Embora haja um grande mudança comportamental na sociedade brasileira nos últimos anos, com maior aceitação da diversidade e conquista por direitos da comunidade LGBTQIAPN , pessoas transgêneros encontram dificuldades no mercado de trabalho. Dados do relatório Identidade de Gênero e Orientação Sexual no Distrito Federal, lançado pelo Governo do Distrito Federal (GDF) em 2023 (o mais recente segundo a atual gestão), revelam que o tipo de vínculo trabalhista mais comum entre profissionais que se identificam com um sexo diferente do biológico é a remuneração por "outras formas", categoria que reúne 39,3% das respostas. A taxa de pessoas trans com vínculo estatutário — o mais estável entre os servidores públicos — é de apenas 9,8%, muito abaixo dos 33,8% registrados na categoria "LGB". A renda individual também evidencia desigualdades profundas.
A maior parte das pessoas trans (25,3%) vive com 1 a 2 salários-mínimos, enquanto quase 20% não chegam a um salário-mínimo. A renda domiciliar, embora mais distribuída entre faixas intermediárias, também aponta diferença clara: o maior grupo entre pessoas trans vive em casas com renda total entre dois e cinco salários-mínimos (28%), distante da alta concentração de renda observada entre pessoas LGB , onde 37,2% das residências ultrapassam 10 salários-mínimos.
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Lorraine Macedo conta que, ao longo dos anos, buscou espaço em diferentes setores, passando por padarias, lanchonetes e fast-foods, onde encarou uma sequência de rejeições. Hoje, ela trabalha no Instituto Sociocultural Força Trans, dedicado exclusivamente ao acolhimento e fortalecimento de mulheres trans. "Vim de uma época em que transexuais não tinham opção de trabalho. Se fazem de educados, mas você sente que não vão te chamar. É muito frustrante e desconfortável passar por isso", relata.
Hoje, Lorraine vê avanços recentes em setores específicos do DF. Pelo Instituto Força Trans, ela tem acompanhado contratações em órgãos federais. Mesmo assim, ela critica a falta de efetividade de políticas públicas. "Muitos assistentes sociais não sabem tratar pessoas trans. Não compreendem a vulnerabilidade. É preciso capacitar pessoas para trabalhar com mulheres trans e homens trans", defende.
Para a doutora em administração e pesquisadora em diversidade e gestão de pessoas Bárbara Novaes Medeiros, professora da Universidade de Brasília (UnB), a baixa absorção dessa população não é um problema exclusivo do DF, mas parte de um fenômeno estrutural. Parte crucial do problema é, justamente, a defasagem nos dados acerca dessa parcela da população. "As pessoas trans são silenciadas no DF. Se não há dados, não há políticas sociais", resume.
Bárbara aponta também que muitas organizações ainda não estão preparadas para afirmar a diversidade de forma efetiva. "As empresas higienizam esteticamente os corpos, preocupam-se com a imagem e dão preferência a pessoas cis-heteronormativas. Quando abrem brechas, instrumentalizam as existências trans apenas para fazer propaganda de inclusão, mas relegam essas pessoas ao subemprego".
A especialista defende ações afirmativas mais amplas por parte do GDF, que atuem tanto na entrada quanto na permanência dessas pessoas no trabalho. Entre as medidas, ela cita cursos de diversidade e prevenção à violência, capacitação profissional gratuita, incentivo ao empreendedorismo e criação de um portal de empregabilidade voltado à população LGBTQIA . "Também é urgente fortalecer políticas intersetoriais e garantir representatividade trans nas decisões públicas", aponta.
Acolhimento
Marcelly Pereira também enfrentou desafios intensos até conquistar o primeiro emprego. "Achava que em nenhum lugar a gente ia ser bem recebida, porque na minha cabeça sempre veio que trans tinha que trabalhar na rua", lembra. Ao longo da experiência profissional, porém, ela enfrentou episódios de transfobia por parte de colegas e clientes, incluindo tratamento no masculino e comentários depreciativos. "Qualquer palavra assim machuca muito", diz.
Ela destaca que a maior dificuldade para pessoas trans se manterem no mercado de trabalho não está nas tarefas, mas nas relações humanas. A contratação pela rede de panificadoras Pão Dourado mudou essa percepção. Ali, ela começou como atendente e, hoje, atua como auxiliar de cozinha — caminho que, afirma, pretende seguir até se tornar a primeira chef de cozinha trans da empresa. Mesmo com os desafios, Marcelly celebra o orgulho de trabalhar em um ambiente frequentado por públicos diversos e reconhece a importância de ocupar espaços onde antes não imaginava chegar. "Acho que a sociedade deveria olhar mais para a nossa capacidade. Se eu consigo, outras também conseguem", encoraja.
