Um dos principais capítulos da história da amizade entre humanos e cachorros foi reescrito no maior estudo já realizado sobre a diversidade morfológica desses animais. Publicada na revista Science, a pesquisa derruba a ideia de que a enorme variedade canina é fruto dos cruzamentos artificiais do século 19. Segundo os autores, milênios antes que as raças modernas surgissem, ancestrais com formas e tamanhos distintos já existiam.
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O estudo analisou 643 crânios de canídeos ao longo de 50 mil anos, e mostra que a distinção morfológica entre cães e lobos se torna clara há cerca de 11 mil anos, no período Mesolítico, ainda que a domesticação genética seja anterior. Os mais antigos fósseis que claramente não pertenciam ao Canis lupus vieram do sítio arqueológico de Veretye, na Rússia, com datação entre 11.145 e 10.724 anos a.C.
Esses cães mesolíticos já mostravam redução de tamanho e mudanças de forma que os distanciavam dos lobos. A partir daí, ao longo do Holoceno, a diversidade morfológica aumenta rapidamente. Para rastrear a trajetória física do melhor amigo do homem, o consórcio internacional de arqueólogos, geneticistas e especialistas em morfometria geométrica trabalhou com modelos 3D de crânios inteiros — fósseis, descobertas arqueológicas e exemplares modernos — para identificar diferentes padrões, comparando lobos pleistocênicos, lobos atuais, cães modernos e espécimes antigos já propostos como domésticos.
Uma das conclusões desafia interpretações anteriores: nenhum dos 17 crânios do Pleistoceno tardio frequentemente sugeridos como "primeiros cães" tem, de fato, características compatíveis com morfologia doméstica. Todos foram classificados pela equipe como lobos. Além disso, embora os cachorros sejam muito mais diversos, devido aos cruzamentos artificiais intensificados pelos vitorianos, os resultados apontam que grande parte da flexibilidade morfológica já estava presente milhares de anos antes.
Focinhos
Crânios de cães neolíticos tinham formas que ocupavam cerca de metade da variação vista hoje. Por outro lado, ainda não existiam morfologias extremas típicas de algumas raças contemporâneas, como as faces extremamente curtas dos buldogues ou os focinhos alongadíssimos de borzois e wolfhounds.
Os cães antigos eram, em média, menores do que os lobos e também menos diversos em tamanho, comparados aos modernos. Ainda assim, exibiam sinais claros de seleção: afinamento do rosto, redução da robustez do crânio e aumento da variabilidade nas áreas relacionadas à mastigação e ao olfato — características associadas a mudanças de dieta e convivência próxima com humanos.
"Esses resultados destacam a longa história da nossa relação com os cães", comenta Carly Ameen, coautora principal do estudo e professora do Departamento de Arqueologia e História da Universidade de Exeter, no Reino Unido. "A diversidade entre os cães não é apenas um produto dos criadores da era vitoriana, mas sim um legado de milhares de anos de coevolução com as sociedades humanas."
Pistas
A domesticação do cão é um tema que sempre intrigou arqueólogos. As pistas genéticas indicam que os ancestrais das espécies modernas já estavam separados de populações de lobos selvagens antes de 11 mil anos atrás. Porém distinguir visualmente um antigo Canis lupus de uma de suas subespécies mais antigas é uma tarefa árdua.
O registro fóssil de carnívoros é escasso, fragmentado e frequentemente mal preservado — e os ossos do crânio, que são os mais informativos para esse tipo de análise, raramente sobrevivem intactos ao tempo.
O estudo demonstra que esses animais extintos exibiam maior variedade de formas cranianas, provavelmente influenciadas por grandes oscilações climáticas e ecológicas. Hoje, os lobos modernos representam apenas uma fração dessa variabilidade, o que dificulta ainda mais a identificação do momento exato em que a linhagem selvagem se transformou no inseparável companheiro dos humanos.
Ao fazer a análise em duas etapas — primeiro medindo o quão distante cada crânio estava da forma média de um lobo atual e, depois, aplicando técnicas preditivas para discriminar padrões — os autores constataram que nenhum exemplar pleistocênico ultrapassava o limite necessário para ser classificado como cão. Assim, esclarecem que foi somente depois desse período que o melhor amigo do homem aproximou-se do que é hoje.
Dispersão
Descobertas na Dinamarca, na Ásia central e no continente americano reforçam que a expansão da morfologia canina acompanhou a dispersão dos humanos pós-glaciais. Um dos exemplos mais conhecidos, o cão do sítio de Koster, nos Estados Unidos, datado de cerca de 8,6 mil atrás, aparece no estudo como um dos primeiros cães inequivocamente domésticos das Américas.
O levantamento mostra ainda que, entre 9,7 mil e 8,7 mil anos atrás, já é possível detectar encolhimento craniano estatisticamente significativo entre os canídeos arqueológicos, indicando uma seleção humana consistente. Sinais de maior variabilidade de forma, sugerindo ecologias e papéis sociais variados — guarda, caça, companhia, transporte — que moldaram o corpo do animal, são evidentes entre 8,2 mil e 7,2 mil anos (veja linha do tempo).
"As fases iniciais da domesticação dos cães estão ocultas, e os primeiros cachorros continuam a nos escapar", reconhece Greger Larson, autor principal do estudo e pesquisador da Universidade de Oxford, na Inglaterra. "Mas o que agora podemos demonstrar com segurança é que, uma vez que os cães surgiram, eles se diversificaram rapidamente. Sua variação inicial reflete tanto as pressões ecológicas naturais quanto o profundo impacto da convivência com os humanos."
Na avaliação de Melanie Fillios, antropóloga e arqueóloga da Universidade de New England, na Austrália, que não participou do estudo, são necessárias mais pesquisas para entender melhor a evolução das características morfológicas e funcionais em grupos específicos de canídeos. "A pesquisa publicada na Science, porém, contribui para uma compreensão mais ampla da domesticação como um processo biológico e cultural complexo e multifacetado, no qual milhares de anos de história humana e animal estão entrelaçados."
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