ANO-NOVO

O perigo invisível dos fogos de artifício; veja como se proteger

Barulho intenso, nesta época do ano, afeta animais, pessoas neurodivergentes e idosos, reacendendo o debate sobre o uso de alternativas de baixo ruído

O que para muitos representa um espetáculo de luzes, celebração e alegria, para outros se transforma em um cenário de medo, dor e sofrimento silencioso. Durante as festas de fim de ano, o barulho intenso e imprevisível dos fogos de artifício invade casas e corpos, afetando, diretamente, pessoas com sensibilidade auditiva. Crianças autistas, idosos, bebês e animais vivem momentos de pânico real, que vão muito além de um simples incômodo. 

No Distrito Federal, a Lei Distrital nº 6.647/2020, regulamentada pelo Decreto nº 44.189/2023, estabelece regras para a comercialização e o uso de fogos de artifício, com o objetivo de reduzir os impactos do ruído na saúde humana e no bem-estar de animais domésticos e silvestres, além de proteger grupos mais sensíveis ao som.

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Diante desse cenário, o empresário Roberto Batata, responsável por uma das lojas mais tradicionais de fogos de artifício de Brasília, a Fogos do Batata, afirma que a adaptação ao uso de fogos de baixo ruído foi uma resposta direta às mudanças na legislação e à crescente demanda por alternativas menos agressivas. “Quando começaram a surgir as leis, a gente precisou se adequar para continuar vendendo. Foi por volta de 2020 que passamos a trabalhar com opções de baixo ruído”, explica. Segundo ele, o apelo está no visual, não no barulho. “O estampido não oferece alegria nenhuma. O que as pessoas querem são os brilhos, com intensidade abaixo de 100 decibéis”, reforçou. 

Pânico

A estudante Maria Clara Souza, 22 anos, conta que o medo de Doki, seu cachorro de 8 anos, começou ainda filhote, nos primeiros contatos com barulhos intensos. “A gente pegou ele com 45 dias e, na primeira virada de ano, quando ele tinha seis ou sete meses, ele já ficou muito assustado. Depois veio Copa, vuvuzela, muito barulho, e desde pequenininho ele sofre com isso”, relata. Segundo ela, a reação do animal é sempre muito intensa. “Ele fica tremendo, ofegante, chega a ficar exausto. Às vezes, arranha a gente pedindo colo, não consegue ficar longe”, explica.

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Um dos episódios mais marcantes ocorreu em uma virada de ano em que a família ainda não sabia como ajudá-lo. “Tinha muito mais fogos, era bem mais barulhento, e ele ficou tremendo por muito tempo, mesmo depois que acabou”, lembra. Com o tempo, a família passou a adotar estratégias para reduzir o sofrimento do animal. “A gente coloca vídeos de fogos bem baixinho e vai aumentando aos poucos, horas antes. Ficar perto, fazer carinho e não deixar ele sozinho também faz muita diferença”, relata.

O desespero também é vivido na casa da médica veterinária Giovana Rabelo, 22 anos. Tutora de Nala, uma cadela de 4 anos, ela diz que a reação é imediata. “Ela fica muito assustada, ofegante e inquieta. Se está fora de casa, tenta entrar com força”, conta. Segundo Giovana, o que mais tem funcionado é respeitar o tempo do animal e oferecer companhia. “Deixar ela escolher um canto e ficar junto, dando carinho quando pede, ajuda bastante”, reforça. 

O veterinário Alexandre Rossi alerta que os fogos de artifício representam um risco sério para cães e gatos por provocarem medo extremo e respostas fisiológicas intensas. “O barulho deixa os animais extremamente ansiosos, com liberação elevada de cortisol e adrenalina, o que pode gerar traumas duradouros”, explica. Segundo ele, o pânico vivido na noite da virada pode desencadear fobias a outros sons, como tempestades e vento forte, além de aumentar o risco de acidentes. “Eles fogem, caem, se machucam e podem até ser atropelados. Há casos de animais que se enforcam presos a coleiras ou correntes”, alerta.

Rossi destaca ainda que as reações físicas são comuns e preocupantes. “Os cães ficam ofegantes, mesmo sem calor, porque o corpo entra em modo de fuga”, afirma. Em animais com doenças pré-existentes ou em raças mais sensíveis, o estresse pode ser ainda mais grave. 

