), e Justiça e Cidadania (Sejus-DF), além do Serviço de Limpeza Urbana (SLU), da Novacap, da Codhab, do Detran-DF, da Polícia Militar (PMDF), da Polícia Civil (PCDF), do Corpo de Bombeiros Militar (CBMDF) e do Conselho Tutelar.
Durante as abordagens, as pessoas em situação de rua recebem a oferta de serviços nas áreas de saúde, educação e assistência social, além de orientações sobre cuidados com animais domésticos e acesso a benefícios, como o deslocamento interestadual. Também é disponibilizado um auxílio excepcional de R$ 600 para aqueles que não têm condições de arcar com aluguel. O atendimento inclui, ainda, vagas em unidades de acolhimento, participação em programas de qualificação profissional, como o RenovaDF, e cadastro para unidades habitacionais.
Após a conclusão do atendimento social, a DF Legal realiza o desmonte das estruturas utilizadas pelas pessoas em situação de rua e providencia o transporte dos pertences para um local regular, indicado pelo ocupante. Em último caso, os objetos pessoais são encaminhados ao depósito do órgão, no SIA Trecho 04, Lotes 1.380/1.420, onde podem ser retirados em até 60 dias, sem custo para o responsável.
"Quando falamos da população de rua, é preciso ter em mente que, para cada 100 histórias, são 100 soluções diferentes. Umas precisam de acolhimento, outras de capacitação, emprego, outras de moradia, benefícios", firsou a secretária de Desenvolvimento Social, Ana Paula Marra. De acordo com ela, o GDF tem trabalhado para garantir o mínimo a essas pessoas, de modo que elas conquistem suas autonomias e deixem as ruas. "Um exemplo de sucesso é o Hotel Social, que inauguramos neste ano, e já conta com mais de 24 mil pernoites. Quando entregamos oportunidades e dignidade, reduzimos mazelas e evitamos consequências piores para essas pessoas e toda a sociedade", completou.
Barbárie no pilotis
Na madrugada da última sexta-feira, uma mulher de 47 anos em situação de rua foi estuprada e espancada sob o pilotis de um prédio residencial da 411 Norte. Ferida, a vítima conseguiu se arrastar até a área comercial da quadra, onde foi socorrida por populares. A mulher foi atendida no Hospital Regional da Asa Norte (Hran) e depois transferida para o Hospital de Base, até ser liberada na tarde de ontem. O ataque foi flagrado por câmeras de segurança do prédio. As imagens, registradas à 1h09, mostram o agressor e a vítima lado a lado, antes do ataque. Com a prisão preventiva decretada, o suspeito foi transferido, ontem, para o Complexo Penitenciário da Papuda. Ele responde por estupro consumado e tentativa de feminicídio. Pelos delitos, pode pegar mais de 20 anos de prisão. O inquérito entra, agora, na fase final e será encaminhado ao Ministério Público, que oferecerá ou não a denúncia.
Memória
- Em 19 de fevereiro de 2025, uma idosa foi agredida por um homem em situação de rua na SCN 203, por volta das 17h30, enquanto retornava para casa após se exercitar em uma academia da região. O ataque ocorreu na faixa de pedestres que liga a área comercial à SQN 203, onde a vítima mora. Segundo a PMDF, o agressor, de 38 anos, foi identificado no local. A mulher sofreu fratura no nariz e foi socorrida pelo Samu, sendo levada ao Hospital de Base. O CBMDF informou que ela apresentava sangramento intenso, inchaço no rosto e chegou a vomitar sangue.
- Em 25 de setembro de 2025, três homens foram baleados na região da 611 Norte, ao lado da Colina da Universidade de Brasília (UnB), durante um ataque a tiros. Ao menos 11 disparos foram efetuados. As vítimas foram socorridas pelo CBMDF e encaminhadas ao Hospital de Base. A polícia apurou que o alvo seria um morador da invasão, atingido no tornozelo. Um casal de Planaltina também foi ferido — a mulher no antebraço e o companheiro com nove tiros. A motivação e a autoria do crime não haviam sido confirmadas à época, mas a principal suspeita era de um acerto de contas ligado a drogas.
- Em 21 de dezembro, um homem em situação de rua foi encontrado morto com 14 facadas dentro do Parque da Cidade, por volta das 5h30, próximo ao kartódromo. As investigações indicam que o autor do homicídio também seria uma pessoa em situação de rua. Até a publicação desta matéria, ninguém havia sido preso.
Operação Natal Seguro
"O Setor Comercial Sul (SCS) se tornou um ponto para usuários de drogas", destacou o secretário de Segurança Pública, Sandro Avelar, durante a Operação SCS Integrado, realizada ontem. A ação, conduzida pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) e pela Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), tem como objetivo o enfrentamento de crimes patrimoniais e o fortalecimento da segurança em uma das regiões mais estratégicas e movimentadas do centro de Brasília.
A iniciativa marcou o início da atuação operacional da Unidade Integrada de Segurança Pública (UISP) no território. Durante a operação, a PMDF, por meio do 1º Batalhão, passou a utilizar a unidade como base operacional permanente no SCS. "Queremos, com o policiamento, mas também com a Prevenção ao Crime por Meio do Design Ambiental (CPTED), com iluminação e pavimentação, inibir a atuação dessas pessoas que cometem crimes aqui", afirmou o secretário.Além disso, serão empregadas tecnologias para garantir a segurança, como a instalação de câmeras com reconhecimento facial.
Diante dos crimes registrados no último fim de semana — um homicídio no Parque da Cidade e um caso de estupro seguido de agressão na Asa Norte — Avelar enfatizou que o foco atual é justamente o enfrentamento desse problema. "É um número que tem nos preocupado: o aumento de homicídios entre a população em situação de rua. Infelizmente, esse quantitativo tem crescido muito nos últimos anos. Em ambas as ocorrências, os envolvidos eram moradores de rua", relatou.
Para enfrentar os crimes envolvendo essa parcela mais vulnerável da população, o secretário destacou a importância do trabalho conjunto entre as corporações. "É uma informação importante que trago ao conhecimento da população e dos órgãos responsáveis pela persecução criminal, para que nos unamos e façamos um grande esforço no uso desses dados, que refletem a realidade", explicou.
Em relação aos crimes mais recorrentes na região central — como furto de veículos e roubo a transeuntes — a coronel Ana Paula comentou o papel da Polícia Militar no combate às ocorrências. "Atuamos constantemente com a área de inteligência para detectar essas situações. Para isso, utilizamos meios como a tecnologia, na qual a Secretaria de Segurança tem investido de forma significativa. A unidade integrada de segurança auxiliará nos monitoramentos, especialmente desse tipo de crime, mais visível nesta região", ressaltou.
A coronel acrescentou, ainda, que a ação ocorre em um momento estratégico, levando em consideração o chamado "saídão" — período em que detentos do regime semiaberto podem sair temporariamente da prisão em datas comemorativas. "Sabemos que o 'saídão' é válido, pois é um momento em que muitos querem estar com seus familiares. No entanto, nem todos utilizam esse período para um momento natalino de renovação e transformação. Por isso, intensificamos o policiamento", explicou.
*Colaborou Walkyria Lagaci

Cidades DF
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