Obituário

Grandeza e influência: músicos e especialistas lamentam a morte de Nelson Freire

Nelson Freire morreu na madrugada de ontem, aos 77 anos, em casa, no Rio de Janeiro. Deixa um legado de amor à música e obras clássicas

Nahima Maciel
postado em 02/11/2021 06:00
O silêncio imposto pela morte de Nelson Freire certamente deixará a música mais pobre no Brasil e no mundo -  (crédito:  PASCAL GUYOT)
O silêncio imposto pela morte de Nelson Freire certamente deixará a música mais pobre no Brasil e no mundo - (crédito: PASCAL GUYOT)

Nelson Freire era conhecido por ser um homem de pouquíssimas palavras e muita música. Era pelo toque dos dedos no piano que ele se comunicava, que seduzia a plateia, que provocava lágrimas em boa parte de sua audiência. Dono de uma expressividade refinada e de um virtuosismo excepcional, acabou por se tornar um dos maiores nomes do piano mundial no século 20. O silêncio imposto por sua morte certamente deixará a música mais pobre no Brasil e no mundo. Nelson morreu na madrugada de ontem, em casa, no Rio de Janeiro, aos 77 anos. Detalhes da morte não foram divulgados. O velório está marcado para hoje, no Theatro Municipal do Rio.

Segundo pessoas próximas, o pianista sofria de depressão e andava debilitado desde 2019, quando fraturou o braço direito durante uma caminhada. Apesar de uma cirurgia longa mas bem-sucedida, Nelson ainda estaria com dificuldade para voltar a tocar. Com a pandemia, ele cancelou uma série de concertos em 2020 e, há um mês, também suspendeu a participação no júri do Concurso Chopin, de Varsóvia (Polônia). A perda de pessoas queridas teria abalado muito o músico, nesses meses de isolamento exigido pela crise sanitária. A pianista argentina Martha Argerich, grande amiga do brasileiro, também cancelou a participação no mesmo concurso polonês para ir ao Rio passar uns tempos com o brasileiro.

Memória

Nelson Freire tinha uma ligação especial com Brasília. Muito jovem, frequentou a casa de Neusa França, onde estudava e tocava informalmente. Há gravações históricas desses momentos. Também contribuía com o arquivo do Instituto Piano Brasileiro (IPB), criado pelo também pianista Alexandre Dias para preservar a memória da música no Brasil. Muitas gravações inéditas de Nelson foram digitalizadas e disponibilizadas on-line pelo IPB. "Ele sempre permitiu que digitalizasse e divulgasse, era extremamente generoso. Ele tinha essa consciência que podia inspirar outras pessoas, mesmo sendo uma pessoa extremamente modesta", conta Alexandre.

Com uma discografia de mais de 60 álbuns, Nelson Freire estreou na música como menino prodígio. Nascido em Boa Esperança, em Minas Gerais, começou a tocar aos 3 anos e, desde cedo, os professores notaram um talento excepcional. Foi amigo e grande admirador de Guiomar Novaes, uma das maiores pianistas do país, ainda criança, de quem herdou a relação extremamente sentimental com a música.

Aos 20 anos, ganhou o Concurso Internacional de Piano Vianna da Motta, em Lisboa, e as medalhas de ouro Dinu Lipatti e Harriet Cohen. Ao longo da carreira, gravou e tocou com as orquestras mais importantes do planeta nas maiores salas de concerto ao redor do mundo. Atuou ao lado de maestros como Pierre Boulez, Lorin Maazel, Kurt Masur, André Previn, Rudolf Kempe, Seiji Ozawa, John Nelson e Isaac Karabtchevsky. "É uma perda para a arte da música em nível mundial. Era um pianista de um talento enorme, excepcional, uma expressividade artística fabulosa. Tinha um domínio técnico do instrumento como poucos um repertório muito vasto, enorme. Era realmente um gigante do piano", diz Daniel Tarquínio, professor de piano do Departamento de Música da Universidade de Brasília (UnB).

Generoso

Entre as gravações mais emblemáticas estão o álbum duplo com os concertos de Brahms sob regência de Ricardo Chailly, eleito disco do ano pela Gramophone Awards em 2007; os noturnos de Chopin, um dos registros mais comoventes e generosos dessa obra gravada à exaustão desde a invenção do gramofone; as sonatas de Beethoven e um disco dedicado a Liszt.

Em Brasília, sua última apresentação foi em janeiro de 2019, quando tocou no Teatro da Fundação Habitacional do Exército um programa que trazia Beethoven, Chopin, Villa-Lobos, Scarlatti, Rachmaninoff, Albéniz e Handel. "O Nelson foi um pianista inigualável sob quaisquer padrões, reconhecido pelos maiores críticos de música do mundo. Ele tocou com as principais orquestras, principais regentes, e nas maiores salas de concerto do mundo", repara Alexandre Dias. "Ele tinha uma facilidade que é incompreensível até mesmo para especialistas, ele conseguia aprender as peças numa velocidade inacreditável e em um nível sui generis. Ainda bem que deixou um legado discográfico enorme." O pianista preparou uma playlist no Spotify com todas as gravações disponíveis, incluindo as mais antigas, que remontam a quando o artista tinha 12 anos.

O álbum mais recente de Freire foi lançado em 2019. Encores traz um conjunto de 30 faixas com miniaturas que costumava tocar durante os bis dos concertos. O disco tem preciosidades como a Melodia para Flauta de Orfeu e Eurídice, de Willibald Gluck, um clássico do encerramento das apresentações do pianista, que foi perfilado no filme Nelson Freire, de João Moreira Salles, documentário responsável por captar com incrível delicadeza a personalidade de Freire.

Qualidade

No longa de Moreira Salles, o silêncio e a música se entrelaçam em uma linguagem muito peculiar para traçar o retrato de um personagem que se definia como um caminho para levar a música ao público. O pianista Dib Franciss, professor da Escola de Música de Brasília (EMB), aponta essa percepção como uma das maiores qualidades de Nelson Freire. "Ele foi um serviçal da música, nunca a personalidade dele se sobrepôs à obra de arte. O monumento é a obra, não o intérprete. O intérprete que entra para história é um serviçal da música. Ainda bem que existe o registro sonoro que vai acalentar gerações futuras. A música do Nelson vai arrancar lágrimas de pessoas que ainda nem nasceram", acredita Dib.

A maneira como Nelson Freire se relacionava com a música serviu de inspiração para muitas gerações. "Ele mexia muito com todo mundo pela verdade que trazia na música. Era de uma sensibilidade incrível. Sempre me inspirei muito nele e tive a sorte de poder ter encontrado com ele, ter ido na casa dele, tocado para ele", conta a pianista brasiliense Ligia Moreno. "Metade do meu trabalho foi inspirada no que ele falava. O jeito como ele se relacionava com a música, com os compositores, com o palco, com todo esse mundo era muito inspirador. Uma referência de respeito à música, de seriedade com a música, de profissionalismo, de som, de toque. É muito triste, uma grande perda."

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