literatura

Crônica da cidade: Livro é abrigo

A saudade do livro como objeto, do peso exato nas mãos, do virar de páginas quase ritualístico, das anotações à margem, do marcador improvisado. Existe algo de profundamente íntimo em uma obra impressa que carrega marcas de uso, orelhas dobradas, dedicatórias. É algo que resiste ao efêmero.

Nasci em 29 de outubro. Desde criança, eu soube que era uma data especial, em que se comemora o dia do livro. E eu, ainda menino, desenvolvi um enorme fascínio por eles. Primeiro, foram as revistinhas em quadrinhos, os gibis, que não deixam de pertencer, de certa forma, a essa categoria. Depois, veio a literatura de fato e direito. Ah, a Coleção Vaga-lume... Essa foi a minha primeira grande imersão no universo literário da ficção. Foi quando segui o coelho apressado que me arrastou ao País das Maravilhas: a biblioteca pública da minha cidade, a mineira Lavras.

Foi ali, entre estantes altas e o silêncio respeitoso da biblioteca pública, que eu entendi que a leitura não era apenas um passatempo, mas um destino. Cada livro retirado era uma espécie de pacto, em que eu levava uma história para casa e, sem perceber, deixava um pouco de mim em troca. Lia com voracidade, como quem tenta dar conta do mundo antes que ele escape. Lia para me reconhecer e, principalmente, para inventar outros jeitos de existir.

Em algum momento — e eu não sei precisar quando —, a leitura já não bastava. As histórias começaram a se acumular dentro de mim com uma urgência própria, pedindo passagem. Escrever surgiu menos como escolha e mais como consequência natural daquele menino que passava horas folheando páginas emprestadas. Eu queria contar também, criar personagens, cenários, conflitos. Queria devolver ao mundo aquilo que os livros tinham feito comigo.

Meu primeiro livro veio em 2008, Os filhos da revolução, impresso, palpável, com capa, lombada e cheiro de tinta fresca. Como foi incrível a sensação de segurá-lo pela primeira vez! Havia ali um misto de espanto e pertencimento: eu tinha atravessado a fronteira invisível que separa o leitor do escritor. Ver meu nome na capa era menos sobre vaidade e mais sobre confirmação. Eu podia.

Depois, vieram outros livros, já em formato digital. O tempo mudou, as plataformas se multiplicaram e, com elas, as possibilidades. O digital democratizou o acesso, encurtou caminhos, abriu portas antes impensáveis para escritores como eu. Foi nesse formato que nasceram A orquídea e o beija-flor e Ainda sou mar, obras que, agora, encontram leitores em diferentes lugares, atravessando telas e fronteiras com a facilidade de um clique. Sou grato a isso — afinal, mesmo aos 46 anos, sou um filho desse tempo.

Ainda assim, confesso: existe uma saudade que o digital não apaga. A saudade do livro como objeto, do peso exato nas mãos, do virar de páginas quase ritualístico, das anotações à margem, do marcador improvisado. Existe algo de profundamente íntimo em uma obra impressa que carrega marcas de uso, orelhas dobradas, dedicatórias. É algo que resiste ao efêmero.

Talvez, por isso, eu ainda sinta essa necessidade quase teimosa de ter um novo livro físico. Não por nostalgia vazia, mas por entender que algumas histórias pedem corpo. Com o papel, vem a permanência. O digital é rápido, funcional e necessário. Mas o livro — assim como este jornal impresso, que eu amo fazer nascer — é abrigo. 

No fundo, continuo sendo aquele menino da biblioteca de Lavras, encantado diante das estantes, acreditando que os livros — impressos ou não — têm o poder de nos salvar. Mas sigo sonhando com o dia em que abrirei novamente uma caixa, retirarei de dentro dela um novo exemplar e, mais uma vez, sentirei que cheguei.

 


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