
Apenas dois dias de consumo de alimentos ricos em gordura saturada podem ter um efeito negativo imediato na saúde intestinal, segundo um artigo do Instituto de Pesquisa Médica Walter e Eliza Hall (WEHI), na Austrália, publicado na revista Immunity. O estudo é o primeiro no mundo a desvendar as consequências instantâneas de uma dieta com alto teor do nutriente na microbiota do intestino, o conjunto de microrganismos que habitam o órgão.
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Na pesquisa pré-clínica, feita com roedores, os cientistas constataram que uma pequena quantidade de refeições ricas em gordura saturada — encontrada principalmente em alimentos de origem animal — já é suficiente para causar uma inflamação silenciosa no organismo. Os sintomas físicos, na forma crônica da condição, podem levar anos para aparecer.
Segundo os autores, até agora não se conhecia o impacto instantâneo dos alimentos nas defesas do intestino. "Esperamos que as descobertas influenciem as diretrizes alimentares focadas em maneiras de aumentar naturalmente a proteção intestinal e ajudem a desenvolver novos métodos para restaurar ou melhorar a função intestinal em pessoas que vivem com doenças inflamatórias crônicas, como a doença inflamatória intestinal", escreveram, no artigo.
Suscetibilidade
Cyril Seillet, um dos autores principais do artigo, acredita que a equipe de pesquisadores alcançou um avanço significativo na busca pela compreensão da origem da inflamação crônica. "Mostramos que cada refeição que consumimos influencia ativamente a nossa saúde intestinal", diz. "Quanto mais gorduras saturadas ingerimos, mais inflamação se acumula, enfraquecendo gradualmente as defesas do nosso intestino e aumentando a nossa suscetibilidade à inflamação crônica", explica.
O acúmulo de inflamação é inicialmente silencioso, permanecendo oculto até anos depois, quando pode se manifestar como uma condição crônica. "Isso demonstra como a inflamação pode se desenvolver facilmente sem sinais de alerta imediatos. Embora refeições ocasionais ricas em gordura não comprometam a barreira protetora do intestino, uma dieta consistente rica em gorduras saturadas cria as condições para o desenvolvimento de inflamação intestinal crônica no futuro."
No estudo, liderado por Stephen Nutt, os pesquisadores avaliaram os impactos fisiológicos e moleculares de uma dieta rica em gordura (DRG) no tecido intestinal de camundongos alimentados com refeições contendo 36% do nutriente, comparados àqueles submetidos à ração padrão. Análises posteriores mostraram que a exposição de curto prazo à DRG pode reduzir a produção de IL-22, uma proteína crucial que ajuda a controlar a inflamação intestinal.
Duplo golpe
Le Xiong, primeira autora do artigo, diz que as dietas ricas em gordura representam um duplo golpe para a barreira intestinal, pois não apenas promovem a inflamação, mas prejudicam a capacidade do corpo de combatê-la. "A IL-22 é uma proteína de importância crítica para a saúde e proteção intestinal. Sem ela, o intestino perde a capacidade de prevenir inflamações", destaca.
Esses efeitos foram observados em apenas 48 horas depois do consumo de alimentos ricos em gordura. "Apesar de suas capacidades de proteção intestinal terem sido eliminadas, os ratos ainda pareciam saudáveis, evidenciando como a saúde intestinal pode ser comprometida muito antes do aparecimento de quaisquer sintomas visíveis", afirma a cientista.
O coloproctologista Danilo Munhóz, de Brasília, afirma que, quando a primeira linha de defesa do intestino é comprometida, o órgão torna-se mais suscetível a quadros inflamatórios diante de outros gatilhos, como toxinas, infecções ou predisposição genética. "Isso ajuda a explicar um terreno mais favorável para doenças como retocolite ulcerativa e doença de Crohn, ainda que o trabalho não analise pacientes humanos, e sim modelos experimentais", diz.
Restauração
Os autores também revelam que, assim como a gordura saturada suprimiu a produção de IL-22, as insaturadas, como as encontradas em nozes e abacates, fazem o oposto, aumentando a produção da proteína. Eles acreditam que o padrão pode ser replicado em humanos e sugerem que, ao restaurar os níveis da substância, seria possível recuperar a saúde intestinal.
