
Epidemia que afeta 350 milhões no mundo e mais de 16,3 milhões de brasileiros, a depressão é um dos desafios da medicina moderna: apesar de avanços na neurociência e na variedade de medicamentos disponíveis, um terço dos pacientes não responde aos tratamentos convencionais. Agora, aumentam as evidências científicas de que, em muitos casos, a peça faltante do quebra-cabeça é a inflamação, uma resposta natural do sistema imunológico a infecções ou lesões, mas, que, ao se tornar crônica, afeta todo o organismo, incluindo o cérebro.
"Estamos começando a entender que a depressão não é uma entidade única, mas um conjunto de condições que podem ter causas biológicas distintas", afirma Weihong Lu, pesquisadora da Escola de Medicina e Saúde do Instituto de Tecnologia de Harbin, na China. Ela é a principal autora de um estudo publicado na revista Pharmacological Research que descreve as múltiplas formas como a inflamação crônica pode se associar à depressão. "Em cerca de um terço dos pacientes, há sinais claros de inflamação sistêmica e cerebral, o que muda completamente nossa abordagem terapêutica", afirma.
A teoria complementa a chamada hipótese monoaminérgica, segundo a qual o distúrbio é consequência de desequilíbrios em neurotransmissores, como serotonina, dopamina e noradrenalina. "Hoje, sabemos que a inflamação pode interferir nos mesmos sistemas ligados aos neurotransmissores, como serotonina, dopamina e glutamato, além de afetar a neuroplasticidade, que é a capacidade do cérebro de se adaptar", explica Marcel Fúlvio Padula Lamas, coordenador da psiquiatria do Hospital Albert Sabin, em São Paulo. "Em muitos pacientes, esses mecanismos caminham juntos: a inflamação pode agravar alterações químicas já existentes, e desequilíbrios de neurotransmissores também podem estimular processos inflamatórios."
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O que os estudos têm demonstrado é que pessoas com transtorno depressivo maior (TDM) frequentemente apresentam níveis elevados de marcadores inflamatórios no sangue, como interleucinas, fator de necrose tumoral alfa e proteína C reativa (PCR). Essa resposta imunológica pode ser desencadeada por infecções, estresse crônico, obesidade, disbiose intestinal ou outras condições inflamatórias, e desencadear uma cascata de eventos no cérebro.
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No sistema nervoso central, as microglias — células imunes residentes do cérebro — desempenham um papel crucial. Quando ativadas por citocinas inflamatórias, hormônios do estresse ou bactérias, elas podem liberar substâncias neurotóxicas e alterar a função neuronal. Estudos com tomografia por emissão de pósitrons (PET) mostraram aumento significativo da proteína transportadora translocadora (TSPO), um marcador de ativação microglial, em regiões como o córtex cingulado anterior e o hipocampo, ligados à regulação emocional e à cognição, de pacientes diagnosticados com depressão.
Segundo a psiquiatra Helena Moura, professora de Medicina na Universidade de Brasília (UnB), a inflamação crônica também interfere na plasticidade neural — a capacidade do cérebro de formar novas conexões. "As citocinas podem alterar a conectividade de redes cerebrais cruciais para a depressão, impactando motivação, processamento de recompensa e autorreferência — mecanismos ligados a apatia e fadiga", diz. Weihong Lu ressalta que o processo também altera um circuito responsável pela liberação do cortisol, criando um ciclo vicioso de desequilíbrio hormonal e imunológico.
Intestino
Outro fator destacado pelo estudo chinês é o desequilíbrio do microbioma intestinal. Alterações na composição da microbiota — fenômeno conhecido como disbiose — podem levar ao aumento da permeabilidade do órgão, permitir que endotoxinas e citocinas pró-inflamatórias cheguem ao cérebro e atravessem a barreira protetora, o que contribui para a neuroinflamação. "O intestino e o cérebro estão em diálogo constante. Quando essa comunicação é perturbada, por exemplo, por uma inflamação crônica no intestino, e isso pode se refletir diretamente no humor e no comportamento", observa Lu.
O psiquiatra Eric Cretaz, do Hospital Sírio-Libanês, destaca que outra associação prejudicial entre inflamação e depressão é que a primeira pode afetar a resposta ao tratamento. "Pacientes com níveis mais altos de interleucinas inflamatórias tendem a responder de forma menos satisfatória aos antidepressivos. Há algumas evidências de que esses medicamentos possam reduzir discretamente os níveis desses marcadores, mas o impacto prático é pequeno", explica Cretaz.
É possível, inclusive, que a inflamação não seja apenas a causa, mas consequência da depressão. "A relação é de mão dupla", assinala Marcel Fúlvio Padula Lamas, do Hospital Albert Sabin. Segundo o psiquiatra, já foi demonstrado um risco elevado do transtorno mental em pessoas que usam medicamentos como o interferon, citocina usada para o combate de infecções e células tumorais.
O médico ressalta que também é verdade que quadros depressivos prolongados elevam a inflamação, seja por estresse crônico, má alimentação, alterações do sono, sedentarismo ou doenças associadas, como obesidade e diabetes. "Na prática, é importante avaliar em cada caso se a inflamação está atuando como gatilho ou como consequência, porque isso muda a forma de tratar."
TRÊS PERGUNTAS PARA...
HELENA MOURA, psiquiatra, professora da Universidade de Brasília (UnB) e CEO da Apuí Saúde Mental
Que evidências científicas mais recentes reforçam a ligação entre inflamação e depressão?