A Pão Dourado tem buscado estruturar uma política permanente de inclusão para pessoas trans. A empresa firmou uma parceria com a Casa Rosa DF, atualmente em implementação. "Entendemos que a implementação deveria ser gradual, porque ainda temos colaboradores que nunca tiveram contato direto com pessoas trans e precisam de mais informação e preparação", argumenta o gerente Raphael Pacheco.
Por isso, a primeira etapa foi o letramento das equipes sobre identidade de gênero, orientação sexual e conceitos básicos da sigla LGBTQIAPN . Além da formação inicial, a empresa adotou mecanismos de proteção e suporte. As equipes de Recursos Humanos, gerência e departamento pessoal também foram capacitadas para acolher e apoiar colaboradores que enfrentem discriminação, assédio ou insegurança.
Pedro Matias, coordenador da Casa Rosa, conta que tem notado um aumento expressivo na procura por apoio relacionado a emprego e renda. Ele ressalta que, para muitas pessoas trans, as oportunidades ficam restritas a empregos sem perspectiva de crescimento, trabalhos autônomos restritos a determinados setores. "Falta compreensão sobre identidade de gênero, e isso gera violência, discriminação e abandono."
O coordenador avalia que o Distrito Federal ainda não possui políticas públicas suficientes para atender a população trans. "O DF não tem políticas específicas que deem conta dessa vulnerabilização. Falta um serviço de acolhimento exclusivo para pessoas trans", afirma. Segundo ele, há lacunas importantes em áreas como saúde, segurança e assistência social. "Temos muito a avançar nesses três eixos."
Políticas públicas
A Coordenação de Políticas de Proteção e Promoção de Direitos e Cidadania LGBT (COORLGBT), vinculada ao Governo do Distrito Federal, destacou, em nota, que implementa medidas para ampliar o reconhecimento e a proteção dessa população na administração pública. Entre as ações voltadas à inclusão laboral, o governo citou a aprovação do Projeto de Lei nº 960/2020, que estabelece reserva mínima de 5% das vagas para pessoas trans e travestis em empresas privadas que recebem incentivos fiscais ou mantêm convênios com o poder público.
O GDF afirma ainda desenvolver projetos de formação e qualificação profissional. A nota aponta, por exemplo, que a Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap-DF) oferece cursos de crochê e tricô para mulheres trans e travestis no sistema prisional, com foco na reinserção social. Além disso, o governo destaca políticas já existentes de reconhecimento da identidade de gênero. "O Decreto Distrital nº 33.779/2012 garante o direito ao uso do nome social em órgãos e repartições públicas do DF", diz o texto.
A COORLGBT também listou iniciativas próprias voltadas ao fortalecimento de direitos. Entre elas, o programa de CNH Social voltado a pessoas trans, o projeto "Cidadania Não Binária", palestras de sensibilização, ações de capacitação e eventos como a IV Conferência Distrital LGBTQIA . O governo menciona ainda ações itinerantes, como o Mercado Borboleta e o Festival Maria Maria, que ofertam orientação jurídica, atendimento psicanalítico, elaboração de currículos e serviços de saúde para a comunidade LGBTQIA . "Visamos ao fortalecimento institucional e à garantia de atendimento humanizado", afirmou a coordenação.
Percentual de pessoas LGB+ e transgênero por tipo de vínculo de trabalho
Trans
- É servidor/a/ e público/a/e estatutário/a/e (%) - 9,8
- É remunerado por emprego público via com CLT (%) - 6,6
- É remunerado por emprego em comissão (%) - 6,6
- Tem contrato de trabalho por CLT (%) - 13,1
- Recebe remuneração via CNPJ (%) - 13,1
- Recebe remuneração de outras formas (%) - 39,3
- Prefiro não responder (%) - 11,5
Cis-Hetero
- É servidor/a/ e público/a/e estatutário/a/e (%) - 33,3
É remunerado por emprego público via com CLT (%) - 0 - É remunerado por emprego em comissão (%) - 3
- Tem contrato de trabalho por CLT (%) - 15,2
- Recebe remuneração via CNPJ (%) - 9,1
- Recebe remuneração de outras formas (%) - 30,3
- Prefiro não responder (%) - 9,1
LGB+
- É servidor/a/ e público/a/e estatutário/a/e (%) - 33,8
É remunerado por emprego público via com CLT (%) - 10,6 - É remunerado por emprego em comissão (%) - 4,5
- Tem contrato de trabalho por CLT (%) - 19,6
- Recebe remuneração via CNPJ (%) - 9,5
- Recebe remuneração de outras formas (%) - 20,3
- Prefiro não responder (%) - 1,8
Fonte: GDF
Percentual das pessoas transgênero por local de moradia
border="0"Fonte: GDF
