A terapia CAR-T é um tratamento avançado no qual células de defesa do próprio paciente são coletadas, modificadas em laboratório para reconhecer e atacar células do câncer, posteriormente reinfundidas no organismo. Pela primeira vez, essa tecnologia foi inteiramente desenvolvida e produzida no Brasil, marcando um passo histórico para a ciência nacional.
Um projeto do Einstein Hospital Israelita, realizado em parceria com o Ministério da Saúde, mostrou resultados expressivos: 81% dos pacientes com linfomas e leucemias de células B, já resistentes a terapias tradicionais, responderam positivamente ao tratamento, e 72% alcançaram remissão completa. Além de representar um avanço inédito para a oncologia na América Latina, a produção local reduz custos, amplia o acesso e diminui a dependência tecnológica, fortalecendo a capacidade do país de oferecer terapias de ponta a mais pacientes.
O produto final surgiu como forma de combate ao desafio de acesso à terapia em países de média renda, onde os produtos comerciais são de alto custo, conforme explica Nelson Hamerschlak, coordenador do departamento de Hematologia do Einstein. O diferencial do programa contempla: fabricação point-of-care dentro do próprio hospital, usando a plataforma CliniMACS Prodigy, reduzindo tempo e custo; primeiro ensaio acadêmico fase I aprovado pela ANVISA em CAR-T no Brasil, trazendo marcos regulatórios inéditos; e integração com programas nacionais que visam transformar o Brasil em produtor soberano de terapias avançadas.
Hamerschlak destaca a demonstração de viabilidade regulatória e científica da manufatura nacional proporcionada pelo projeto, bem como a formação de profissionais em terapia celular avançada. “Eu diria que é um marco histórico para a oncologia e a hematologia brasileiras”, opina. “Deixamos de ser apenas compradores de tecnologia importada e passamos a produzir conhecimento e produtos de alto valor agregado. Mostramos que é possível fazer CAR-T com qualidade, segurança e eficácia em um sistema de saúde com recursos limitados.”
O médico ainda cita iniciativas brasileiras complementares ao projeto do Einstein: USP Ribeirão Preto – Projeto multicêntrico fase I/II chamado Carthedral; Instituto Butantan – Programa de CAR-T para Mieloma Múltiplo (BCMA); Estudo Mandacarú da Universidade Federal do Cerá; e Projeto de fabricação de vetor triplo para doenças linfoides da FIOCRUZ com cooperação do INCA e EINSTEIN.
Para alcançar a taxa de resposta de 81% e remissão completa de 72%, Hamerschlak selecionou criteriosamente os pacientes: “Todos tinham doença B-cell refratária, mas com condição clínica que permitia receber linfodepleção e CAR-T. Tivemos 100% de sucesso de fabricação e um tempo “vein-to-vein” em torno de 22 dias, o que é excelente para uma plataforma acadêmica point-of-care.Utilizamos um CAR anti-CD19 com domínio 4-1BB, que favorece expansão sustentada e perfil funcional de memória central, predominante entre os dias 7–21.”
Além disso, profissionais do hospital já tinham experiência em terapia celular. “O fato de o hospital já ter tradição em transplante e UTI onco-hematológica facilitou o manejo de CRS, ICANS e infecções”, acrescenta o coordenador. Durante a análise, a monitorização foi intensiva, contribuindo para que toxicidades fossem reversíveis.
A produção brasileira de CAR-T enfrenta cinco desafios centrais: garantir infraestrutura em padrão GMP, com laboratórios qualificados, salas limpas e controle de qualidade rigoroso; manter uma cadeia de insumos estável para vetores virais, reagentes e consumíveis ainda majoritariamente importados; organizar toda a logística de coleta, transporte, processamento e possível criopreservação de células de pacientes que vêm de diferentes regiões; formar recursos humanos especializados em um campo novo, envolvendo equipes de hematologia, biotecnologia, enfermagem, farmácia e biologia molecular; e integrar centros de coleta e infusão a uma ou mais plantas de manufatura, seguindo modelos como o da FIOCRUZ, que atua como “reference facility” para apoiar centros de tratamento.
Embora a redução dos custos dependa de políticas públicas, Hamerschlak está otimista: “O efeito direto é ampliar o número de pacientes elegíveis e reduzir desigualdades de acesso, especialmente em doenças em que o CAR-T pode ser curativo ou modificar profundamente o curso clínico.”
Para pacientes que não alcançaram melhora com terapias convencionais, o CAR-T oferece uma segunda chance. “Antes, pessoas com LLA ou linfoma B refratários, já sem opções após quimioterapia, anticorpos e transplante, tinham expectativa de vida muito curta. Com o CAR-T, observam-se respostas profundas e, em alguns casos, duradouras, mesmo em tratamentos de 3ª, 4ª ou 5ª linha, alterando o prognóstico individual”, argumenta o médico.
O próximo passo para ampliar o acesso à terapia e consolidar o Brasil como referência na América Latina envolve, além de dialogar com órgãos públicos, consolidar os resultados clínicos com mais pacientes. “O acompanhamento prolongado gera dados sólidos de eficácia, segurança e custo-efetividade”, esclarece Hamerschlak.
A equipe pretende expandir a terapia para diversos tipos de cânceres hematológicos e tumores sólidos. “No campo hematológico, há desenvolvimento pré-clínico de CAR-T anti-BCMA para mieloma múltiplo na plataforma do Einstein, com vetores B4C e B4CI apresentando boa atividade in vitro e em modelos murinos; no Instituto Butantan, avança uma parceria com a China”, conta o médico.
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“Também há interesse em novos alvos para outras neoplasias B, como CD22 e combinações duplas CD19/CD20 ou CD19/CD22. Em tumores sólidos, apesar dos desafios maiores — como microambiente imunossupressor e heterogeneidade antigênica — já existem pesquisas em câncer de pulmão, gliomas e tumores pediátricos. A expansão será gradual e baseada em segurança e racional biológico, mas a infraestrutura criada coloca o país em boa posição”, completa.
Por fim, Hamerschlak ressalta a produção do CAR-T de alto nível em um país de renda média, com resultados comparáveis aos de grandes centros internacionais — desde que exista integração entre academia, governo, agência reguladora e parceiros tecnológicos. “O sucesso depende da seleção correta dos pacientes, do timing, do suporte intensivo, do controle de infecções e da monitorização de toxicidades”, resume.
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