Sobrecarga

O impacto dos fogos de artifício vai muito além do incômodo para o estudante Henrique Caichiolo, 20 anos, do espectro autista. “O meu corpo reage como se fosse dor. Eu me curvo, o ouvido dói muito. É uma dor aguda, real. Eu nem sei explicar o que é não sentir dor ao ouvir um som alto, porque para mim sempre dói”, afirma.

Segundo ele, os fogos agravam ainda mais a situação por serem intensos e contínuos. “Um som alto comum já dói, mas os fogos são mais altos e não param. Você precisa ficar abafando o som o tempo todo e perde o controle do ambiente e da conversa”, diz. Para lidar com isso, Henrique usa fones ou abafadores de ruído, mas destaca que a maior perda é social. “Com o fone, o som deixa de ser o problema. O que dói é o que você perde socialmente. O ano-novo deixa de ser celebração e vira um desafio, algo que você precisa suportar por uma norma social”, relata.

Ele ressalta que o sofrimento não é apenas físico. “Enquanto todo mundo está aproveitando, você fica retraído, não consegue participar. Dá um senso de humilhação, de não pertencimento, de nunca fazer parte de verdade”, lamenta.

A médica pediatra e psiquiatra Mila Santiago, especialista em saúde mental de crianças e adolescentes, explica que sons intensos e imprevisíveis, como os fogos de artifício, podem ser interpretados pelo cérebro como uma ameaça real. “Em algumas pessoas, o sistema nervoso entra em estado de alarme porque o cérebro não consegue filtrar esses estímulos”, afirma. Em pessoas autistas, segundo ela, esse processamento sensorial é ainda mais sensível. “Sons súbitos e muito altos não são apenas incômodos: o cérebro pode interpretá-los como perigo, desencadeando medo, pânico e desorganização”, explica. 

Mila alerta que o estresse repetido pode agravar quadros de saúde mental e causar danos duradouros, incluindo perda auditiva. Para ela, reduzir o sofrimento passa por uma mudança coletiva. “Existem alternativas, como os fogos silenciosos, que mantêm o caráter festivo sem causar dor evitável. Isso não é exagero nem privilégio, é empatia. Celebrar não deveria significar ferir, ainda que de forma invisível, quem sente o mundo de maneira diferente”, ressalta. 

Risco

A geriatra Marília Terra Fasciani, da clínica Fasciani Cuidado Integrado, em Brasília, alerta que o maior problema dos fogos de artifício para os idosos não é apenas o volume, mas o caráter súbito e imprevisível do barulho. “Os mais vulneráveis são idosos com demência, transtornos de ansiedade e humor, além de cardiopatas”, explica. Segundo a médica, o susto pode desencadear crises hipertensivas, arritmias, eventos isquêmicos, descompensação de doenças de base e alterações comportamentais importantes, especialmente em pacientes com demência. “Em idosos com perda auditiva, o desconforto pode ser ainda maior, principalmente para quem usa aparelho auditivo, já que o som se amplifica”, informa.

Como prevenção, a geriatra recomenda reduzir estímulos e preservar a rotina. “Optar por ambientes internos, usar cortinas, música ou ruído branco, retirar aparelhos auditivos nesse período e garantir a presença de alguém que transmita segurança são medidas fundamentais”, reforça.  

*Colaborou Walkyria Lagaci

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Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - Maria Clara, tutora do Doki, conta que o pet sofre com o barulho dos fogos desde filhote
Acervo pessoal - Giovana Rabelo, tutora de Nala, conta que a reação é imediata

QUADRO - FOGOS DE ARTIFÍCIO: QUANDO O BARULHO VIRA UM "VULCÃO" NO CÉREBRO

O que acontece por dentro

Sons explosivos e imprevisíveis ativam o cérebro como se fosse uma ameaça real

O sistema nervoso entra em estado de alarme

A resposta não é emocional, é biológica


Quem pode ser mais afetado

Pessoas com autismo (inclusive não verbais)

Crianças pequenas e bebês

Pessoas com TEPT, ansiedade ou transtornos de humor

Idosos e pessoas com enxaqueca

Qualquer pessoa em situação de estresse ou privação de sono


Como o sofrimento aparece

Agitação, choro intenso, pânico

Tentativas de fuga ou isolamento

Confusão, irritabilidade, exaustão após o barulho

Em quem não fala, o corpo “fala” pelo comportamento


O que ajuda de verdade

Previsibilidade

Escolha consciente do ambiente

Respeito à rotina e ao sono

Acordos claros sobre início e fim

Proteção auditiva

Direito de sair sem culpa

 

* Informações da médica pediatra e psiquiatra Mila Santiago