Há muito tempo, pesquisadores têm buscado entender os mecanismos neurobiológicos para a depressão, mas nos últimos anos a percepção de que o cérebro é um órgão hermeticamente isolado do restante do corpo foi perdendo força. Nesse sentido, a semelhança entre sintomas depressivos e gripais, além da associação da depressão com outras doenças inflamatórias, passou a chamar a atenção dos pesquisadores. Vários estudos já mostraram a associação entre o diagnóstico de depressão e substâncias inflamatórias elevadas no sangue e esses achados vêm se mantendo. Revisões recentes seguem mostrando biomarcadores inflamatórios (sobretudo PCR/CRP e IL-6) mais altos em pessoas com depressão, reforçando a associação e a ideia de subtipos inflamatórios dentro do transtorno.
Quais os principais desafios para transformar a hipótese inflamatória em protocolos clínicos?
Primeiro, a heterogeneidade: depressão é um "guarda-chuva" — nem todo paciente inflama, e nem toda inflamação é igual (marcadores, sintomas, comorbidades). Além disso, a depressão é um transtorno multifatorial e focar em apenas um dos fatores associados pode não ser suficiente para a melhora clínica. Depois, a estratificação, pois a princípio não temos um padrão de normalidade como temos para a anemia, por exemplo. Também precisamos compreender quais sintomas respondem melhor (somáticos/cognitivos versus afetivos). Além disso, faltam ensaios clínicos randomizados grandes, com seguimento prolongado, para anti-inflamatórios não-esteroides e antibióticos com ação anti-inflamatória. O sinal de eficácia é promissor em subgrupos, mas não universal.
Há perspectivas de que, no futuro, exames laboratoriais possam ajudar a personalizar o tratamento da depressão com base no perfil inflamatório?
Esse é um dos objetivos dos estudos com biomarcadores. Enquanto, "por fora", os quadros de depressão pareçam iguais, é possível que internamente os processos biológicos subjacentes sejam distintos. Assim, os exames poderiam nos ajudar a distinguir quais as melhores intervenções para cada caso (também chamado de medicina de precisão). Porém, ainda falta padronizar os estudos, definir pontos de corte clínicos replicáveis e aplicáveis na prática e conduzir ensaios clínicos com desfechos funcionais, ou seja, ver quais sintomas de fato melhoram. Vários protocolos já estão em curso. (PO)
RELAÇÃO PREJUDICIAL
A inflamação crônica pode desencadear um ciclo de estresse e distúrbios de humor, com mecanismos como o aumento de citocinas inflamatórias e a ativação do sistema imunológico, contribuindo para os sintomas depressivos.
O que é?
Um processo natural: maneira natural do corpo combater infecções, reparar tecidos danificados e se proteger contra ameaças. Enquanto a aguda e temporária é benéfica, a crônica é um estado inflamatório prolongado que pode ser prejudicial.
Como afeta a depressão
Desequilíbrio de neurotransmissores: a inflamação crônica pode interromper os mensageiros químicos do cérebro, como a serotonina e a dopamina, levando a desequilíbrios de humor.
Danos à barreira hematoencefálica: citocinas inflamatórias podem enfraquecer a barreira hematoencefálica, tornando-a mais permeável e permitindo que moléculas inflamatórias entrem no cérebro e causem neuroinflamação.
Neuroinflamação: a inflamação dentro do próprio cérebro pode causar problemas cognitivos e de humor.
Disrupção hormonal: pode afetar os níveis de hormônios do estresse, como o cortisol, e outros hormônios, impactando o humor e a cognição.
Neuroplasticidade reduzida: pode prejudicar a capacidade do cérebro de se adaptar e formar novas conexões.
Estresse oxidativo: pode aumentar o estresse oxidativo, que danifica as células cerebrais.
Ciclo de estresse: O estresse pode desencadear uma resposta inflamatória, que por sua vez causa distúrbios de humor, levando a mais estresse, criando um ciclo vicioso.
Fatores associados
- Estressores psicossociais (abuso, trauma)
- Obesidade, má alimentação, sedentarismo
- Certas infecções, doenças autoimunes
- Distúrbios do sono
- Idade
Fonte: Universidade de Yale
Opções promissoras para o arsenal
Atualmente, algumas pesquisas exploram o uso de medicamentos anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) para o arsenal terapêutico da depressão, uma abordagem ainda preliminar e em testes. Entre as substâncias estudadas por pesquisadores da Universidade Médica de Tianjin, na China, AINEs como ibuprofeno e celecoxibe, mostraram resultados promissores quando usados em conjunto com antidepressivos, acelerando a resposta ao tratamento e melhorando as taxas de remissão, em um estudo que analisou mais de 500 receptores-alvos desses medicamentos no cérebro.
Além disso, os moduladores de citocinas, como infliximabe e etanercepte — originalmente desenvolvidos para doenças autoimunes — mostraram eficácia especialmente em pacientes com níveis elevados de inflamação antes do início do tratamento, conforme um estudo recente da Universidade Ben-Gurion do Negev, em Israel. Outras abordagens incluem o uso de ácidos graxos ômega-3, que reduzem a produção de citocinas inflamatórias; antibióticos com propriedades neuroprotetoras, e das estatinas, conhecidas por reduzir o colesterol. Probióticos e prebióticos, ao restaurarem o equilíbrio da microbiota intestinal, também surgem como potenciais coadjuvantes no manejo do transtorno mental.
A farmacêutica, nutricionista e divulgadora científica espanhola Marián García lembra, porém, que as estratégias complementares para o tratamento da depressão precisam ser validadas por estudos robustos. Ela ressalta a importância da orientação médica e aconselha desconfiar de fórmulas fáceis, muitas vezes anunciadas por criadores de conteúdo digital e produtores de suplementos. "A 'polipílula' anti-inflamatória mais eficaz é gratuita e se chama miocina ou exercina, produzida por meio de exercícios físicos. Em outras palavras, exercícios regulares, treinamento de força, combinados com uma dieta adequada, são melhores do que qualquer suplemento." (PO)
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