EMBATE

Indústria musical e redes sociais: uma relação antagônica ou parceria de sucesso?

Gravadoras, especialistas, plataformas e artistas explicam como a relação da internet com a carreira dos artistas estão, cada vez mais, em comunhão

Ronayre Nunes
postado em 25/11/2021 21:07 / atualizado em 25/11/2021 21:08
Como (quase) tudo na vida, as redes sociais também alteraram o panorama da música -  (crédito:  Maurenilson Freire/CB/D.A Press)
Como (quase) tudo na vida, as redes sociais também alteraram o panorama da música - (crédito: Maurenilson Freire/CB/D.A Press)

Quando o cinema surgiu, muitos declararam que seria a morte da literatura. Quando a TV nasceu — ainda na década de 1920 — seria o fim das telonas. Relação parecida foi estabelecida com a chegada da internet, que desta vez, mataria não só a TV, como também a indústria musical (e diversas outras). O ano de 2021, contudo, deixa claro: a ascensão de novas tecnologias não tiraram a vida de outros meios, pelo contrário. O streaming deu novo fôlego para as produções televisivas, e na música então, um novo universo se abriu para esta indústria, especialmente com a popularidade das redes sociais.

As plataformas permitiram um passo além do simples streaming das canções. Agora, com uma conta no Instagram, ou um canal no YouTube, artistas podem alavancar a carreira (praticamente sozinhos) e redefinir independência. E olha que isso, de certa forma, já é passado. Novas plataformas, como o TikTok, já levam essa experiência da indústria musical a um novo nível — bem mais rápido.

Para tentar entender um pouco mais sobre como está sendo a relação entre a indústria musical e as redes sociais em um contexto mais “contemporâneo” (mesmo correndo o risco deste termo se desatualizar a cada minuto), o Correio parou para ouvir gravadoras, especialistas, plataformas globais de vídeos e a ponta mais importante (e significativa) disto tudo: o artista.

Colocando todos os elementos na equação, é possível perceber um resultado (talvez) surpreendente: bem longe de uma possível ameaça, as redes sociais se tornaram uma aliada da indústria musical. Agora, cada uma tem um papel.

“Co-criando”

Em uma longa entrevista por e-mail, ainda em outubro, Júlia Braga lança mão de uma palavra chave para explicar em que pé anda a relação da indústria musical com as redes sociais atualmente: co-criação. A mulher é a diretora comercial de marketing da Som Livre e responde categoricamente ao questionamento da reportagem sobre a existência, ou não, da necessidade de um artista ser “bombado” nas redes antes de ser contratado para o selo.

“Aqui na Som Livre, como gravadora, estamos muito mais interessados em oferecer ao artista toda estrutura necessária para que ele ou ela possa imprimir sua marca pessoal nas redes sociais e, com isso, promover suas músicas e projetos. Costumamos dizer que o trabalho do marketing serve para isso: enquanto o talento foca no seu repertório e na sua arte, nós damos todo o apoio para que ele consiga se comunicar bem com seu público e potenciais fãs. No fim do dia, acabamos co-criando estratégias e isso se reflete no crescimento das redes sociais e no aumento do consumo das faixas”, explica.

Na atuação como diretora de marketing e promoção na Sony Music Brasil, Cristiane Simões tem opinião parecida: a relevância de um artista iniciante nas redes sociais é um plus, mas não pré-requisito para se juntar à indústria. A diretora indica ainda que o “potencial” das redes não podem ser ignorados, e que existe sim, o incentivo para que os artistas se façam presentes em perfis nestas plataformas: “Desde que percebemos o potencial do TikTok e do Instagram para potencializar sucessos, criar 'virais' e até resgatar clássicos, temos incentivado nossos artistas para que tenham seus perfis, criem e divulguem, não só desafios de suas próprias músicas, mas também participem de outros casos de sucesso, para interagir com essa audiência. Claro, tudo respeitando a individualidade de cada um e se querem, de fato, participar”.

Doja Cat viu a carreira ser alavancada devido ao Tik Tok. A faixa Say So viralizou na plataforma em 2020.
Doja Cat viu a carreira ser alavancada devido ao Tik Tok. A faixa Say So viralizou na plataforma em 2020. (foto: Instagram @dojacat/Reprodução)

Citando exemplos de sucesso e até projetos específicos, tanto a Sony, quanto a Som Livre deixaram claro à reportagem que parcerias com as empresas de redes sociais são bem-vindas, e, frequentemente, se traduzem em sucesso.

