
O consumo de alimentos ricos em ácidos graxos ômega-3, encontrados em alguns peixes, sementes e oleaginosas, pode prevenir o desenvolvimento de miopia em crianças. Por outro lado, a ingestão de gorduras saturadas, como as presentes em manteiga, óleo de palma e carne vermelha, está associada a um risco maior da doença, segundo um estudo publicado na revista British Journal of Ophthalmology.
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Segundo os autores, a prevalência global de miopia — um distúrbio que distorce a nitidez de objetos distantes — está aumentando, com previsão de que até 50% da população mundial seja afetada em 2050. Entre os fatores de risco, estão uso excessivo de tela, pouco tempo gasto ao ar livre e suscetibilidade hereditária. No Brasil, estima-se que 59 milhões de pessoas sofram do problema, com um crescimento observado em crianças após a pandemia, de acordo com um levantamento do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO). Na Ásia, já se fala em uma epidemia: entre 72% e 81% dos jovens de 11 a 18 anos foram diagnosticados com o erro de refração.
Preocupados com esse avanço, cientistas de Hong Kong decidiram estudar se os ácidos graxos poli-insaturados ômega-3, obtidos apenas pela alimentação, poderiam melhorar ou prevenir a miopia. Estudos anteriores indicaram que essa gordura protege a visão de doenças crônicas como olho seco e degeneração macular relacionada à idade. Porém, ainda não havia pesquisas clínicas específicos para a condição agora investigada.
Populacional
Com dados de 1.005 crianças chinesas de 6 a 8 anos, recrutadas aleatoriamente do Estudo Oftalmológico Infantil de Hong Kong, os pesquisadores exploraram a influência da dieta na miopia. No levantamento de base populacional, a acuidade visual dos pequenos foi avaliada, assim como a dieta regular, medida por meio de um questionário de frequência alimentar preenchido com a ajuda dos pais.
O questionário incluiu 280 itens categorizados em 10 grupos: pão/cereais/massa/arroz/macarrão; vegetais e leguminosas; frutas; carne; peixe; ovos; leite e laticínios; bebidas; dim sum (um tipo de bolinho)/lanches/gorduras/óleos; e sopas. O consumo de energia, carboidratos, proteínas, gordura total, gorduras saturadas, gorduras monoinsaturadas, ácidos graxos, colesterol, ferro, cálcio, vitaminas A e C, fibras, amido, açúcar e nutrientes foram, então, calculadas com base nas respostas.
O grupo de cientistas, que inclui professores da Universidade Chinesa de Hong Kong e do Hospital Infantil de Hong Kong, também avaliou a quantidade de tempo em que as crianças passavam ao ar livre, comparando com aquele dedicado às telas. Todos os dados foram, então, tabulados.
No total, pouco mais de um quarto das crianças (27,5%) tinha miopia. Uma maior ingestão alimentar de ácidos graxos ômega-3 foi associada estatisticamente ao menor risco da condição. O comprimento axial — distância da córnea à retina, e um indicador da progressão do distúrbio refrativo — foi maior nos 25% dos estudantes com menor consumo de gorduras saudáveis.
Saturadas
Da mesma forma, o equivalente esférico cicloplégico (EE), que mede o erro refrativo, como o grau de miopia, foi maior naqueles com menor ingestão de ácidos graxos ômega-3 e menos frequente nas crianças com maior consumo de alimentos com esse tipo de nutriente. Ao investigar a associação da condição ocular com gordura saturada, os pesquisadores encontraram o dado inverso: entre os 25% que mais ingeriam o de lipídio estava a maioria dos míopes do estudo.
"A pesquisa fornece evidências humanas de que uma maior ingestão alimentar de ácidos-graxos poli-insaturados ômega-3 está associada a um menor comprimento axial e menor refração miópica, destacando esse nutriente como potencial fator dietético de proteção contra o desenvolvimento da miopia", escreveram os autores do artigo. Eles destacaram que, embora o estudo não estabeleça uma relação de causa e efeito, existem algumas pistas sobre a atuação do ômega-3 obtido pela alimentação e o risco menor da condição.
