Visão do Direito

O novo Código Eleitoral e a inteligência artificial

"Eleições recentes no Brasil já ilustraram as dificuldades associadas ao crescente uso de inteligência artificial"

Ívilla Araújo 
Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/PI e Especialista em Direito e Contabilidade Eleitoral -  (crédito: Divulgação)
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Ívilla Araújo Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/PI e Especialista em Direito e Contabilidade Eleitoral - (crédito: Divulgação)

Por Ívilla Araújo* — A inteligência artificial (IA) estabeleceu sua presença na vida dos brasileiros e mudou tanto a rotina diária dos indivíduos quanto o mundo corporativo. Do Direito à Medicina, da Engenharia ao Jornalismo, profissionais de todas as áreas já introduziram ferramentas de IA em suas vidas diárias. Essa mudança, antes distante, agora é real e palpável.

Já estruturada na sociedade, essa tecnologia é, no entanto, independentemente de seu uso para fins positivos ou negativos, assustadoramente poderosa ao ditar qualquer narrativa que transcende. A IA é a única tecnologia capaz de ingerir quantidades ilimitadas de dados, analisar padrões complexos e criar conteúdo crível de maneiras que são insondáveis para o cérebro humano. Desde eficiências em diagnósticos médicos que salvam vidas até ser utilizada para construir desinformação de alta qualidade que pode moldar a opinião pública, a IA é um poder transformador que não conhece fronteiras. A própria natureza dupla da tecnologia nos obriga a compreender como ela pode afetar um dos pilares mais delicados da nossa democracia: a eleição.

Eleições recentes no Brasil já ilustraram as dificuldades associadas ao crescente uso de inteligência artificial. Deepfake, bots transferindo mentiras para milhares de pessoas e algoritmos servindo conteúdo para diferentes pessoas não são mais especulativos - mas uma ameaça genuína à democracia. Com a consciência dessa nova fronteira de riscos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem lutado ferozmente contra esses mecanismos cibernéticos, investindo em tecnologia, fazendo parcerias com plataformas digitais e treinando equipes para combater o uso abusivo da IA.

Enquanto isso, o Congresso Nacional tem se movido para legislar sobre o assunto, com a intenção de conter o uso prejudicial da inteligência artificial e aumentar a confiança no sistema democrático. Em 2021, o Projeto de Lei Complementar nº 112/2021, compila as normas de direito e processo eleitoral e traz no seu corpo um esforço para organizar e modernizar a legislação.

No entanto, uma análise da proposta indica que a nova lei em sua maioria apenas organiza e sistematiza regras já encontradas em resoluções do TSE, como a nº 23.610/2019, e traz poucas inovações reais. Esse resultado é alarmante, dado que a sociedade está cada vez mais exposta a uma IA mais antropomórfica. Sistemas baseados em IA se desenvolveram a ponto de a diferença entre o real e o falso ser virtualmente imperceptível ao olho humano. Deepfakes de tal qualidade, vozes sintéticas tão perfeitas e textos tão linguisticamente perfeitos estão sendo produzidos que até especialistas têm dificuldade em distingui-los do real.

Esse desenvolvimento tecnológico certamente terá um impacto nas futuras eleições, particularmente se considerarmos o nível de educação do eleitor brasileiro. Segundo o próprio TSE, a partir da eleição de 2024, o eleitorado é altamente vulnerável: 41.994.515 eleitores concluíram sua educação com o ensino fundamental (27,03%); 34.937.365 abandonaram o ensino fundamental (22,49%); 27.593.757 do ensino médio (17,76%). Juntas, essas fações são mais de 67% no total. Apenas 16.700.331 eleitores (10,75%) são graduados e 5.554.429 (3,58%) são analfabetos e 10.245.549 (6,6%) são capazes de ler e escrever. Essa situação torna a população uma presa fácil para manipulação, altamente prejudicial à democracia.

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Há também uma ênfase perturbadora no novo código sobre as sanções para aqueles considerados culpados de espalhar notícias falsas que usam inteligência artificial. Ao examinar as regras (proposta original) sobre sanções mais precisamente os artigos 509 623 e 624 da proposta tais penalidades são de natureza financeira. A estratégia é tão equivocada, dado o quanto a desinformação gerada por IA pode ser o fator decisivo em uma eleição que, por todos os direitos, deveria ser democrática e sem qualquer interferência e estranha à vontade do povo.

A segurança jurídica para os pleitos eleitorais que estão por vir encontra-se abalada, ainda, no que diz respeito ao Tema de Repercussão Geral nº 987, em que está sob análise do STF a possibilidade de responsabilização dos provedores por conteúdos gerados por terceiros. Ora, caso o STF entenda pela constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 e caso o projeto de lei que reformará o código eleitoral mantenha a linha compreendida pelo Supremo, podemos estar diante de um cenário em que as redes sociais terão força para engajamento de suas postagens. Esta indefinição jurisprudencial adiciona mais uma camada de incerteza ao já complexo ambiente regulatório eleitoral, criando brechas que podem ser exploradas tanto por candidatos quanto pelas próprias plataformas digitais.

Com base nisso, a conduta de caráter antidemocrático desse grau de gravidade deve incorrer em penalidades que reflitam o verdadeiro valor do interesse legal infringido. Se o nome do jogo é a liberdade do voto, a credibilidade dos mandatos e a confiança no sistema, as penalidades devem recair contra essas coisas. Apenas tapas monetários não são suficientes. Para aqueles que empregam inteligência artificial para manipular eleições, as sanções devem envolver onde de fato o ganho direto é estabelecido, a possibilidade perda do mandato. Essa é, prima facie, uma das maneiras de o estado de direito proteger o processo democrático.

Nesse contexto, o Brasil está agora em uma encruzilhada democrática. Estamos vivendo em uma era em que a inteligência artificial avança exponencialmente, e ainda assim nossa lei eleitoral está firmemente enraizada nas respostas de ontem. O Projeto de Lei nº 112/2021 aparece como o contraponto do que deveria ser um marco modernizador, caso haja um esforço para tal, esforço esse que passa pela aprovação de umas centenas de emendas a tal proposta.

A confluência de um eleitorado suscetível, tecnologia persuasiva e capacidade regulatória fraca representa uma ameaça clara à democracia brasileira.

O Congresso Nacional e o Tribunal Superior Eleitoral devem entender que a revisão do projeto originário é urgente, que é necessário incluir o uso de mecanismos modernos no combate ao uso malicioso da IA e que as sanções para crimes contra a democracia devem ser proporcionais ao dano causado. Acredito que assim, será possível combater o bom combate, e por consequência, preservar a integridade do processo eleitoral e garantir que a vontade popular, e não a manipulação artificial, continue sendo o fundamento do poder.

Especialista em direito tributário, processo civil e direito e contabilidade eleitoral, presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-PI e assistente jurídica no gabinete da prefeitura de Teresina*

 

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Por Opinião
postado em 19/06/2025 04:00