Mas indo direto ao assunto: cada uma delas encara as redes sociais como plataformas que, de alguma forma, mudaram a indústria musical? Seguem as respostas:

Júlia, pela Som Livre: “Certamente. O Brasil está no Top 3 em consumo de redes sociais no mundo e isso impacta diretamente o mercado de música. As redes mudaram as formas de comunicação e hoje funcionam como grandes propagadoras de conteúdo e tendências. Basta olhar para os charts dos apps de música e comparar com as coreografias e virais das redes sociais”

Cristiane, pela Sony: “A indústria musical foi se transformando ao longo dos anos com toda a tecnologia digital. Portanto, não podemos dizer que as redes sociais mudaram a indústria da música. Na verdade, as redes sociais e os avanços tecnológicos complementaram a indústria. A música é ouvida em novas plataformas digitais e a promoção - que antes era mais focada em mídia impressa, TV e rádio, agora também é feita nas mídias digitais”.

Vale lembrar que a reportagem também tentou entrar em contato com a Warner Music Brasil para falar sobre o tema, porém não recebeu resposta até o fechamento do texto.

A visão da razão

Sob o chiquérrimo cargo de Head de Conteúdo Musical do TikTok Brasil, Roberta Guimarães falou ao Correio sobre como a plataforma global de vídeos curtos encara a relação com a indústria musical. A mulher defende que a relação do espaço com as músicas é orgânica, e que “viralizar” uma ou outra canção depende mais dos próprios usuários e do que eles entendem como sucesso (independente de ser lançamento, ou não).

“Somos o lugar onde os fãs de música ouvem, descobrem, assistem a shows e dividem as novidades com os amigos. Percebemos, também, que o que acontece no TikTok acaba ocupando um espaço no top 200 das plataformas de streaming, as músicas que bombam na plataforma aparecem cada vez mais nesses rankings, sejam novas ou mais antigas. É inspirador ver como nossa comunidade está crescendo e ver o sucesso significativo que os artistas também estão tendo fora da plataforma. Quem dita o sucesso de um conteúdo no TikTok são os usuários, a partir de suas experiências com o aplicativo. São eles que criam, adotam e ampliam tendências. Como plataforma, somos muito neutros nesse papel, trabalhando mais na identificação e expansão do que já faz sentido para a nossa base”, explica.

Sobre o que faz a singularidade da plataforma, Roberta defende que o TikTok dispõe de liberdade para que os conteúdos possam resultar em algo “criativo, positivo e divertido”. Mas e como um viral pode surgir na plataforma — e em consequência ganhar o mundo?

“Toda a movimentação para o sucesso de músicas começa dentro da comunidade do TikTok. É realmente uma reação em cadeia. Se eu te falar que tem uma fórmula, vou estar mentindo, mas existe um fator comum que é a participação dos artistas e a geração de conteúdo por eles. Os artistas sempre serão o agente principal da comunicação de suas próprias músicas. Além disso, a audiência do TikTok gosta do que é autêntico, então, para um artista criar relevância na plataforma ele precisa estar conectado, podendo fazer isso de diversas maneiras: interagindo com as trends e com os fãs, estimulando-os a usarem a criatividade. Sobre a música ainda, é necessário selecionar bem a seção que estará disponível na plataforma. Entender qual parte da sua música pode ser estimulante em um vídeo. Depois disso, é fundamental pensar e propor conteúdo criativo usando sua própria música”, responde a head.

Ainda segundo Roberta, a plataforma vem redefinindo a indústria musical desde os último três anos, com reflexos diretos nos resultados em rankings das mais ouvidas: “No momento onde você dá o poder de celebrar e escolher o que uma comunidade do tamanho do TikTok quer ouvir e consumir você consegue mudar o rumo das coisas [...] Hoje a quantidade de rotatividade nos charts brasileiros e como essas músicas refletem como o TikTok já influencia e abre novas portas na música hoje”.

Um dos grandes exemplos do impacto do Tik Tok na indústria musical ocorreu após uma publicação do usuário doggface208, que fez uma música lançada em 1977 voltar às paradas musicais. Em setembro de 2020, o homem gravou um vídeo andando de skate enquanto bebia suco e curtia uma música. A canção era Dreams, hit da banda Fleetwood Mac, que faz parte do álbum Rumours, um dos discos mais vendidos de todos os tempos.

O vídeo, razoavelmente simples, foi visto por mais de 20 milhões de pessoas, e alavancou o hit dos anos 1970 nas plataformas de streaming. As vendas da música subiram 375%, alcançando cerca de 3 milhões de plays no Spotify em apenas um dia nos Estados Unidos.

Para os que criticam uma possível superficialidade na plataforma, Roberta comenta a defesa do formato de “vídeos curtos” do TikTok. Segundo a head, trata-se do futuro da rede: “A entrega de conteúdo em um feed único e personalizado pelo TikTok e o alcance global da plataforma provaram ser um mecanismo promocional muito eficaz para a indústria da música. Do ponto de vista do público ou dos fãs, o formato de vídeos curtos é bem-sucedido ao apresentar lançamentos, ou músicas até então desconhecidas ou não valorizadas, de maneira orgânica. Do ponto de vista do artista, o formato é uma promoção extremamente eficaz para um público aficionado. O TikTok é uma poderosa plataforma promocional para a descoberta de músicas inovadoras e artistas emergentes para ganhar exposição e alcançar um público amplo e variado”.