"O ômega-3 é uma gordura saudável que ajuda a controlar inflamações e a manter uma boa circulação de sangue dentro do olho. Isso pode reduzir o alongamento exagerado do globo ocular, que é justamente uma das causas da miopia", explica Junia Valle França, especialista em oftalmopediatria e estrabismo da clínica Olhar Prime, em Brasília. "Em pesquisas com animais, o ômega-3 já mostrou efeito de frear a progressão da miopia. Em crianças, os primeiros estudos, como o de Hong Kong, sugerem que quem consome mais alimentos ricos em ômega-3 tende a ter olhos menos alongados e menor grau de miopia." A oftalmologista ressalta a necessidade de estudos maiores e de longo prazo para confirmar a proteção.
Conjunto
O oftalmologista Tiago Ribeiro, do Instituto Avançado da Visão, também avalia que o estudo tem limitações e que os resultados precisam ser interpretados com cautela. "Não se trata de, a partir de agora, defender a suplementação de ômega 3 nas crianças para diminuir a velocidade de progressão da miopia. Na verdade, temos que defender uma alimentação balanceada para o organismo como um todo", diz. Além do cuidado com a alimentação, Ribeiro reforça a importância de se considerar um conjunto de outros hábitos, como tempo dedicado a atividades ao ar livre e aquele gasto em telas. "Não se pode pensar isoladamente só na alimentação."
Em nota, os autores do estudo reconhecem as limitações, incluindo a falta de provas objetivas da ingestão nutricional, por exemplo, em amostras de sangue. Porém, defendem que, diante de outras evidências dos benefícios dos ácidos graxos ômega-3 para a saúde, incluindo a proteção contra outras condições oculares, e a explosão de casos de miopia, políticas públicas de saúde poderiam recomendar a ingestão de alimentos ricos no nutriente.
Três perguntas para Isabela Porto, oftalmopediatra do CBV-Hospital de Olhos
Como os ácidos graxos ômega-3 podem atuar biologicamente na proteção contra a progressão da miopia?
O ômega-3 tem sido bastante estudado por seus diversos benefícios à saúde e pesquisas recentes têm explorado seu papel na saúde ocular. Acredita-se que ele possa ajudar a proteger a retina e outras estruturas importantes do olho. No caso da miopia, alguns estudos sugerem que o ômega-3 pode influenciar como o olho cresce, ajudando a evitar o alongamento excessivo do globo ocular, que é a principal causa da progressão da miopia. Ele melhora a perfusão sanguínea e reduz a hipóxia escleral, o que pode desacelerar o crescimento axial excessivo do globo ocular.
O estudo também identificou que o consumo maior de gorduras saturadas se associa a maior risco de miopia. Qual seria o possível mecanismo por trás dessa relação?
Uma das hipóteses é de que o consumo elevado de gorduras saturadas, assim como de carboidratos refinados, pode levar a um aumento nos níveis de insulina. O excesso de insulina, por sua vez, altera fatores de crescimento e isso afeta o desenvolvimento das estruturas do olho, tornando-o mais propenso a se alongar e a desenvolver miopia.
Os resultados do estudo justificam a recomendação de incluir mais alimentos ricos em ômega-3 nas orientações pediátricas para prevenção da miopia?
A ciência aponta para essa direção. O que sabemos é que uma dieta rica em ômega-3 traz inúmeros benefícios para a saúde em geral, incluindo a saúde ocular. Por isso, a recomendação de incluir peixes, sementes e outros alimentos ricos em ômega-3 na alimentação das crianças é sempre uma orientação válida. É importante destacar que essa relação entre dieta e miopia continua em fase de estudo. Os resultados iniciais sugerem que o consumo de alimentos ricos em ômega-3 pode ter um efeito protetor contra a progressão da miopia em crianças. Mas, por enquanto, não podemos afirmar que seja uma recomendação formal. O que já sabemos é que o ômega-3 tem benefícios bem comprovados para a saúde em geral e para os olhos, e que hábitos como passar mais tempo ao ar livre continuam sendo as medidas mais sólidas na prevenção da miopia infantil. (PO)
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