"Um ponto interessante do estudo é que os autores mostram que a desregulação da resposta imune local acontece antes de qualquer dano estrutural importante, o que oferece uma explicação biológica plausível para o fato de algumas pessoas relatarem desconforto, mudança do hábito intestinal ou piora de sintomas logo após exageros alimentares ricos em gordura", observa Munhóz. "Não é apenas a quantidade de gordura que importa, mas o tipo: gorduras saturadas prejudicam esse eixo de proteção, enquanto gorduras insaturadas parecem preservar melhor a função das ILC3, ressaltando o papel da alimentação como moduladora direta da imunidade intestinal."
Antes de sugerir uma intervenção terapêutica, os pesquisadores do WEHI querem se concentrar em maneiras de aumentar naturalmente os níveis de IL-22. No artigo, os autores afirmam esperar que as descobertas influenciem as diretrizes alimentares que enfatizam a importância da incorporação de gorduras insaturadas na dieta para reforçar a proteção intestinal.
Três perguntas para Lucas Boarini, membro titular da Sociedade Brasileira de Coloproctologia
A descoberta do estudo, feita em modelos pré-clínicos, pode se aplicar a humanos?
Sim, o estudo foi realizado em modelos animais, mas os resultados chamam muita atenção porque refletem um mecanismo que também observamos em humanos. A ingestão de dieta rica em gordura saturada, por sete dias, em camundongos, induziu rapidamente a disbiose intestinal, com a promoção de espécies patogênicas e uma profunda alteração dos produtos microbianos e do metabolismo. Bastaram dois dias de uma dieta rica em gordura saturada para alterar profundamente o equilíbrio do intestino, reduzindo a função de células de defesa importantes e aumentando a permeabilidade intestinal, o que abre caminho para inflamação. Em humanos, é claro que não podemos afirmar que exatamente em dois dias ocorre o mesmo efeito, mas sabemos que mudanças bruscas na alimentação, especialmente com excesso de gordura saturadas e ultraprocessados, já modificam a microbiota intestinal em poucos dias.
Qual a consequência dessa alteração?
Isso pode gerar inflamação de baixo grau e desequilíbrio da barreira intestinal, especialmente em indivíduos com predisposição genética, como quem tem doença de Crohn ou retocolite ulcerativa. Mesmo que o estudo seja experimental e que necessite investigação em humanos, a mensagem prática é válida: o intestino reage rapidamente ao que comemos.
O que acontece no intestino quando há desequilíbrio das células ILC3?
As ILC3 (células linfoides inatas do tipo 3) são um tipo de célula de defesa que vive na mucosa intestinal. Elas produzem substâncias que fortalecem a barreira do intestino, estimulam a cicatrização da mucosa e ajudam a manter a microbiota equilibrada. Quando essas células perdem a função, o que pode acontecer por influência de dietas ricas em gordura saturadas, emulsificantes, conservantes, infecções, uso de antibióticos ou em pacientes predispostos geneticamente, o intestino fica mais permeável, permitindo que bactérias atravessem a barreira e gerem inflamação. Em doenças proctológicas relacionadas à inflamação intestinal, como retocolite ulcerativa, doença de Crohn, fístulas anorretais e algumas intolerâncias alimentares, essa falha de barreira e a perda de proteção das ILC3 podem facilitar o surgimento e a perpetuação de lesões na mucosa e na região anorretal. Ou seja, as ILC3 são como "defensoras" do intestino. Quando elas falham, a inflamação encontra terreno fértil. (PO)
Palavra de especialista // Interação complexa
O desenvolvimento de doenças é o resultado da interação complexa entre fatores genéticos, hábitos de vida e o ambiente. Nas doenças inflamatórias do intestino, você pode ter uma genética, mas geralmente a doença vai ocorrer quando houver uma disbiose (alteração da flora intestinal) e/ou piora da barreira de defesa (inflamação). O estudo publicado na revista Immunity nos mostra que as gorduras saturadas, especificamente as presentes em comidas conhecidas como fast food, podem contribuir muito nestes últimos dois fatores. Logo, mesmo pessoas com genética propícia para doença de Crohn ou retocolite ulcerativa poderiam se proteger com hábitos alimentares saudáveis... E outros, com genética menos favorável, mas ainda em algum grau, desenvolver as doenças devido à alimentação.
Adriano Colares Tolentino, médico gastroenterologista-endoscopista do Hospital Anchieta
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