Quem realmente importa

No fim das contas, a parte que mais importa na relação entre a indústria musical e as redes sociais, não é nem a indústria musical e menos ainda as redes sociais. A reportagem bateu um papo com Tinna Rios, 26 anos, uma artista que aposta alto na carreira musical, e para isso usa as redes sociais.

Na opinião da paulistana, divulgar o trabalho artístico nas redes sociais é uma forma de apresentação. “Eu gosto de pensar que tem de fazer um trabalho na internet que se conecte com seu propósito, com sua filosofia e eu tento fazer isso, é uma forma de trazer mais pessoas para sua música [...] Eu acho de extrema importância o artista se jogar, se ele não fizer isso ele não vai alcançar os objetivos. Tem gente que acha que tá ainda em 1980 e que tem de lançar um hit, tem de fazer um sucesso, nos meios clássicos. Naquela época não era tão fácil por conta disso”, explica.

Tinna gasta de 3 a 4 horas por dia nas redes, e acredita que o trabalho é bem gasto. “Eu tenho um planner e me programo, eu passo mais tempo para engajar, porque quando eu fizer uma postagem, vai ter um público”, detalha. O resultado até o momento tem sido de destaque: mais de 26 mil seguidores no Instagram e mais de 13 mil no TikTok.

“Ajuda muito (as redes sociais). Eu faço muitos cursos, inclusive de anúncio para conseguir alcançar mais pessoas, que têm interesse no nosso trabalho, é uma mídia que dá para pagar, antes era muito mais difícil. Ou você tinha sorte ou você não fazia sucesso”, pontua a artista.

A reportagem questionou Tinna: mas e o risco de o artista virar um influencer?

“Eu acho que o artista já é um influencer, muitas pessoas se baseiam nos influences. O artista tá muito ligado com essa vertente do influencer, então tá super ligado, ele tem mais voz, então a forma como ele fala influencia as outras pessoas”, conta. 

Escrevendo desde 2016 e com a primeira música lançada já em 2017 (Wake up), Tinna embarcou nas redes quando elas começavam a decolar, e parece já ter aprendido as singularidades de cada uma. “O meu TikTok é mais educativo, eu costumo fazer um discurso relacionado a negritude e ao que eu canto, eu vejo como uma opção de o artista alcançar mais pessoas, porque o artista independente não tem uma divulgação fácil, então é uma forma de alcançar mais pessoas, e colocar alguns vídeos cantando também. Eu acho que as pessoas aceitam muito mais assim, do que ter um trabalho ‘enfiado goela abaixo’, é uma forma de segurar a mão do público de outra forma, e que leva até a música”.

Posição técnica

Opinião parecida tem Josyane Lannes, coordenadora dos cursos de TI da Estácio Brasília. A especialista também falou com o Correio sobre o assunto e apontou a importância de entender as redes como únicas, e saber onde o trabalho artístico mais cabe (e de que forma cabe). “O objetivo do Tik Tok é ter esse conteúdo em menor tempo, eu diria que é dar uma ‘entrada’, um ‘gostinho de quero mais’, é um local de começar a estimular, e não de se aprofundar. Eu não vou me aprofundar, então o grande objetivo é pulverizar aquele estilo, aquele trabalho, e aí existem outras redes que pode melhorar esses tráfegos de dados, o YouTube vai ter um tempo maior, os sites terão mais espaço e informações, mas eu vejo com muito bons olhos o TikTok, cada rede tem um objetivo. E cada artista tem o seu próprio objetivo. Eu vejo (as redes sociais) como aliadas”, defende.

Historicamente, Josyane também contextualiza a evolução da parceria entre redes sociais e indústria musical: “A indústria da música começa um importante processo de recuperação desde 2017, em paralelo com a ascensão das redes sociais. Até então as vendas em música eram muito direcionadas, sem uma voz expressiva dos artistas e quando entram as plataformas de streaming, eles começam a dar voz até então quem não tinha muita voz: os próprios músicos que começam a produzir e divulgar ao mesmo tempo”.

Como resultado desta relação, a especialista conclui sobre o novo (e atual) panorama da relação. “(Antes) existia uma dependência completa dos artistas para as gravadoras e isso onerava muito a relação deles. Hoje as gravadoras precisam dessa parceria com as redes, isso é muito promissor. As formas de monetização ainda podem gerar alguns embates, mas o uso das redes sociais não é mais futuro, é o presente. As gravadoras precisam se aliar, isso acontece com as indústrias desde o início dos séculos passados, é preciso existir essas parcerias, saber se renovar, até porque a parte delas (das gravadoras) continua sendo fundamental. Elas têm tecnologias fundamentais no processo de criação musical, elas sabem promover uma produção profissional, e enfim é um trabalho colaborativo”.

 

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