
Por Alan Bousso* — Empresas e pessoas físicas seguem uma lógica simples e implacável em seu orçamento: se as despesas aumentam, é preciso cortar, ajustar e reencontrar o equilíbrio das contas. No setor privado, a disciplina orçamentária não é virtude — é condição de sobrevivência. No Estado brasileiro, porém, a lógica parece invertida: quando o gasto cresce, em vez de cortes, cria-se um novo tributo. E nessa inversão de responsabilidade nasce mais um fardo para quem produz, investe e trabalha.
A lógica invertida é o alicerce do Projeto de Lei 1.087/2025, que reformula faixas do Imposto de Renda e cria uma nova tributação sobre lucros e dividendos. O texto prevê isenção para rendimentos mensais de até R$ 5 mil, a partir de 2026, e impõe retenção de 10% sobre distribuições de lucros que ultrapassem R$ 50 mil mensais a uma mesma pessoa física. À primeira vista, a medida parece inspirada no princípio da justiça fiscal: cobrar mais de quem ganha mais. Mas, quando se examinam os efeitos concretos, emergem distorções de proporcionalidade, riscos de desestímulo e uma mensagem perigosa — a de que o Estado pode tributar cada vez mais sem rever seu próprio modo de gastar.
O novo modelo tem ainda outro problema: cria uma armadilha para quem distribui dividendos ligeiramente acima do limite. O gatilho de R$ 50 mil funciona como uma quebra de patamar abrupta: ao ultrapassá-lo, a alíquota de 10% é aplicada sobre todo o valor, e não apenas sobre o excedente. Assim, quem recebe R$ 51 mil paga imposto sobre todo o montante — e não sobre o R$ 1.000 que passou da faixa. Essa desproporção gera um efeito perverso: o contribuinte que ganha "um pouco mais" passa a ter uma carga efetiva maior do que quem ganha muito mais.
Em suma, o sistema é um desincentivo ao sucesso. Empresários e profissionais liberais podem reduzir ou fragmentar suas retiradas, transferir lucros para meses seguintes, ou recorrer a estruturas artificiais de planejamento para escapar do salto tributário. O resultado é o oposto do pretendido: menos transparência, menos arrecadação e mais complexidade.
Ainda mais grave do que a distorção técnica é o sintoma político e fiscal que ela revela. A tributação de dividendos reaparece como resposta fácil ao problema crônico das contas públicas. Em vez de discutir o tamanho do Estado e sua eficiência, recorre-se novamente ao bolso do contribuinte. Enquanto o cidadão ajusta gastos e o empresário aperta margens para enfrentar a concorrência e a inflação, o poder público continua a expandir despesas, criar cargos e multiplicar programas sem aferir resultados.
Essa lógica rompe o pacto básico da tributação: o de que o contribuinte aceita pagar mais quando percebe retorno em serviços, infraestrutura e bem-estar social. O que se vê, contudo, é o oposto — a carga tributária cresce, mas o Estado não entrega. Saúde, segurança e educação seguem em crise, enquanto a burocracia e o desperdício consomem parte expressiva dos recursos.
Para o Estado, tributar é necessário. Mas gastar bem é tarefa que não pode ser adiada. Um sistema fiscal justo não se define apenas pelo quanto arrecada, mas pelo quanto devolve em qualidade de vida e eficiência. Quando o governo ignora esse equilíbrio, a tributação perde legitimidade moral e econômica.
É preciso ainda ter em conta que a proposta surge no ambiente de negócios num momento delicado. O Brasil compete por capital com países que, ao contrário, reduzem tributos sobre produção e investimento. A tributação de lucros e dividendos, especialmente quando mal calibrada, reduz a atratividade de empreender e incentiva a realocação de capitais para jurisdições mais previsíveis.
O modelo em discussão desestimula a reinjeção de lucros na economia. O empresário que vê o custo de distribuir dividendos subir tende a reter recursos ou buscar formas alternativas de remunerar o capital — o que compromete o fluxo de investimento, inovação e geração de emprego. Em síntese: tributar sem coordenar política fiscal e ambiente produtivo é atacar em cheio o motor do crescimento.
O pilar da justiça fiscal é a capacidade contributiva, segundo a qual quem pode mais deve contribuir mais. Mas isso só é verdadeiro quando as faixas de tributação são proporcionais e previsíveis. Um sistema que pune quem ganha "um pouco acima" de um limite, e não quem efetivamente acumula rendas muito elevadas, cria um degrau injusto e deseduca o contribuinte. O resultado é o incentivo à informalidade. Há soluções técnicas simples para corrigir esse desalinhamento: aplicar o imposto somente sobre o excedente acima do gatilho, transformar o limite mensal em teto anual para evitar distorções, e permitir compensação plena da retenção na declaração de ajuste anual. Nenhuma delas, contudo, terá efeito duradouro se o Estado continuar incapaz de controlar seus gastos.
Uma verdadeira reforma tributária precisa começar no próprio governo. Antes de aumentar a arrecadação, é preciso reformar o gasto público, medir resultados, revisar programas e eliminar redundâncias. É o que qualquer cidadão faz quando o orçamento aperta. Cobrar mais sem gastar melhor perpetua o ciclo da ineficiência, em que o Estado cresce e a sociedade se encolhe.
O aumento de impostos não é, por si, um erro. O erro é acreditar que ele resolve o desequilíbrio fiscal sem enfrentar a origem do problema: o descontrole do gasto público. Tributar dividendos pode até soar moderno. No entanto, em um país onde a carga já beira 34% do PIB e o retorno em serviços é precário, soa mais como um atalho perigoso. O contribuinte brasileiro já faz sua parte: trabalha, produz, ajusta contas e paga. O que falta é o Estado fazer o mesmo. Sem isso, cada nova "reforma" não passa de mais um capítulo de uma história repetida: a de um país que tributa muito, entrega pouco e busca soluções sempre do lado errado da planilha.
Mestre em direito processual civil pela PUC-SP, sócio do escritório Cyrillo e Bousso Advogados*
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